quarta-feira, 30 de julho de 2008

Histórias da História

Quando li e ouvi que o Barack Obama invadiu a União Europeia em grande alarido de entusiasmos recíprocos entre os acolhedores unionistas e ele próprio, candidato ao domínio de parte do mundo, fiquei contente por observar quanto a história – dos homens, é claro, e das nações, por consequência – se repete ao longo dos séculos e mesmo dos milénios, e passa. Foi Alexandre a conquistar a Ásia, Júlio César também a África, Napoleão aventurando-se pela Europa e proporcionando a decifração dos hieróglifos mais a sul, o Hitler, muito puro, ambicionando um mundo sem mescla, sempre com os Americanos em alerta máximo. Fiquei contente, de facto. Também por causa dos sorrisos do Barack Obama, que perspectivam feliz colaboração e fraternidade intercontinental, ao contrário de antigamente, em que havia maior beligerância. Os Portugueses e os Espanhóis também não são isentos de responsabilidades nestes anseios de expansão, mas felizmente sabem dar o braço a torcer e retiram-se quando sentem que estão a mais, como, aliás, os Ingleses fizeram. E os Franceses. Os próprios Assírios já foram poderosos, mas com Assurbanípal, que protegia as artes, foram-se abaixo, o que não é de estranhar, com nome tão arrevesado, que ainda por cima era protector das artes e das letras. É certo que o Barack Obama ainda não é presidente, mas não falta muito para o ser. Também será protector de tudo isso e da ciência e do planeta e da solidariedade para com os povos mais carenciados. Por isso espalha sorrisos. E passará um dia, como os outros.
O nosso Primeiro Ministro também se passeia pelos povos ricos, mas vê-se que faz sacrifício. O seu sorriso das fotografias da praxe é um pouco “figé” - “amarelo” no nosso português colorido. E nós nem merecemos esse esforço. Somos calaceiros e pedinchões, não nos empenhamos minimamente por erguer o país com o nosso próprio trabalho e preparação técnica, como ele tanto pede. Fazemos greves, sem consideração pelo nosso rectângulo tão diminuto nem pela crise mundial, só debruçados sobre as nossas necessidades pessoais, ainda mesmo que elas não existam, como se verifica nalguns casos exemplares. Mas impõem, mesmo assim, comprometedoras viagens de sacrifício e de sorriso amarelo ao nosso Primeiro Ministro, apenas para resolver o nosso défice. Nada a ver com o sorriso poderoso, embora também já um pouco enrugado, de Barack Obama. Faz pena.

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Vasco Graça Moura, um Orestes português

Presto homenagem ao Dr. Vasco Graça Moura.
Relendo “Les Mouches” do Sartre, ele parece-me representar bem a personagem Orestes, nos seus traços de superhomem nitzshiano, querendo à força incutir coragem ao povo argivo para lutar contra “as moscas” – do medo e do remorso, no caso grego, da indiferença, interesse e cobardia, no caso português. Medo e remorso, pelo assassínio de Agamémnon por Clitemnestra e Egisto, indiferença, interesse e cobardia, pelo assassínio da escrita portuguesa, que o Presidente da República Portuguesa, ainda que com “plena consciência de que o Acordo Ortográfico é um deprimente chorrilho de asneiras”, e “de que a sua adopção introduzirá um cancro incurável na ortografia da língua portuguesa”, segundo se lê no texto “NÃO!” do D.N. de 23/7, de V.G.M., se apressou, todavia a ratificar, talvez por não ter podido furtar-se às pressões que traiçoeiramente anteciparam datas, sem mais revisões nem análises.
É um texto a reter, juntamente com outros que publicou antes, grito de consciência que infelizmente não encontra o eco necessário na apatia inqualificável do povo agarrado às forças do poder, Orestes assumindo, só, a sua luta contra Júpiter e as suas Erínias, resistindo, resistindo... Mas a Resistência vingou lá fora. Outros tempos, outras gentes.

domingo, 20 de julho de 2008

Sociedade dual

Segundo a proposta de uma advogada, que nos chegou via Internet, sobre o modelo de avaliação dos professores aplicável a todas as demais profissões, teremos a sociedade portuguesa bipartida, numa estruturação de equilíbrio com grandes vantagens para a marcha das coisas em geral, e dos negócios em particular. De um lado os titulares, do outro os apenas: professores titulares, professores tout court. Médicos titulares, médicos apenas. E ainsi de suite, propõe a advogada que imaginemos uma sociedade de trabalhadores assim organizada, como ela fez para os trabalhadores médicos.
Não explica como os titulares obtiveram esse estatuto, como já a titularidade dos professores não fora bem explicada, pois que estes não foram sujeitos a exames ou a avaliações que os fizessem ascender a ele, mas apenas à participação em cargos extra-leccionação, durante os sete últimos anos. A leccionação apenas, mesmo que eficiente, os méritos de classificações curriculares que propiciaram o posicionamento docente nos concursos anuais, tudo isso foi à viola. O professor será apenas e tão só isso, porque os titulares já foram seleccionados a dedo, segundo as novas prerrogativas. Diz-se que tal norma pesou no saldo positivo da dívida europeia e vai continuar a pesar, fazendo sangrar tão-só aqueles professores apenas e sem esperança.
Imaginando, por este modelo, todas as outras profissões, segundo proposta da advogada citada, aqui se verifica uma sociedade equilibrada, onde não ocorrerão desmandos de rebeldias. Uns serão sempre titulares, outros serão para sempre os apenas.
Mas não devemos estranhar. Sempre a sociedade se revelou na dualidade dos maniqueísmos: Os bons e os maus, os ricos e os pobres, os nobres e os plebeus, os oprimidos e os opressores, os açambarcadores e os sem jeito... Porque haveríamos agora de querer ser diferentes? Haja, pois, os titulares para avaliar e os que serão para sempre os avaliados.
As mãos postas devotamente dos ministros zelosos na distribuição dos cargos, com muita papelada para os portefólios das novas competências estruturadoras, devem merecer o nosso respeito, sem rebeldias inúteis ou mesmo perigosas. Somos um povo ordeiro e temos os governantes precisos para isso.

sábado, 12 de julho de 2008

Os modelos da nossa filantropia

Quando soube que, graças a umas medidas sociais favorecedoras do bem-estar dos nossos mais pobrezinhos, se apelidava o Engenheiro José Sócrates de Robin Hood português, por tirar dos grandes em favor dos pequeninos, o meu patriotismo sentiu-se atingido, embora a poeticidade do nome saxão e da sua floresta de Sherwood seja, de facto, mais condizente com a poética figura do nosso Primeiro Ministro do que a do nosso Zé do Telhado, este com mais afinidades burlescas com aqueloutro Zé da imortalidade de Bordalo Pinheiro. Não, não nos faltam exemplos de idêntica postura moral, no seu sentido da justa distribuição dos bens, para precisarmos de recorrer a estranhos nas nossas metáforas. O Zé do Telhado é um dos mais bem concebidos, na pena do nosso Camilo, numa história de ir às lágrimas, de um assaltante que muito amou e chorou e foi amado e chorado, que facilmente matou e roubou, mas que sempre repartiu o fruto dos seus assaltos por quem o necessitava. Serve perfeitamente de modelo institucional nosso, até porque também foi galardoado, segundo se conta nas “Memórias do Cárcere”.
De resto, já os filósofos da Revolução Francesa defendiam, na sequência das doutrinas de Necker, tais propostas de extorsão dos mais abastados em favor dos mais desfavorecidos, por ser grande na altura a exploração do povo francês. Mas nós cá nem precisamos de recuar a esses tempos para encontrarmos modelos de comportamento altruísta, que a exploração entre nós continuou, por um conservadorismo saudosista. A começar no Padre Américo e a acabar nos peditórios e canções de peditórios, vivemos uns momentos de perfeita bondade, com gente dedicada aos outros que não tem mãos a medir pois os outros são por demais. Até do Dubai nos chega o exemplo de uma portuguesa hospedeira do ar e missionária na terra das Índias. São muitos os casos da solidariedade portuguesa para o Engenheiro Sócrates se poder inspirar, evidenciadores da nossa largueza de alma, sobretudo quando não estão mexendo no nosso bolso.
Mas, se é certo que o nosso Primeiro Ministro usou uma medida profunda pois que mergulha em sociedades de rendimentos acrescidos, para pagar pensões e os passes sociais das crianças e tudo o mais, tirando aos ricos para dar aos pobrezinhos, acho que quem vai pagar todas essas generosidades, não é a Galp nem as demais sociedades petrolíferas que já estão a ameaçar novos aumentos compensatórios das generosidades governamentais. Não, os assaltados não serão esses, seremos nós, os pagadores do costume, mesmo os protegidos dos passes, e favorecidas as tais sociedades prosaicas que não se podem deixar assaltar assim, permitindo que se lhes mexa nos inúmeros bolsos, tão lirica e levianamente, com franqueza!

sábado, 5 de julho de 2008

Tempos Modernos

Era Voltaire que defendia a civilização, o luxo e o conforto contra os que entendiam superiores os tempos mais primitivos, chegando a escrever ao Rousseau, a propósito do “Discurso” deste sobre “as desigualdades sociais”, que a sua leitura nos dava ganas de andar a quatro (patas), pois nunca se empregara tanto espírito em querer “nous rendre bêtes”.
Estou com Voltaire. Pelo pouco que sei do mundo, a civilização, se é certo que corrompe, traz-nos tanta coisa de inesperado e rico, que só nos podemos congratular por não vivermos entre os “bons selvagens” das teorias do Rousseau. Eu já vivi numa aldeia portuguesa, e ficou-me na memória assustada o crime dos Salgados contra os Rebelos, numa discussão sobre prioridades de regas das terras, cuja água estes açambarcavam. Estiveram à morte com as sacholadas daqueles na cabeça, e os Salgados ficaram longos anos presos. É certo que não se tratou dos tempos dos índios, pois já então havia cá hospitais, felizmente, e prisões, mas os conceitos de justiça ou de fraude e prepotência existem desde que o mundo é mundo, originando as guerras, com mais ou menos ilustração, até já entre o Caim e o Abel, dos mais recuados em matéria de primitividade católica. A Bíblia fornece inúmeros casos mais, mas toda a história dos povos, desde os mais civilizados até aos menos civilizados, passando pelos Salgados e os Rebelos, é uma sequência de crimes, em que os próprios mitos são mantidos através de horrendos sacrifícios humanos ou de animais.
Quanto à questão das quatro patas – pura boutade espirituosa de Voltaire que não perdia a oportunidade de ferir sensibilidades – eu não posso deixar de concordar com ele, nestes tempos de mochila, desde a infância, ou de sacos do Pingo Doce, na minha idade. Na verdade, para não gastar mais que dois cêntimos na compra de um saco, já que sistematicamente me esqueço de os levar de casa, sobrecarrego-o em demasia, correndo assim o risco de o rebentar, para mais agora, que, porque os pagamos, têm um fabrico mais frágil, para comprarmos mais, que a vida custa a todos, mesmo ao Pingo Doce. Mas a vontade de vergar o dorso, nas compras, só é contrariada às vezes, honra me seja, nos assomos de orgulho para aparentar a souplesse antiga.
Quanto à questão do luxo que Voltaire defende como vantagem da modernidade do seu século XVIII, eu não faço questão dele, prefiro as comodidades e os prazeres espirituais e materiais que me trazem os nossos séculos XX e XXI – o automóvel, o avião, o combóio, a rádio, o cinema, os livres de poche, a casa e os electrodomésticos, o sofá e a televisão, o leitor de DVD, o computador, a Internet. Oh! A Internet!
Um deslumbramento muito recente. Não tinha dado por ela, só há pouco comecei a “navegar”. E descobri coisas, nomes, significados, livros, autores, programas, músicas, compositores, a Maluda, o Cargaleiro, Marc Chagall, comportamentos. E o meu nome também. E muitos blogs. De políticos, de figuras públicas, de jovens com capacidades, de pessoas críticas ou apoiantes, de comentários agradáveis ou levianos, engraçados ou severos, um mundo múltiplo que nos faz sorrir, outras vezes nos desgosta e nos leva a utilizar o lema mirandino do blog de José Pacheco Pereira. “M’espanto às vezes, outras m’avergonho”, ou, em termos mais familiares, embora temporalmente mais antigos, a frase intemporal de Júlio César: “Tu quoque, Brute, fili mi?”.

quinta-feira, 3 de julho de 2008

Homenagem ao Senhor Arrobas

O senhor Arrobas morreu.
Encontrávamo-lo frequentemente, ora nas compras ora no banco. Sorridente, repetindo as mesmas graças. Se era na sua vinda do banco, vulgo CGD: “Escusam de ir, que eu já limpei tudo o que lá havia”. Se era na nossa vinda: “Escuso de ir, que vocês já limparam tudo”. Repetia-se a cena no Pingo Doce ou na Padaria, de exposição megalómana da nossa respectiva comparticipação nas compras diárias. Sempre sorrindo, sem dar a saber o que ele sabia, preferindo manter a imagem da reserva e da falsa alegria de quem prefere brincar a ceder à humilhação da nossa condição de ratos impotentes nas malhas prisioneiras.
Mas um dia apareceu na farmácia, cheia de gente. Não me viu. Não tirou bilhete, foi direito ao balcão, arrastou a conversa, saí antes dele. Só um grande desvairamento poderia explicar a atitude deselegante de açambarcar um privilégio que lhe não pertencia, e ninguém protestou. Deve ter sido nesse dia que soube da doença.
Voltámos a encontrá-lo. Menos vezes, mas sempre comedido em relação a si, discreto em referência a uma doença que tentava minimizar com a eterna brincadeira do monopólio de produtos ou de dinheiro. Vivia só, a mulher morrera algum tempo antes, isso nos aproximara na preocupação pelo seu bem-estar. Sabíamos que ia buscar os netos à escola, sabíamos que era boa pessoa, pensávamos que devia sentir-se muito só, pessoa errante, com afectos, é certo, mas de repente a sós com as suas dores e os seus medos, fugidio na alusão àqueles, sozinho na vida.
Morreu ontem.