sexta-feira, 30 de abril de 2010

“O GRITO”

Mais um documento expressivo do actual panorama educativo. Sei que haverá logo professores – havia-os no meu tempo – que confirmam que as turmas são complicadas – não para eles, note-se, que “não têm razão de queixa” (dos alunos) - já não tinham no meu tempo - mas que é necessário “saber dar-lhes a volta” (aos alunos), forma pedante e cínica de admitir que eles sabem (dar a volta), o que geralmente é falso.
Os senhores ministros da Educação, o Primeiro, os seguintes, fecham os olhos e tapam os ouvidos, em frente com os seus projectos de modernização para a desconstrução, que a alguns deles convém, como forma de justificar os seus cursos de batota.
E o país suporta, um protesto ou outro vão pingando, mas são bolas de sebo escorregadias, que só têm utilidade para polir as botas da tropa, já quase desaparecida, requerendo, pois, menos sebo, inúteis também não só para os que comem da mesma gamela como para os que assistem na indiferença do futuro, atidos à máxima “quem cá ficar que se lixe”.
O documento exprime desespero, o desespero de alguém que foi sempre brioso, numa carreira feita de dedicação e amor, e que ultimamente tem visto o tapete a ser-lhe puxado de debaixo dos pés, com a eficácia própria do descrédito a que chegou a “Educação” neste país, na permissividade de leis astutas, que fingem dar força aos professores, mas que de facto lha negam, puxando-lhes conscienciosamente o tapete de debaixo dos pés. Professores periclitantes, na sequência da ausência do tapete, alunos dançarinos no seu tapete protector, governantes semelhantes a deficientes autistas, um povo participando, uns com receio e vergonha, outros sem uma coisa nem outra.
Uma “directora” de escola que desautoriza o professor queixoso, chamando “peixeirada”, diante do aluno, ao incidente ocorrido na aula, é bem a marca do universo “pedagógico” dos nossos tempos, fomentado na família, apoiado no governo, com os professores como caixote do lixo – e não digo a Escola, visto que existem os directores de Escola participantes no apoio do governo, para projecção pessoal, e desapoio aos professores não alinhados no laxismo – como caixote do lixo, repito, da miséria moral e mental que estamos a criar.
Daí, o meu grito, o grito da professora que escreveu o texto, ao qual foram retiradas as referências pessoais, naturalmente, para obstar a mesquinhas “revanches”. Não é “O Grito” tão conhecido do pintor norueguês Edvard Munch. Não é grito de angústia existencial. É grito de desespero, sim. Mas de asco. De terror também.

«À Direcção:
A aula de Português de 23 de Abril de 2010 de dois décimos anos (dados em conjunto por conta da crise) decorreu com os costumados contratempos: mandar calar, pedir atenção, que se concentrassem, que deixassem falar quem estava no momento a fazê-lo, ditar o sumário três vezes, pedir a um aluno que mudasse de lugar, recolher trabalhos, fazer o ponto da situação relativamente aos trabalhos que os alunos têm de apresentar não estando a cumprir os prazos, mandar calar outras vezes porque há sempre alguém a perturbar, a má disposição de um que fala com os colegas altiva e severamente, o que também causa mal-estar e faz perder tempo de aula, gente que atira borrachas para incomodar e que nunca assume nem se cansa (eu, que nunca apanho ninguém em flagrante e já peço aos alunos que denunciem os colegas, que o fazem, atitude que abomino, pois detesto denúncias), alguém que produz um ruído qualquer (pés, boca, canetas), outros que riem, comentários de cada vez que repreendo algum aluno (quer do próprio quer de outros), gente que tem sempre algo a criticar ou a dizer de sua justiça e não se contém, matéria a ser leccionada, esclarecimento de dúvidas, enfim, todo um ambiente propício à aprendizagem e um estendal de boas maneiras.
Às 13.20, um aluno de um dos décimos levantou-se sem pedir licença, ficámos todos a olhar e, em escassos segundos, deslocou-se para o fundo da sala e foi agredir um colega de outra turma, ao pé da janela. Este aluno, que normalmente é mal comportado, neste dia, por acaso, ainda não tinha perturbado ninguém, nem sido alvo de qualquer reparo da minha parte. Grupos de alunos seguraram os dois para não se envolverem à pancada, caíram mesas, cadeiras, o agressor foi levado para fora da sala e o agredido impedido de sair. Tentei acalmá-lo e fiz apelo para que desse o assunto por encerrado, mostrando-se superior à situação e evitando um processo de escalada de violência, até porque não era o agressor o verdadeiro responsável pela confusão a que se chegara. O aluno estava muito nervoso, vermelho e com um ritmo cardíaco elevado.
Tive ainda uma conversa com os alunos presentes em que lhes chamei, mais uma vez, a atenção para o clima que se criara ao longo do ano e permitira a ocorrência de um acontecimento desta natureza; falei-lhes igualmente do desequilíbrio emocional e de comportamento de vários jovens que integram a turma, incapazes de se modificar; referi ainda o facto de todos se permitirem falar e comentar, e nada fazerem para alterar os seus maus comportamentos. Dirigi-me então à Direcção com o agressor.
Quanto ao aluno que pretende ter sempre algo a dizer e para quem, no seu reino de fantasia, as palavras e os gestos têm sempre significados diferentes daqueles que os outros lhes atribuem, esse tem o vício de falar comigo, quando o repreendo ou sente alguma contrariedade, em voz alta e de dedo indicador esticado em direcção da minha cara, com o corpo a fazer um ângulo pois se acha muito alto. Já por inúmeras vezes lhe disse não lhe admitir tal atitude, pelo que hoje o encaminhei para a Direcção, por estar à porta do pavilhão A nestes preparos, acompanhado por outros alunos da outra turma que, mal comportados, naturalmente sentiam um peso na consciência.
Lamento que uma discussão com este jovem, após a cena havida em aula, seja caracterizada pela Directora, à frente do aluno, como «uma peixeirada» e me seja encomendada a devida participação escrita, modo pouco delicado de me convidar a sair do Gabinete. Realça-se a falta de sensibilidade para o desespero de alguém que, apesar de marés adversas, continua a tentar cumprir o seu papel, sem desistência ou pausas na sua actuação.»

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Casa mortuária

O meu marido gosta de os ouvir. Mas perde horas a ouvi-los e eu, que vou alternando ocupações, quando chego à televisão, continuo a escutar as vozes monocórdicas dos que são chamados a depor e dos que os interrogam, tentando demonstrar as falcatruas e os cinismos que envolvem os vários casos incriminatórios, mas sempre defendidos com as ironias e os desvios manhosos daqueles a quem não convém serem incriminados, mas que no fundo se estão nas tintas para tudo e todos, e até para as incriminações, porque sabem que estas ninguém as demonstra porque não encontram as provas cabais, só centrados no jargão jurídico, ou nos jogos de uma pseudodiplomacia irónica, para asno ouvir, do estilo de Vara “admitir que o engenheiro Sócrates conhecia informalmente o negócio, acreditando ele na palavra de Sócrates (que o disse) a respeito da compra da TVI por parte da PT”. Só formalmente é que conta, portanto. Outra frase de fuga, usada por Vara e por outros “não sou propriamente um delator” ou “não tenho o direito de pôr em causa o bom nome bla, bla, bla... “ da escusa. Ou mesmo, muito safardana, a fazer tempo para estudar a resposta: “Tenho estado aqui a pensar se tive conhecimento antecipado bla bla bla...”
De nada vale a seriedade dos que se propuseram averiguar a verdade a respeito das mentiras que envolveram actuações menos criteriosas do PM em alguns dos processos tantas vezes referenciados. A comandita dos envolvidos estudou em grupo as respostas da escusa, mais ou menos idênticas, e todos eles se vão safando, sem que os acusadores consigam furar a muralha da sua astúcia, ou da sua negação de resposta, caso de Rui Pedro Soares.
Perde-se tempo. Os da Comissão de Inquérito sabem bem da inutilidade do seu papel ali, naquela espécie de casa mortuária onde se fala fala fala... Em surdina. Como gostamos, afinal. Passando tempo.
É certo que o dirigente do PSD já se reuniu com o do PS, para ambos estudarem a salvação do país. Estão ambos felizes, interapoiando-se com ternura e a elevação a que Passos Coelho nos habituou, aparentemente para salvar Portugal, na realidade para fazer parte também do grupo dos que vão roendo no osso, creio que já na abordagem do tutano. De facto, Sócrates já mandou dizer que todos os projectos a que se tinha proposto se vão fazer, agora com o apoio de Passos Coelho e dos da comandita deste, o que ressalva, creio bem, muitos do PSD, que os acham ruinosos.
Assim vamos vivendo. Em litania, na questão da Comissão de Inquérito televisionada. Dançando o vira, no caso do nosso Primeiro. Virando com ele, no caso dos seus acompanhantes, agora com Passos Coelho respeitosamente participando. Gemendo e chorando, na maioria dos habitantes indecisos do nosso vale. "Morituri te salutant", diriam os gladiadores. Dizemos nós. Que os Neros não se distinguem.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Um dó li tá

Cara de amendoá... O Dr Mário Soares não escolheu hoje Cabo Verde como pérola a preservar dos bicos dos galináceos, através do jogo de escolha que jogou, certamente, na sua infância. Não, não foi, entre as outras pérolas. Vou explicar.
Cabo Verde sendo, aliás, uma pérola muito subdividida, como aprendi em tempos recuados, a mais bicos servirá: grupos do Barlavento e do Sotavento, com Santo Antão, São Vicente, Santa Luzia, São Nicolau, Sal, Boavista no primeiro grupo, Maio Santiago, Fogo e Brava no segundo, e com ilhéus espalhados a embelezar o conjunto. Praia é a capital, na ilha de Santiago.
O Dr. Mário Soares foi ao mapamundi quando era novo e viu que havia lá muitas terras espalhadas que se diziam portuguesas, um pouco à balda, pois na realidade elas eram dos povos primitivos que lá viviam quando os portugueses se apoderaram delas indevidamente, coisa de garotos sem juízo. E decidiu que o mapa tinha que ser reposto na primitiva feição, que o Dr. Mário Soares foi sempre de repor, falando mesmo em termos pessoais. Assim fez então e saiu-se bem, embora se esquecesse dos arquipélagos dos Açores e da Madeira, à sorrelfa, como quem ainda quer a coisa para o seu país, já a pensar nas suas férias.
Mas não foi também com o “um dó li tá” que se lembrou, ultimamente, de Cabo Verde. Parece que foi porque, tal como Açores e Madeira, Cabo Verde também era baldio e despovoado, quando os portugueses lá chegaram nos tempos do Infante Navegador. Arrependeu-se de ter generalizado a distribuição de todas as terras antes portuguesas pelos seus naturais, já que além dos Açores e da Madeira, onde não havia naturais, nessas alturas dos “dias e dias e meses e anos no mar” de que falam os Da Vinci, também Cabo Verde não tinha naturais, e por isso devia ficar para quem lá chegou primeiro, já na segunda metade do século XV, e começou a povoar, embora com a ajuda de escravos importados da África, para os trabalhos mais difíceis.
E foi assim que o Dr. Mário Soares se saiu há dias a dizer que, se fosse hoje, teria preservado Cabo Verde, coisa de que não se lembrou ontem quando, sem fazer “um dó li tá”, pôs tudo ao molho, borda fora... Então pode ser que amanhã o Dr. Mário Soares ainda possa repor a pérola no sítio a que pertence, segundo o seu conceito actual de justiça e de reposição.
Como é pérola subdividida, iria caber ainda a muitos bicos por cá, entre os quais o do Dr. Mário Soares. Embora o Dr. Mário Soares não seja dos que precisam. Mas também não são estes que costumam obter pérolas.

domingo, 25 de abril de 2010

Serão de 24 de Abril

Uma noite em cheio, a de 24 de Abril: primeiro, “Le plus grand cabaret du monde, na TV5, por Patrick Sébastien, que, sentado em mesas com convidados muitas vezes ligados aos números extraordinários do seu palco, palco fértil em proezas de uma extraordinária beleza corporal, de humor, de magia, vai brilhando nas suas capacidades de comunicador, de entrevistador, de cantor, de humorista vibrante e afável, que definem o seu espectáculo numa dimensão de encanto e sedução, também pelas qualidades de comunicação da gente elegante que ele apresenta.
Seguidamente, no TVMemória, "Casablanca", tantas vezes visto. Uma história de amor, concentrando ingredientes próprios de um verdadeiro amor: a ternura da paixão, no encontro de ocasião em Paris, antes da Ocupação, entre a jovem desconhecida (Ingrid Bergman, no papel de Ilsa Laszlo) e o fugitivo Richard (futuro Rick) (Humphrey Bogart), as raivas deste pela incompreensível traição daquela de não fugir com ele no comboio, como combinara, raivas armazenadas num sofrimento que traça um novo perfil de cinismo aparente a um Rick, dono de um bar em Casablanca. É neste bar que o casal Ilsa / Victor Laszlo, leader da resistência checa (Paul Henreid) se acolhem, na busca de dois vistos para, partidos de avião para Lisboa, daí embarcarem para os almejados Estados Unidos da América. E os sentimentos e as emoções irão desenrolar-se, na surpresa, na raiva, na negação dos vistos à mulher suplicante pelo seu marido perseguido, no infinito amor, na ofensa, pela ignorância das razões da traição de Ilsa em Paris (soubera, nesse dia, que o marido, prisioneiro num campo de concentração nazi, não morrera como ela julgara – e por isso se deixara envolver num novo amor – mas estava vivo e precisava dela, pelo que faltara ao compromisso de partir com o amado, no comboio da fuga). As lágrimas, de novo a ternura, a temerosa decisão de construção de um novo futuro dos dois, salvando, embora, o marido. A conversa do marido e do amante, o pedido daquele para que salve a mulher. E o cinismo e a raiva de Rick cedendo ante a nobreza do casal, cedendo o seu lugar na partida do avião, em truque mistificatório que o incriminará, mas que a sua própria nobreza pede.
Como pano de fundo desta história de amor, realizada por Michael Curtiz, em 1942, história romântica feita dos ingredientes apontados mas sobretudo de dedicação e generosidade de todos os intervenientes, a canção, interpretada por Sam (Dooley Wilson), que permanece no nosso ouvido, “As Time goes by”, evocando os bons velhos tempos de Paris, do início desses amores inextinguíveis, porque “Sempre teremos Paris”, na resposta do sacrificado Rick à comovida e perturbada Ilse.
Romântica história, história de renúncia e sacrifício, história de ternura, história de nobreza e contenção, de beleza e dignidade, de coragem, poderia servir bem de exemplo aos tempos conturbados que vivemos hoje, de separações e agressão constantes, de incontinência de atitudes, de jovens e menos jovens, incapacitados de medir as inconveniências de comportamentos menos ponderados, egoístas e cobardes, tempos em que nos habituámos a colher nos noticiários o indicativo constante de crimes não de amor mas de terrorismo, indignidade e bestialidade. De cobardia.


sexta-feira, 23 de abril de 2010

Os princípios da ecologia na fábula

Se La Fontaine estivesse
Nos dias de hoje, veria
Que o que já se fazia
Antigamente,
- Desrespeitar a natureza
Com ingratidão e fereza -
Se acentuou
Extraordinariamente
No tempo presente.
Felizmente agora
Há a ecologia
A advertir,
Conquanto inutilmente,
Que é preciso ser grato à Terra
E não lhe fazer guerra;
Ter-lhe respeito
Com jeito;
Porque senão
A Terra vinga-se e é o que se vê,
Nos sismos a eito,
Nos vendavais e tornados,
Nas tempestades e enxurradas,
No aquecimento global, nas inundações,
Nos vulcões em explosões,
No pânico geral e na dor inenarrável
De se destruírem os lares
Os amigos e os familiares
Só porque a natureza se vingou
De maneira insuportável
Sobre o Homem que a envileceu
Sujando, ferindo, agredindo,
Emporcalhando,
Destruindo.
Gratidão e respeito pela mãe-natura
São os princípios de envergadura
Que La Fontaine apontou
Na fábula do Lenhador devastador
Da sua Floresta.
Sentimentos verdadeiros hoje ainda,
Mas cada vez mais calcados
Espezinhados,
Pelo Homem irresponsável,
Num abuso irracional,
Sobre a Floresta Universal.
De um perigo
A merecer o castigo,
Apesar dos avisos já antigos
Duma Ecologia ainda em formação
Segundo um fabulista admirável
De percepção.


A Floresta e o Lenhador

Um Lenhador acabava de partir o cabo
Com que tinha encabado o seu machado.
O estrago não pôde ser tão cedo reparado
E o Bosque por um tempo foi poupado.
Enfim o Homem rogou-lhe humildemente
Que o deixasse suavemente
Levar um simples ramo
A fim de polir um novo cabo:
“Ele o seu ganha-pão empregaria noutro lado:
Muito carvalho e muito pinheiro deixaria intacto
Cuja velhice e encanto toda a gente respeitava.”
Mas outras armas a inocente Floresta lhe forneceu.
Bem se arrependeu.
Ele encabou o seu machado:
O miserável disso se foi servir
Para a sua benfeitora despojar
Do seu principal ornamento,
Os ramos do seu tormento.
Ela gemeu a cada momento:
A sua dádiva causou a sua dor.
Eis o trem do mundo e dos seus sectários.
Servem-se do benefício contra o benfeitor,
Estou cansado de assim o expor.
Mas que doces sombras a tais ultrajes
Estejam expostas,
Quem não se lamentaria!
Ai de mim! Por muito que me esforce a gritar,
Para avisar,
A ingratidão e os abusos
Em moda não deixarão de estar
Dia após dia.

Quem diria
Que La Fontaine previa
O que hoje nos está a acontecer
Em escala ainda maior
Do que a que ele apontou
Quando nos avisou,
Autêntico professor?
Quanto à questão
Do oportunismo na utilização
Do benefício
E na ingratidão
Contra o benfeitor
É coisa sabida,
Nem vou contestar
Nem sequer lamentar
Que é coisa perdida.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Tableau!

O meu marido é que tem andado a ouvir todos esses debates da Comissão de Inquérito relativos aos esclarecimentos exigidos pelos vários partidos sobre as negociatas de que se tem falado ultimamente e que implicam responsabilização do PM. Eu tenho ouvido alguns, um tanto desatentamente, enquanto preparo o almoço. Hoje cheguei na altura em que Rui Pedro Soares afirmava, no meio do silêncio da Assembleia, recusar responder a quaisquer perguntas que lhe fossem feitas sobre a sua implicação nos casos Taguspark, TVI e outros que tais, depois de anteriormente Paulo Penedos o ter mais ou menos defendido nas várias perguntas que lhe foram feitas objectivamente pelos contrários.
A declaração de recusa de resposta teve um efeito inicial de bomba, de estupor geral, cujo efeito de reacção surge só segundos após. As reacções surgiram, na vibração da indignação, ante o capricho de alguém bem industriado para assim responder, com a recusa de responder. Entretanto, as razões pertinentes dos vários deputados, entre os quais Pacheco Pereira, Cecília Meireles e outros, considerando o insólito do procedimento, eram seguidas pelos sorrisos finórios dos do PS, ou pelas suas caras voltadas, tapadas por uma das mãos – e percebi o que significa a expressão “não querer dar a cara” – a menos que o sentido fosse mesmo de troça – dos opositores inutilmente esforçados - sem querer dar nas vistas mas dando, como também fazem os adolescentes, na troça disfarçada da companheira mal vestida.
O comentário do meu marido sobre a “corja” que assim escudava Pedro Soares, não me espantou. É claro que não tem a ver esta corja com a do Camilo, da sua novela ao modo naturalista, cheia de gente espessa na sua fealdade de maneiras e carácter vicioso. A “corja” socialista que usa todos os truques para definitivamente arrumar as questões de ilicitudes ou corrupção em que está envolvida, não sendo bonita, tem, todavia, a auréola de esplendor que lhe fornece a safadeza endinheirada bem sucedida.
Não valia a pena o esforço de uma Comissão de Inquérito. Ninguém vai cair do seu pedestal.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Roquette disse

- O país tem que mudar, disse o Roquette no lançamento do seu megaprojecto turístico do Alqueva, depois dos elogios estimulantes de Sócrates. Que acha que ele queria dizer com isso de “tem que mudar?”?
- Ah! Pois, não sei...
- disse eu meio às escuras, ocupada a escrever o fruto das experiências da via televisiva da minha amiga, experiências audiovisuais que eu tenho falhado escandalosamente, pois gosto sempre de compartilhar as alegrias do nosso PM que não perde pitada nestas coisas dos projectos, sobretudo se forem dos de vulto.
- Será que o que ele quer dizer é que não se pode roubar mais?- continuou a minha amiga ensimesmada, a ruminar no que Roquette disse sobre a mudança do país.
- Ai, isso não pode ser, porque o roubo proporciona riqueza e os megaprojectos alimentam-se disso. E a gente indústrias não cria, agricultura não tem, a não ser de passagem. Há camiões que transportam sacos com a nossa produção agrícola, é certo, para a passagem sempre um pouco envergonhada pelas ruas, mas os Pingos Doces fornecem-se mais no estrangeiro. De maneira que o Roquette não devia querer significar o fim do latrocínio, para o seu projecto vingar, mas uma maior abertura nesse campo, para desenvolver um turismo de qualidade, pois não temos hipótese de variantes para a mudança, como o aumento da exportação.
- O que é certo é que o Roquette estava preocupado. Toda a vida sonhou com esta obra e vai realizá-la, disse que andava há dez anos a trabalhar nela, que se iniciou agora com o Parque. O Sócrates estava encantado, parece que a obra vai dar trabalho a muita gente, e disse também que assim é que é, que vai ser uma obra de “luxo asiático”, ainda por cima...
- Luxo asiático? Que horror! Sempre o novorriquismo da nossa pequenez! A menos que sejam influências livrescas beaudelairianas, da “Invitation au Voyage”, lá onde “Tout n’est qu’ordre et beauté / Luxe, calme et volupté”. Mas, enfim, Deus dê muita vida e saúde ao Roquette para levar o seu sonho avante, exclamei, associando-me ao encantamento da minha amiga, mau grado a sua preocupação por causa da preocupação deste. - Já estou como o nosso PM, o que era preciso é que muitos mais empresários investissem aqui e não fizessem como aqueles fulanos que se pisgaram para fora do país com os frutos das suas espoliações. Ao menos podiam mandar de lá para cá uns nacos patrióticos do que aqui sacaram. Eram gestos bonitos, a merecer estátua. Mas esses não são empresários.
- Estátua terá o Roquette se conseguir realizar a obra de tal gabarito turístico
, concluiu a minha amiga, sonhando com bruxas – as bruxas do nosso patriotismo.
A menos que sejam do nosso materialismo, não quero pintar-nos melhores do que realmente somos.

terça-feira, 20 de abril de 2010

“Não quero ser a última”

O meu filho João embarcou hoje para Luanda. Ontem pôs-se o problema das saudades, aliás tema que já vem sendo tratado ao longo dos dias da sua estada cá. O pai diz que a mamã e a Beatriz vão ter muitas saudades dele, mas logo a Beatriz, quatro anos suavemente desenvoltos, contesta: “- Não é a mamã e a Beatriz, é a Beatriz e a Mamã.”
- Então porquê, filha?
- Porque eu não quero ser a última!
Nada a fazer com o egotismo das crianças. E tem razão a Beatriz, ao reivindicar o seu posicionamento no agregado familiar. Os filhos são o centro do mundo dos pais. Sempre se ouviram histórias dos sacrifícios das mães ou dos pais pelos filhos, prova dessa verdade.
Não é sempre assim, a gente sabe que não. Mas é-o na generalidade. Por isso, todas essas histórias de raptos, pedofilias, violências de estarrecer sobre as crianças indefesas, de órfãos desamparados, de crianças com fome, e ultimamente as histórias ouvidas de talibans fundando escolas de uma pedagogia de auto-imolação de crianças visando a imolação gratuita de gente, nos deixam, não boquiabertas, que nas nossas idades – minha e da minha amiga - não é definitivamente estético, mas infinitamente tristes, na constatação de um mundo de pesadelo, também na questão das crianças, em que se sufoca tantas vezes, na sua difusão pelos “media”.
Por isso, na lembrança do filho que partiu e que deve estar quase a pisar solo africano, na tristeza também deste fim de tarde que se pôs chuvoso e fusco, a condizer com a tal saudade de que se falou ontem em casa da Beatriz, e a condizer com o sentimento de indignação que nos sufoca quando falamos das tais criancinhas sujeitas aos malefícios do seu destino, transcrevo um texto de “Prosas Alegres e Não”, que dedico ao pai da Beatriz – por conta das saudades que vai sentir pela sua filhinha reivindicativa do seu espaço à cabeça dos seus papás, e que, entretanto, já pisou o solo de Luanda :

Aqueles corpinhos tenros”

«Criara o primeiro filho segundo os preceitos rígidos que sempre ouvira ao pai e que os médicos aconselhavam. Mamadas certas, um descanso permanente, no quartinho envolvido em repousante penumbra e silêncio. E de facto não lhe dera problemas o seu primeiro filho. Tirante uma ou outra otite ou constipaçãozinha naturais, a criança vingava bem, gordinha do leite da mãe e mais tarde das papinhas feitas a preceito. Nem sequer era chorão, o seu bebé. Ela também precisava desse sossego, não só porque trabalhava, mas porque o choro dos bebés é sempre enervante. E nessa altura ela, ainda jovem, pensava que um dia perdido, ou uma hora sequer, a embalar o seu menino nos braços, era habituá-lo mal, porque as crianças adquirem logo manhas que convém evitar desde o início. Não tivera manhas o seu primeiro filho. Era uma criança saudável, que comia bem e dormia bem.
E no entanto, muitas vezes pensava que são mais felizes aquelas mães que criam os seus filhos sem olhar a regras e invejava até as mamanas que passavam nas ruas, levando os filhos bem junto delas, ora atrás, dormindo, ora à frente, mamando. O seu filho tinha regras a seguir, para lhe dar boas noites a ela, visto que trabalhava. E passava o tempo dormindo no seu bercinho.
Quando teve o segundo filho – uma menina – passou uns tempos com os pais. Bem gostaria de aplicar a esta as mesmas noções que haviam dado tão bom resultado com o primeiro. Mas lá estava a mãe para lho impedir. Se a bebé chorava, logo a avó ia buscá-la e embalá-la nos seus braços. A avozinha cozinhava, a bebé assistia, encaixada no colo terno. Nada valiam reparos, noções, conselhos doutorais. A avozinha já sabia dar o verdadeiro valor às coisas, e para ela valia mais uma hora perdida, gozando o frescor do corpinho tenro da neta, do que as outras coisas inadiáveis que afinal o não eram tanto. Bem sabia a doce avó que esses corpinhos tenros depressa deixam de o ser e que a vida os leva para longe de nós mais cedo do que julgamos.
Teve outros filhos – os últimos mais novos do que os primeiros.
Também ela sabe agora dar mais valor àquele ser pequenino que tanto depende de si. Já não se impacienta tanto se o seu bebé lhe chora. E embala-o nos braços, sem medo de que ele crie manhas. Porque as crianças pequenas muito cedo as adquirem. Mas ela sabe agora quão fugazes são os instantes em que poderá embalar o seu filho, tê-lo todo para ela, e não se importa com as manhas.
Por isso faz coisas que nunca julgou vir a fazer algum dia. Quando o bebé chora de noite, mesmo depois de beber o leite, já não pensa como dantes que não convém dar-lhe maus hábitos. Leva-o para a sua cama, sem receio da atmosfera menos pura para o seu filhinho.
E uma nova felicidade a invade, ao sentir o corpinho tenro, quentinho junto a si, dormindo o sono descansado que só a não deixa a ela descansar bem, com receio de o perturbar. Mas não se importa de não descansar tanto. Há sempre tempo para o fazer – mais tarde.
É que, sobrepondo-se a essa contrariedade que a faz no dia seguinte andar um pouco ensonada no seu trabalho, está a presença pequenina que ela desejaria reter junto a si, sabendo bem como são irremediavelmente breves esses momentos de dependência plena e absoluta, desse corpo pequenino que depressa crescerá, liberto da sua tutela, e que bem cedo lhe imporá a sua própria personalidade.»

Os lugares cimeiros... A Beatriz tem razão hoje, na sua reivindicação de prioridade. Será que vai pensar assim quando for grande? “Che sarà, sarà? Nessuno saper potrà”... Oxalá que sim, e que o saiba merecer. Embora os lugares intermédios sejam, talvez, menos fastidiosos.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

I’m sorry, Phaedrus

Tive um domingo ocupado, não me lembrei da fábula do cão ávido, segundo Fedro, do livro de latim do meu 6º ano do liceu. Faço-o hoje, com velha ternura por um fabulista muito posterior a Esopo, que viveu no século de Augusto, e que transpôs para verso as fábulas a este atribuídas, como, no seu Prólogo modestamente afirma: “O autor Esopo criou a matéria que eu limei em versos jâmbicos. Duplo mérito o livro tem, que move ao riso e que aconselha uma vida de bem” . É, provavelmente, uma fábula de origem oriental, essa do cão néscio, como grande parte das fábulas atribuídas a Esopo, do século VI a.C., só no século IV a. C. reunidas em volume por Demétrio de Falero. Reponho, pois, a fábula por mim esquecida, do autor latino, que apresenta como subtítulo, o provérbio em português “Quem tudo quer tudo perde”, para seu complemento moral:

«O cão que levava carne no rio»

«Quem cobiça o alheio perde, muito justamente, o próprio bem. / Como levasse carne, ao atravessar um rio, / Um cão, no espelho das águas, viu a sua imagem; / E julgando que outra presa por outro era levada, / Quis furtar-lha: realmente, a sua avidez foi enganada, / Pois perdeu o alimento que na boca levava / E, além disso, não pôde alcançar o que ansiava.»

Enquanto, pois, Esopo conclui a sua história pela moral, aplicado o exemplo ao homem insaciável, Fedro inicia a sua com o aviso prévio de castigo consequente do erro, lição generalizada a todos os homens, seguida da narrativa, de idêntica estrutura semântica.

Quem tudo quer, tudo perde”, dizia-se, pois, antigamente. Eram provérbios assim, de uma moral de bons costumes, que havia no colégio do Sr Muche, pendurados em quadros nas paredes, que o honesto Topaze ensinava convictamente aos seus alunos. Até que um dia percebeu que essa moral apoiada pelos “chefes” ( do latim “caput”, cabeça) se dirigia exclusivamente aos “pés”, ou seja, aos subordinados - às “bases”, segundo terminologia do momento. E o modesto professor da peça de Pagnol, em breve singraria por idênticas vias de acção dos chefes, mandando às urtigas os provérbios da sua ingenuidade.
Os pobres fabulistas moralizadores não passam, hoje, de dinossauros de museu. Como os provérbios da sabedoria popular. Ou seja, de papalvos para papalvos, nunca para “doutores”.

O homem insaciável

É muito conhecida a fábula do cão – cadela em Esopo, não sei se por resquícios machistas já em uso - que, enganado pelo seu reflexo na água, tomou a coisa como realidade e vá de se atirar a ele para apanhar o bom bocado que ele próprio levava e não reconheceu.
Das três fábulas que seguem, é a de Esopo a mais terra-a-terra, com a justificação dos actos e uma moral sintética sobre a ambição humana, a de João de Deus a mais ficcionada, o pedaço de carne de Esopo transformado em ágil coelho escapado à morte por conta da ilusão humana, a de La Fontaine a mais crítica e a mais filosófica, pondo em jogo o erro e a loucura humanos de definir a realidade pelas aparências, à maneira platónica:
De Esopo (Fables)A cadela e o seu pedaço de carne
«Uma cadela levando na boca um pedaço de carne queria atravessar um rio, quando avistou o seu reflexo na água e supôs que era outra cadela que transportava um pedaço de carne ainda maior. Por isso, lançou-se à água, não sem antes ter largado o seu naco para apanhar o da outra. Como consequência, perdeu ambos: um, porque não pôde atingi-lo, já que não existia, e o outro, porque foi levado pelo rio. Esta fábula visa o homem insaciável.»
De La Fontaine, “O Cão que deixa a presa pela sombra
«Todos se enganam cá na Terra: / A gente vê correr atrás da sombra / Tantos loucos, que a maior parte das vezes lhes perde a conta. / Ao Cão de que fala Esopo / Temos a obrigação de os enviar. / Este Cão, vendo a sua presa na água representada, / Deixou-a pela imagem e pensou que se ia afogar, / A ribeira de repente agitada; / A muito custo chegou à margem, / E perdeu a sombra e o corpo, de uma só penada.»
De João de Deus,O Cão e a presa” (in “Campo de Flores!)
«Um cão apanha um coelho / À margem de uma ribeira, / Mas vendo-o naquele espelho, / Larga-o, salta a ribanceira... / E assim perde o que levava, / E mais o que ambicionava! ! Abençoada prudência / (E é esta a moralidade!) / Quantos pela aparência / Perdem a realidade!»
Hoje em dia, tal fábula não se vê que se aplique ao homem moderno, o insaciável de que fala Esopo, que perde o certo pelo duvidoso. O homem hoje, no rasto do duvidoso – ou do ilícito, como se lhe chama também – vai aforrando o certo, cada vez mais cheio de “certezas”, e sem Platão à vista.

domingo, 18 de abril de 2010

As facúndias da nossa desistência

A minha amiga chamou-me a atenção para um disparate que escrevi quando escrevi sobre o Figo, que não tinha necessariamente que se justificar mais, a respeito do Taguspark da sua competência, nem por escrito nem oralmente, já que foi ilibado das acusações de corrupção que pendiam sobre si. Quem poderá justificar-se por escrito das pendentes sobre si próprio é só o nosso Sócrates, que até pode entregar o seu caso a um Platão moderno que lhe gravará a doutrina. Ponto final, pois, os assuntos estão arrumados.
Do que hoje se falou no café matinal foi mais do debate na Assembleia de ontem ou de anteontem, em que se continuou a atacar e a contra-atacar sem nunca haver justificação que prestasse, que o nosso PM está contente com o seu PEC que lixa sobretudo o povoléu que somos, com o seu Freeport ilibado, com a sua Constituição contra a reforma dela proposta pelo Passos Coelho, com o encerramento das suas escutas, com o aumento dos combustíveis na sua Nação, com os vencimentos ou prémios fabulosos dos Mexias da praça, consigo próprio, que se defende sempre do mesmo modo – nunca respondendo cabalmente às questões postas e preferindo enveredar pelo caminho da queixa vibrante e da ironia feroz, cego, surdo e mudo a acusações mais ou menos justas – e com isso tudo obtendo vantagens inefáveis do seu povo inominável que promete elegê-lo, segundo as sondagens que são indicadas na precisa altura destes debatezinhos onde nunca se decide nada no meio da facúndia falaz, ferina e fuliginosa.
E aqui andamos nós nestes debates quinzenais, volumosos no som, mas os desempregados não se queixam, nem o povoléu sempre lesado que somos, porque as sondagens dizem que ele é o maior, é o nosso herói e ele sabe-o bem, única pessoa realmente livre de avançar pelos caminhos do seu entendimento, qualquer que ele seja.
E afinal nós ambas até achamos bem, pois tanto faz um como outro a governar, que o povo nem sequer deixa governar, com tanta greve ruinosa, ninguém se preocupa muito com o que vai por aí de estragos na ordem, e se vier outro PM será o mesmo, que o povo é quem mais ordena, e se lhe der para destruir a Nação, até a destrói sem pejo, a coberto da decência e da justiça, na boca dos deputados opositores, sobretudo os da esquerda que vão manipulando como lhes apetece e o povo obedece como lhe convém, um pouco à maneira da educação escolar suicidária e genocida organizada pelos talibans junto dos seus adolescentes.
Enfim, não há motivo sequer para atacarmos tanto a nossa irregular governação. As irregularidades processam-se no mundo inteiro, só que nós conseguimos ser ainda mais disparatados do que todos os mais, pois até nos sujeitamos a que um presidente de um qualquer país europeu lance alfinetadas sobre o nosso país no meio do mutismo ou dos sorrisos amarelos da nossa cobardia.
Na realidade, recebi um extenso email de que extraio alguns parágrafos, segundo tradução da fonte citada:
http://www.lepoint.fr/actualites-economie/2009-05-19/revelations-les-retraites-en-or-des-hauts-fonctionnaires-europeens/916/0/344867:

Foi aprovada a aposentadoria aos 50 anos com 9.000 euros por mês para os funcionários da EU!!!. Este ano, 340 agentes partem para a reforma antecipada aos 50 anos com uma pensão de 9.000 euros por mês.”

“Você e eu estamos a trabalhar ou trabalhámos para uma pensão de miséria, enquanto que aqueles que votam as leis se atribuem presentes de ouro. A diferença tornou-se muito grande entre o povo e os "Deuses do Olimpo!"

“Não há dúvida de que os tecnocratas europeus continuam a gozar à nossa custa e com total impunidade, essas pensões. Nós temos que levá-los a colocar os pés na terra.....”

E os governantes, legisladores, e tutti quanti, até são capazes, no mundo inteiro, de se apodarem de humanistas!
Têm razão, que a humanidade polariza-se em torno deles próprios, únicos humanos a preservar, pois que identificados com os “Deuses do Olimpo”, segundo o texto.
Até o nosso Gama, se conseguiu a sua proeza pelos anos 1498, a deveu a consílios dos deuses - olímpicos e marinhos.
Não somos superiores ao Gama, temos que nos sujeitar. Mesmo neste ano da graça, de 2010, de consílios mais poderosos ainda, já que de humanos deuses se trata.

sábado, 17 de abril de 2010

Enxovalho gorado

Falámos no nosso Presidente da República que está entalado na República Checa, por falta de aviões que o tragam de volta ao seu país natal e aos empresários que com ele foram para com ele virem. À conta de um perigoso vulcão islandês que resolveu explodir em nuvens e cinzas terríficas impeditivos das carreiras aéreas europeias, as pessoas que foram apanhadas no torvelinho caótico bem que se tramaram. Entre elas o nosso PR e os que com ele foram. Eu ainda achei que a pausa forçada era uma maneira prática de ele se distrair numas passeatas, sempre propícias ao alargamento da cultura, e julgo que sim, que as fará, para depois divulgar o que viu aos que não puderam ver.
Mas o que a minha amiga ouviu e eu não, que ultimamente tenho perdido as notícias de relevo, é que o Presidente checo se dirigiu ao nosso em termos um pouco nervosos, interrogando-o sobre se a crise no nosso país não punha os portugueses nervosos. A minha amiga não gostou do que ouviu, mas eu já consegui ouvir a notícia no jornal da noite e não me pareceu que tivesse sido tão grave assim, porque o nosso Presidente conseguiu superar a vergonha do enxovalho, justificando a atitude do Presidente checo como uma medida de alcance económico por conta das diferenças da moeda que na República Checa não adoptou o euro como nós e se o défice lá é agora menor do que o de cá, em 2013, com as políticas do nosso Governo em que o nosso Presidente crê, o nosso défice vai ser bem menor do que o checo, pois que o nosso vai baixar bem e o checo não faz contas disso, na justificação do nosso Presidente, que é um economista com provas prestadas.
Para justificar as boas relações portuguesas e checas, sintoma de bons negócios futuros, a esposa, Maria Cavaco, até apoiou o marido dizendo que tivera um aluno checo, na universidade, namorado de uma aluna portuguesa, não me lembro se alentejana ou beirã ou provavelmente algarvia, se é que não era minhota, ou mesmo de Trás-os-Montes, o que muito a espantara na altura e alegrara, pela demonstração do alcance da nossa empatia como povo, que consegue obter namorados da República Checa.
Isto foi o que eu ouvi, que me levantou o moral, que descera com a notícia telefónica da minha amiga sobre o enxovalho checo. O nosso Presidente até disse também umas graças sobre a sua confiança nos poderes que o impediam de regressar a Portugal sem ser em segurança absoluta, mesmo tendo em conta os gastos suplementares que o povo pagará com a dedicação de sempre, não é lá como os Polacos que perderam o seu Presidente e comitiva por ausência de resguardo suficiente, aliás, por não contarem ainda com o vulcão impeditivo e além disso confiarem nos Russos.
A minha amiga tudo toma como agressão e nem sempre tem razão, como demonstrei, apologista como sou da verdade histórica.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Já está despachado

Desta vez tratou-se do Figo, que a minha amiga anda a par de todas e não perdoa nenhuma, ao contrário da minha índole branda, mais criada dentro dos valores da misericórdia divina e menos dada às leituras da cólera terrena. Disse ela então:
- A ignorância da lei não aproveita a ninguém, dizia o inspector do ensino em Moçambique, Moás Gonçalves...
Eu, naturalmente, não atingi logo o seu pensamento em toda a vastidão, mas ela esclareceu:
- Veja-me lá por onde anda o dinheiro do Zé pagante! Se o Moás Gonçalves vivesse, tinha que chegar à conclusão de que estava enganado! “Quem prevarica e diz que desconhece a lei é castigado na mesma. Não serve o dizer que desconhece.” Era o que ele dizia.
Eu continuava obtusa:
- Mas onde quer chegar? Com tantos a justificar-se pela ignorância...
- Ao Figo. Quero chegar ao Figo! Porque o Figo recebeu não sei quanto
na negociata do Tagus Park, um dinheirão...
- Não interessa, deixe-o lá, coitado, ele não é menos que os outros, ora essa! – era a minha misericórdia a interceder pelo Figo, que sempre me pareceu um bom rapaz sério.
- Afinal o dinheiro que lhe foi parar às mãos é do Zé pagante. Pronto, mas declarou que não sabia e foi ilibado. O que é que é preciso para se ficar enterrado até à cabeça?
(A mania da minha amiga de enterrar! E logo até à cabeça, credo! E nunca o machado da paz, que não é assim compreensiva como eu!) Ele já disse que vai responder por escrito e não vai acrescentar mais nada do que já disse na Assembleia. Já está despachado!
- Estão todos. O Sócrates também vai responder por escrito, e até se compreende, com tantas obrigações que tem em mãos...
- Mas isto é já uma pouca vergonha daquelas que não se sabe se dá para rir se para chorar!
- Rir é o melhor remédio, diz-se por aí, e suponho que foi o Rabelais que afirmou que “le rire est le propre de l’homme”, temos que aproveitar as coisas boas da natureza humana.
- Mas os próprios jornalistas ou economistas entrevistados não têm a mínima esperança. Falam com uma convicção arrasadora, apresentam números fatais, como provas, como podemos rir? Uma das coisas que um deles mencionou foi o despacho do Cavaco para a construção TGV. Ele pergunta como.
- E os Sócrates respondem: “comendo...”

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Pausa antiga

Chamo-lhe pausa, porque tem a ver com experiência e trabalhos campesinos, desembocando em provérbios que a minha Mãe recorda, de cada vez que pergunta a data ou o mês em que estamos. Vivemos, politicamente falando, em momento de pausa, os provérbios irão esquecendo, à medida que as políticas agrícolas actuais forem fazendo olvidar tais operações e tais provérbios da nossa ruralidade antiga.
Já passámos por Janeiro que lhe mereceu a evocação de um homem da terra – o José Reis – que costumava dizer: “Em Janeiro sobe ao oiteiro: se vires pardejar pranta-te a cantar; se vires verdejar pranta-te a chorar”, seguida da explicação trocista e sinonímica do verbo “prantar-se” que diz significar “pôr-se”, corruptela de “plantar-se”, julgo. “Pardejar”, ficar pardo, cinzento, o tempo, merece o efeito do canto, como específico desse mês frio, ao contrário do incompatível verdejar.
Fevereiro passou sem referência, mas aproveitou para esclarecer que a sua cunhada Rosinda, companheira da infância e da mocidade, tinha um reportório muito maior.
Março marçagão, de manhã inverno, de tarde cara de cão”, embora insistíssemos no “de tarde verão” da nossa cultura livresca. Justificou o “cara de cão” com os ventos que vinham da Espanha, frios, que levavam os homens – entre os quais o seu tio Castanheira - a usar umas capuchas e umas carapuças com orelheiras para tapar do frio. E a propósito falou da roupa de burel, que quatro alfaiates vinham, contratados dos arredores, fazer na casa dos seus pais durante semanas. A lã dos carneiros era trocada nas feiras por maçarocas já fiadas, das fábricas da Covilhã, com que, nos teares, as mulheres da casa fabricavam o pano – mandil - que, enviado para a fábrica do pisão, em Matadegas, (para cima de Destriz, perto de Macieira de Alcova), vinha grosso, transformado em burel, para as roupas dos homens e as mantas. Uma fábrica de dados a minha Mãe se revela agora, citando os nomes dos alfaiates e dos lugares donde vinham, e das mulheres que levavam o mandil e traziam o burel... Não nos lembramos de referências destas tão precisas anteriormente feitas, mas vemos que um prazer revivalista domina os seus pensamentos actuais, modo de ir superando as suas dificuldades e dependência.
De Abril lembrou vários provérbios:
«“Em Abril, águas mil”; “em Abril, vai velha onde hás-de ir e à tua cama vem dormir”; “em Abril sai a bicha do covil”; “ em Abril, queima-se carro e carril. E um bocado que ficou ainda em Maio se queimou.”»
Creio que o tempo mudou. Os tempos mudam, os costumes também. Já ninguém faz roupas em casa. Já pouca gente cultiva os campos de outrora. As terras do Carregal tão férteis então, estão quase todas transformadas em terrenos abandonados, onde crescem as plantas daninhas, algumas delas ocupadas por vistosas casas dos emigrantes, que largaram os campos dos pais na mira da fortuna.
Ontem a minha amiga falou na batata que comprou no supermercado. Era francesa, a batata. Nas plantas do nosso alimento, vamos perdendo os trunfos da nossa independência.

terça-feira, 13 de abril de 2010

Resposta a Orkidea Lima do “PortugalClub”

Faz a Srª D Orkidea Lima um comentário ao meu texto “Pergaminhos”, confirmando, mais duramente ainda, a falta de humanidade dos auxiliares de medicina e a incompetência mais ou menos generalizada dos médicos, que vêm de tempos imemoriais, e apela a que se denuncie tudo isso, já que os impostos que pagamos deviam merecer uma assistência pública mais eficaz, sob todos os pontos de vista. Mas não merecem, nunca mereceram, não merecerão. Não temos educação cívica, na grosseria e bruteza a que fomos habituados desde os primórdios.
Lembro-me, era eu criança, de que as pessoas de Lourenço Marques – e não só, de todo o Moçambique - com poder económico, não se sujeitavam aos médicos ou tratamentos da terra. Deslocavam-se à África do Sul, onde eram eficientemente, educadamente e humanamente atendidas.
E não só para os dentes, organismos que desde sempre Portugal desconheceu como pertencentes ao corpo humano, com direito a tratamento gratuito. Estou a falsear a verdade. Um dia, devia eu ter os meus onze ou doze anos, fui ao Hospital Miguel Bombarda para tratar um dente doente. Mas os dentes doentes não eram tratados, eram arrancados e assim sucedeu comigo. O dente foi arrancado, creio que sem anestesia eficiente, foi arrancado a sangue-frio, pois só me lembro dos meus berros suplicantes e inúteis - o dente extirpado pelo arrancador de dentes que se aproveitou do facto de uma criança ter ido só, para exercer triunfalmente o seu sadismo - e do meu percurso a pé até casa, uns três quilómetros distante, pelas avenidas floridas, indiferentes ao meu choro ininterrupto, pela vergonha, assim soluçante, de apanhar o machimbombo.
Outras experiências de contacto médico foram perpassando na minha vida, e tive ocasião de descrever algumas, entre outras, em texto que transponho de “Pedras de Sal”, em segunda edição contido em “Cravos Roxos”, aquele, dos anos setenta, este, dos anos oitenta, mas que evoca um episódio da minha infância passado com meu Pai, que me ficou gravado no horror da indignação sempre presente.
Com esse, creio demonstrar à srª D. Orkidea Lima, que, tal como ela, eu não me furtei, já de longa data, a denunciar o erro de uma sociedade desconcertante. Mas, ou por falta de saliência dos meus livros, como de outros, ou porque o ditado nos diz que quanto mais se mexe na porcaria nauseabunda mais ela se expande, cada vez mais nauseabunda, levando-nos à contestação do slogan “Tudo vale a pena” pessoano, ou porque já não mudamos na aquisição de preceitos éticos, ou por isto ou por aquilo, ou nem sequer por nada, amorfos que somos, continuamos. Amorfos. Eis o texto:

« “Comei-vos uns aos outros”
Bons cursos são ainda os dos médicos para se obterem coroas. Não, talvez, às bateladas, como alguns advogados ou engenheiros com clientes e empresas de vulto próprias para um rápido alcance da áurea fortuna, mas é um dinheiro que vai pingando, como o sebo derretido a amontoar-se no fundo do pires: 300$00, 400$00, 500$00, 600$00, 750$00, etc, assim os médicos famosos, ao verem os doentes sem fama e com dores em dez minutos ou quinze – às vezes mesmo cinco bastam para analisar a natureza delas – das dores – fazem pagar cada letra da receita, incluindo as da assinatura, felizmente reduzida, senão maior seria a despesa do doente sem fama, a peso de ouro.
Ao fim do dia, não lhes deve ser difícil, aos médicos famosos, conseguirem acumular o que os seus doentes ganham em um mês ou dois e é consolador sabermos que, graças à profusão de doentes, a cidade aumenta de médicos abastados, capazes das grandes obras sociais, como sejam, a construção de prédios para embelezamento das artérias citadinas.
Há sempre refractários às consultas, daqueles que aguentam dores, para não terem de chorar a falta do pão e do arroz, também muito aumentados. Mas acabam por transigir com a ciência esculapina, pois o sofrimento faz esquecer o arroz.
Por vezes os médicos mandam voltar para revisão e a gente agradece reconhecidamente o interesse demonstrado pelo senhor doutor pelo nosso caso mórbido, mas as revisões também são pagas, com pequeno abatimento, mesmo que aquele só tenha comprovado que vamos indo melhorzinhos, graças a Deus, a ele, e aos antibióticos, de eficiência e careza perfeitamente demonstradas.
A gente julga que os médicos, além de terem aprendido a tratar os males – embora haja alguns muito desastrados que até nem isso, apesar dos antibióticos – estudaram uma qualquer disciplina de ética profissional, que equipara o seu ofício a uma espécie de sacerdócio do tipo João Semana, onde a dedicação pelos homens e suas dores os induzirá a não extorquirem o coiro e o cabelo aos pobres miseráveis doentes que não se podem furtar a serem extorquidos, uma disciplina que os levará a travarem, uma ou outra vez, os seus passeios dos fins-de-semana, quando os desastres ou as dores mais se lembram de atacar, e os médicos citadinos, de bolsas bem cheias com as receitas da semana, fizeram debandada geral para gozo de aprazíveis férias.
Outras vezes são outros compromissos que os impedem de estar presentes. Nunca me esqueço de que, quando pequena, o meu pai, martelando no quintal num domingo de manhã, feriu-se gravemente num olho com um prego. Foi em veloz táxi para casa do doutor dos olhos, mas era a hora da missa e aquele mandou-o esperar enquanto ele cumpria as suas devoções, que depois da missa inspeccionaria o olho ensanguentado com a alma mais limpa doe pecados e a visão mais clara do mal.
Esta febre medical de atingir num ápice o cume do bem-estar e da importância gerados pela riqueza não tem controlo, tal como sucede actualmente em todos os outros sectores da vida económica e da administração.
As taxas telefónicas, por exemplo, abrangeram neste mês da graça, já dois meses de ajudas de custo, além dos 200 ou 300% a mais que se pagam do restante, provocado pelo excesso de chamadas resultante do cruzamento de linhas que obrigam a discar duas erradas para se obter a chamada certa, ou a desligar a certa para não se escutarem duas erradas que poderão estar a roer-nos na pele em cruzamento inocente. Também o papel higiénico aumentou de preço e diminuiu de volume e de possibilidade de aquisição e até as próprias conservas deixaram de conservar o preço anterior, num duplo-salto espalhafatoso.
E o povo protesta mas paga, e o coro geral é de horror e de estupedificação perante a avalanche com que uns homens, como vampiros, saltam em cima dos outros, sugando-os e esfolando-os com animação.
“Comei-vos uns aos outros”... Mas o mal é que nisto de comer são mais os uns do que os outros, e sem reciprocidade.»

E tudo isso alastrou, na amorfia da democracia reinante.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Contra o celibato forçado...

- Já disse tão mal dos padres hoje, que agora tenho que olhar para o chão com muita atenção.
Mas aquilo sobre que a minha amiga dissera mal fora sobre os escândalos de pedofilia na Igreja, para além dos mundanos, naturalmente, mas tinham a ver aqueles com o tramanço do Papa, responsável no seu encobrimento.
- Acho um crime tão grande, tão grande, tão grande - do tamanho do mundo! - contra essas crianças filhas de um deus menor! O desgosto com que ainda falam é de cortar o coração! Agora já há padres e bispos que vêm dizer que é preciso denunciar e castigar.
- Não podem calar, que estão entalados, por conta das investigações dos meios mediáticos. Têm que colaborar contra o escândalo, se querem singrar pela via da devoção.
Tudo isto veio a propósito das mancebias dos sacerdotes com as criadas que os serviam, ou mesmo as Ameliazinhas mais ou menos beatas que lhes caíam no papo.
Falámos do “Crime do Padre Amaro” que satiriza o tema, e do “Eurico o Presbítero” que denuncia, com severidade, uma injusta lei anti-humana, a do celibato sacerdotal, que Igreja e Papado ao longo dos séculos insistem em manter, sendo, por isso responsáveis na disseminação dos crimes de mancebia e ocultação de filhos, e, mais grave ainda, os de pedofilia, agora trazidos à luz da ribalta.
Eu concordei com a minha amiga, sobre a gravidade dos casos, que continuou:
- Cada vez menos a Igreja consegue aliciar ao seu rebanho os jovens seminaristas que, acabados os estudos, dão meia volta e zarpam. Mas os jovens que ficam, por devoção que seja, jovens e estuantes de vida, que mais podem fazer se não ceder às tentações? E as raparigas hoje não se coibem, estão na primeira fila para o ataque, já não é como as jovens seduzidas de antigamente, geralmente as humildes criadas de servir, de exploração mais eficaz.
- Se eles pudessem casar, mesmo que houvesse casos marginais, creio que a Igreja poderia singrar mais dentro do respeito dos valores que, desde sempre, ela apregoa e não cumpre, de longa data entregue ao deboche. Creio que é na ausência do casamento sacerdotal que está o busílis. Mas a Igreja sempre singrou forte e imponente, ao longo dos séculos, apesar do deboche. E os media aproveitam a sua actual posição de força espectacular para deitar abaixo, a pretexto dos bons princípios – que eles não seguiriam, caso fossem eles os tais sacerdotes vencidos pela gula e pela luxúria – essa Igreja poderosamente imponente a quem apetece desacreditar, na falta de respeito generalizada dos nossos tempos.
Isso me lembra uma fabulazinha de Esopo – “O cabrito abrigado e o lobo”, tão verdadeira entre os homens como entre os bichos, e que verifico diariamente com o meu “Fox”, correndo em liberdade e arremetendo, façanhudo, contra os portões das casas onde ladram os cães prisioneiros das grades dos quintais. Eis a fábula:

«Um cabrito que estava dentro dum edifício, injuriava um lobo que por ali passava.
- Olha tu, pois, - retorquiu o lobo – não és tu que me insultas, mas a tua posição de momento.
A fábula mostra que muitas vezes se deve às circunstâncias a audácia de se ser insolente para com alguém mais forte.»

A
pretexto da virtude zelosa dos bons costumes, vivemos o momento da insolência, do ataque, o momento da cobardia. Por excelência.

domingo, 11 de abril de 2010

Domingo de Pascoela

No almoço de domingo, que continuamos a compartilhar com a minha Mãe, agora na sua cadeira de rodas, e que não se calou, feliz, na sua berlinda de evocações, em que refina, com cada vez mais precisão de dados:
- Que dia é hoje?
- Domingo de Pascoela,
informamos, pacientemente.
E logo ei-la que repete a velha história da caminhada anual com a mãe, pelas serras fora, até Paredes, terra da mãe – a “Madrinha” do Carregal, que execrara o nome de “Avó” – onde esta ia nesse dia levar o folar às afilhadas que lá deixara quando casara. E as lágrimas escorrem pelas faces da minha Mãe, de saudade, mas de revivescência também dos cansaços dessas caminhadas pedregosas que a enternecem sobre si própria.
E atrás da caminhada vêm outras recordações em catadupa, parece que a minha Mãe se reservou toda para os tempos de outrora, que repete, numa dimensão que não conhecia, entremeadas de cantares e reflexões:
- Cantavam-se músicas religiosas, a Santa Combinha, a Senhora da Saúde, o Senhor da Serra...
“Ó Senhor da Serra vai
Gente de toda a Nação.
É só para ver a Deus
E os Santos que lá estão”
canta, com voz trémula de velhice e emoção.
Hoje veio à baila também a história do pai, que lhe ensinou as primeiras letras, antes de contratar uma professora que se revelaria maçónica. Era à luz de uns espetos de queirós – aguços – que o pai trazia aos molhinhos do monte e embranqueciam depois de esfregados e ressequidos, ardendo bem.
-Muito mal se vivia, lembra a minha Mãe, na constatação das comodidades em que é agora envolvida.
- Então mas não havia azeite ou velas de cera?-
É a minha irmã que estranha.
- Lembro-me das almotolias gordurosas - recordo também.
- Havia azeite, tínhamos oliveiras e cortiços, mas era para vender, e o azeite também para cozinhar, - responde a minha Mãe, na constatação feliz das farturas de outrora, sem esbanjamentos desnecessários.
- Mas havia um petromax na sala nova – falo vagamente.
- Mas era raro usar-se petróleo, era preciso poupar. Muito mal se vivia!
E a seguir vêm as histórias ligadas à família do meu Pai, que tinha tias e tios, que fizeram batota nas partilhas.
- Eu lembro-me da sogra da tia Lisete, em Destriz, quando lá fui numas férias – a tia Lisete, irmã da minha Mãe, fora um dos meus ídolos na infância – a contar que o papá quando levava as cabras para o monte em criança, ia sempre a ler pelos caminhos.
Recordámos o professor Nogueira das Benfeitas, exemplar perfeito da escola rude daqueles tempos, brutal, mas que ensinava bem. Os seus três alunos da quarta classe – entre eles o meu Pai, que o admirava – fizeram exame em Viseu e passaram com distinção.
A minha avó paterna sempre sofrera bem, menosprezada pela família, porque teve o seu filho solteira – filho de um padre a quem servira em nova. Era uma mulher seca e severa, a Avozinha, que passava temporadas na nossa casa, em Pinheiro de Lafões, antes de partir para África connosco, para junto do filho.
E neste momento de ternura familiar, é em sua homenagem que transcrevo um texto de “Prosas Alegres e Não”, publicado em 1973, - “O Pecado”, texto já sem relevo hoje, que se ultrapassaram os tabus do preconceito humano:

«Era solteira e teve um filho. Criava-o com amor, como se nesse filho procurasse o elo da cadeia que ainda a prendia à vida, depois do seu “pecado”. Porque, apesar da alegria comovida causada pelo pequenino ser apenas dependente dela, como reflexo do desprezo da família e conhecidos, passou a viver acabrunhada, deixando-se vencer pelos atavismos e convencionalismos de uma sociedade mais pronta sempre a atacar do que a defender e lançando geralmente o dedo acusador sobre o fraco para melhor esconder as suas próprias fraquezas. E ela bem via essa espécie de mistificação que a revoltava, mas fora criada dentro dos bons princípios, também ela criticara as que haviam escorregado na estrada lamacenta e aceitava, pois, humildemente as críticas, viessem, embora, dos menos “idóneos”.
Breve, a ideia de pecado avassalou-a e achou merecido o castigo imposto pela sociedade ao votá-la ao desprezo, tal como o fizera aquele que a abandonara e ao filho e que vivia feliz e impune na mesma sociedade aonde o “macho” é rei e orgulhosamente pecador.
Ela suportava o seu fardo, trabalhando para o filho e tentando vencer as despesas múltiplas surgidas, desde a casa alugada e a respectiva mobília, até à alimentação e ao jardim infantil onde as exigências do seu emprego a forçavam a meter a criança. A vida dela seria uma luta, um esticar da magra bolsa para sobreviver, e isso desde o nascimento do seu bebé para justificar o qual tivera que apresentar o atestado médico comprovativo de doença, pois o Estado lhe não concedera os trinta dias estipulados para as mulheres casadas legalmente.
Lutava, pois, corajosamente, tentando desenvencilhar-se, mas nos momentos de desânimo não deixava de referir o seu “pecado” que a conduzira àquela condição difícil.
Eu admirava-a, mas detestava ouvi-la falar em “pecado”. Porque ter um filho não é pecado. Seria negar a natureza e o dom divino de criar, considerar um filho um “pecado”. E o mais espantoso ainda é a boa fé, ou antes a ingenuidade do homem, ao incriminar a mulher que corajosamente se atreveu a deixar sobreviver o fruto amado dos seus amores.
Pecado um filho? Pecado é atraiçoar, é ser mesquinho, é deixar que a inveja nos corroa, é ser falso e desonesto, ser vaidoso e ser injusto.
Um filho é um milagre a cada passo renovado, algo que dá significação à natureza humana, na maravilha inefável do seu desabrochar.
Não, um filho não é pecado.»

Para ti, avozinha, Rosa Maria Henriques, que, em Lourenço Marques não falhavas a missa diária mais matutina, e um dia caíste no passeio, com o AVC fatal, que tão pouco tempo te manteve junto de nós, naquela terra estranha para ti, habituada que estavas aos espaços verdejantes da tua Destriz natal. A minha saudade, feita de memórias infantis, de uma proximidade reticente. Sou agora mais velha do que tu, quando morreste.

sábado, 10 de abril de 2010

Puerilidades

Temos expressado ultimamente uma comum opinião de comiseração.
Pelo PSD que, nos media, tem estado muito saliente.
O actual chefe fala com voz gutural, digo, um pouco de papo, sem ser papal, nem episcopal, nem mesmo abacial, à hora do sermão dominical na missa da rádio ou da televisão, jovem que crê na sua mais valia, que distribui galhardetes com alegria, sendo por quase todos – mesmo os que para ele perderam com galhardia – retribuído com simpatia, que se julga falsa – sem heresia - excepto a dos seus apoiantes que são bastantes e confiantes, na expectativa dos tachos - devidos a futuros cambalachos - que lhes caberão em sorte, caso venha a formar governo, no que nós ambas não cremos, que Sócrates é muito forte e para mais tem bom porte, em fatos de fino corte.
Como diz o meu filho Luís, sem qualquer pretensão de rima, que esse jeito falha a eito quando a vida parece entalada a preceito, o que é muito mal feito, diga-se com destemido embora dorido peito, como diz o Luís, pois, o leader dele é só um, Paulo Portas e mais nenhum. Protestei, depois, que para mim são dois, Ferreira Leite como PR, Paulo Portas como PM, Ferreira Leite por ser honesta e responsável, Portas por ser trabalhador, inteligente, e defender pontos de vista de uma governação saudável. Mas fui respondendo ao Luís, enfim, que só nós dois somos ingénuos assim.
É certo que Ferreira Leite anda muito nas bocas do mundo agora, depois que a puseram à margem, todos parecem render-lhe homenagem, mesmo o Passos Coelho, que, igualmente, tece loas ao Cavaco Presidente, a apoiar a sua candidatura futura, já que precisa dum candidato para o seu governo da altura. Mas este fecha-se em copas, que não desce do seu pedestal olímpico para agradecer as boas palavras do jovem Coelho iniciante.
Cá por mim acho - permita-se-me a redundância – que é tempo de o actual Presidente retornar ao seu mundo familiar de virtude, para dar lugar a uma candidata de quem se fala hoje amiúde, e mesmo à exaustão, embora quem fala dela sejam os da sua igualha, ou seja, os que a apoiavam antes, não sei se apenas por cortesia, pois não a defenderam bem então, excepto o Pacheco Pereira, se por picardia hoje, contra os que venceram no presente, à sombra da bananeira, ou seja, com grande protecção dos jornalistas da televisão e dos seus amiguinhos do PSD que se estão nas tintas para a nação.
Entretanto, o avião polaco que se despenhou mostrou a relatividade e a pequenez de quaisquer eventos. Mas eles, os do Coelho tecem-se elogios, tratam-se por você, vê-se que estão felizes. É o seu momento, deixemo-los exprimir-se, deixemo-los espremer-se. Nas suas pequenas certezas, nas suas pequenas espertezas. Nas suas proezas.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Uma de insectos

«Era uma vez uma pulga que não deixava o homem em paz nem em descanso. Este apanhou-a e disse-lhe: “Quem és tu que te repimpaste sobre todos os meus membros, mordendo-me a torto e a direito?” “É assim que vivemos”, respondeu a pulga; “poupa-me, porque não posso fazer grande mal” O homem desatou a rir: “Tu vais morrer já”, disse-lhe ele, “e pelas minhas próprias mãos: seja grande ou pequeno, é preciso extirpar o mal sob todas as suas formas.”
A fábula mostra que não se deve ter piedade de quem faz muito ou pouco o mal.»

Com isto, discutimos a pena de morte. A mim repugna-me. Tenho uma sensibilidade muito depurada, já de criança. Se uma mosca e até mesmo vespa caíam na água do tanque onde se lavava a roupa, e remexiam patas e asinhas aflitivamente, eu acudia-lhes, fada benfazeja, sentindo os seus estertores como meus. As pulgas não, é certo, nunca poderia perdoar-lhes, quando logo ao entrar nos eléctricos em Coimbra, instantaneamente lhes sentia as picadas. Vivi horrores, e era sempre nos eléctricos que as apanhava. Nunca em África as contactara, foi grande a surpresa cá. Em África, era mais a filária que me atravessava os pés, em comichões danadas, por causa de brincar descalça, no terreno atrás da nossa casa. Essa, nem com o éter que ia pôr no Hospital Miguel Bombarda, desaparecia dos meus pés, em carreiros indecorosos. Um sangue doce o meu. Azedou com a idade. Mas continuo a safar os caracóis quando estes aparecem nalguma folha de alface ou de couve vindas do quintal. Imediatamente o despacho, são e salvo para as hortaliças exteriores, junto do compadrio. Mas nunca perdoei às baratas, pisando-as com gritos de terror, o que significa que a doçura piedosa em mim é um pouco arbitrária.
Às vezes digo que os incendiários deviam morrer nos incêndios, mas peço perdão a Deus dos péssimos pensamentos que albergo. A minha amiga é mais drástica, não pede perdão dos seus. Acha que gente há merecedora da pena de morte e até defende a eutanásia, no caso do prolongamento das vidas que já não são vidas, engelhadamente sustentadas por máquinas e alimentos, sem nada sentir a não ser uma leve reacção de incómodo quando a comida lhes entra pelo tubo do nariz. Mas quem era capaz de mandar retirar os tubos e tornar-nos responsáveis pela morte do ser que se ama e se vai conservando junto de nós? Pouca gente o faria, embora considere a crueldade de manter viva uma pessoa que, não fossem os tubos, já teria morrido menos dolorosamente, talvez, e mais dignamente, decerto.
É complicado assumirmos a responsabilidade da morte de alguém e no caso da pena de morte creio que nenhuma de nós o afirmamos seriamente.
A História está pejada de horrores assim, quer por fusilamentos, decapitações, cadeiras elécricas, envenenamentos, câmaras de gás, e imagens há em quadros ou fotos inesquecíveis desses horrores cometidos pelos homens de todos os tempos.
Não, o Esopo é muito antigo, o mal nunca se chega a extirpar, não digo que se deva ter piedade por quem o pratica, embora Cristo tenha dito que sim, mas é porque Cristo era Cristo e viveu numa época em que não havia ainda Hitlers, nem outros poderosos da mesma igualha, ainda que já houvesse Neros e Tibérios apontando as vias da monstruosidade moderna.
Quando a minha amiga diz concordar com o Esopo sobre o ser-se impiedoso em certos casos, sei bem que ela não seria capaz de castigar assim ninguém. Todavia, é numa época de monstruosidades que vivemos, com guerra, que Vieira definiu tão magistralmente, ou com paz, conquanto fictícia. Que os que limpam as armas na paz, vão limpando da mesma forma o sabugo às gentes.

Comentário dilatado

O texto “Novos tempos” de Gabriel Cipriano, que tem como subtítulo “calúnias em tempo de paz não levam à guerra, toleram-se”, explora o tema do saudosismo pela época salazarista de alguns críticos da nova república democrática, considerando ele a impertinência desse posicionamento de cegueira propositada relativamente a um passado marcado, segundo esses cegos, por uma maior rigidez social e respeito de valores que o Estado democrático fez eliminar.
Gabriel Cipriano considera que nunca se evoluiu tanto como agora, fechado a quaisquer razões de bom-senso, apostado na apologia dos novos tempos, ofuscado pelo esplendor das liberdades e ousadias actuais, sem pesos na consciência nem respeito, sequer, pela catadupa de desempregados de agora, nem atenção relativamente a um ensino deficitário a uma juventude criada na irresponsabilidade, na indiferença ou na indisciplina, deixando prever consequências irreparáveis sobre o país futuro.
Gabriel Cipriano ataca os que assim caluniam o presente, prontificando-se a uma tolerância irónica, porque os sabe inofensivos, num estado socialista que se impôs nos seus jeitos tentaculares paralisantes, mau grado os murmúrios ou os apelos denunciadores dos seus desmandos.
No comentário que fiz ao seu texto, apontei a inverdade sobre os, segundo ele, acomodados do antigo regime, que, se reconhecem valores nele, não deixaram de o atacar nos defeitos que nele reconheceram.
Isso me levou a exemplificar com um dos textos que escrevi pelos anos setenta, contido no livro “Prosas Alegres e Não”, de 1973, demonstrativo dessa inverdade arbitrariamente e capciosamente lançada no texto de Gabriel Cipriano:

“O Velho Reformado”
«Reformara-se havia uns tempos, e como não lhe chegasse o ordenado para fazer face às despesas certas da renda de casa e do merceeiro, resolvera procurar um emprego que equilibrasse o seu barco, o qual jamais fora impante veleiro, mas modesto baixel, singrando devagar numa vida apertada e difícil. Muitos filhos, uma profissão modesta, descontos largos para aquela reforma que, quando chegou, se revelou mais que insuficiente.
Agora tinha os filhos já feitos, é certo, alguns casados, todos felizmente com emprego, todos, felizmente seus amigos, desejosos de auxiliar os pais, a quem deviam a sua formação.
Mas o velho reformado, couraçado atrás de um orgulho justificável, recusara-se a aceitar o tributo merecido. Sentia-se válido ainda, não precisava de mendigar a esmola de ninguém. E procurou emprego.
Dias após dias se dirigiu às firmas anunciadas nos jornais, que pediam empregados. Mas sempre o recusavam, atendendo à idade avançada do homem que se sentia, afinal, cheio de vida ainda.
A mesma dignidade que o impelira sempre a seguir por si, fazia-o não suplicar agora a ajuda de ninguém. Os filhos, como desejavam proporcionar aos pais o justo descanso, não se afadigavam a facilitar-lhe o almejado emprego.
E o velho reformado ia cismando na vida, e procurando trabalho em vão.
De repente, soaram zunzuns sobre o aumento dos vencimentos. Céptico, calculou logo as consequências sobre a carestia da vida. Entretanto, pensava contrabalançar o facto, com o referido aumento.
Não se enganou quanto à carestia. Não calculou, porém, que também o Estado deixara de o reconhecer como pessoa válida e com naturais necessidades. A vida podia subir de nível e de preço para os outros. Para o velho reformado, nível e preço não contavam, convinha até que entrasse em regime dietético, por imposições de saúde. Teria, pois, de se contentar com a magra pensão que lhe fora estipulada, e para receber a qual, passara uma vida trabalhando e descontando.
Não, o aumento não fora para ele. Estava velho, trapo usado que se põe para o canto ou se larga ao vento. Não merecia aumentos, visto que deixara de colaborar na máquina do Estado. Este nunca fora muito pródigo, mas agora revelara-se desumano, filho ingrato abandonando o velho pai inútil no cimo do monte.
Conseguiu, finalmente, um emprego. Coisa pobrezinha, não podia aspirar a muito, estava velho. Mas, enfim, o Estado podia ficar descansado, no caso de surgirem escrúpulos: ele não morreria à fome com a sua reforma. Tinha um emprego para auxiliar. Também a sua companheira de tantos anos o ajudava o mais que podia. Eram só dois, não precisavam de criados, ela até se entretinha nas lides da casa.
E a velhice de ambos ia decorrendo tranquila, embora economicamente difícil, como fora sempre a sua vida, que já não valia a pena alterar.
Mas cismava, o velho reformado, nessas espantosas incongruências que vão por esse mundo de Cristo, e que o sentido de equidade, existente, afinal, nos humanos e por Cristo também pregado, se não apressa a rectificar.»

Outros mais textos poderia citar sobre problemas sociais daqueles tempos, ao sr. Gabriel Cipriano, para lhe provar a sem-razão da sua desconfiança sobre a cegueira apenas e só admirativa dos defensores da segunda república. Mas não adianta, que a sua cartilha é outra, e os princípios que defende certamente que lhe convêm. Não deve esquecer, todavia, a liberdade de opções que essa cartilha proporciona a todos.


quinta-feira, 8 de abril de 2010

“Está-se a gastar muito tempo na conversata”

Eu nem percebo porque é que a minha amiga se indigna. Hoje saiu-se com esta e eu tomei logo nota num guardanapo da casa, mas acho que nós também não fazemos mais nada que gastar tempo na conversata, agora menos porque ando “a toque de caixa”, que a minha Mãe não é das pessoas conformadas com o destino e exige atenção constante, a gritos ou gemidos de metralhadora.
Voltou-se – a minha amiga – para a minha filha, que as férias da Páscoa disponibilizaram mais para uma curta companhia na nossa bica diária, e continuou:
- Eu digo-te uma coisa. Tenho que andar sempre a olhar para o chão, que Nosso Senhor castiga sempre, por causa das críticas.
A minha filha ponderou, do alto da sua experiência humana e livresca:
- Com a idade as pessoas aguçam a sua maneira de ser. Lembro-me da minha madrasta e do meu pai. Com a idade, ih! pá! O que ela dizia mal da Alemanha e dos programas de televisão, com a exposição pessoal nos talk shows que nós imitámos mais tarde, e das pessoas severas que não perdoam deslizes, em ressonâncias nazis... Os mais ausentes ficam mais ausentes com a idade. Conheço um sujeito assim, um homem calado, introvertido, que tem sofrido com a doença, cada vez mais fechado, mas rodeado da preocupação dos filhos. A mulher é um pouco ridícula no seu blá blá exibicionista, mas fala, está viva. E sofre também com os ossos, as varizes, etc, mas não lhe ligam tanto, atidos ao preceito de que mulher doente é mulher para sempre.
- Era o que eu costumava dizer para a minha Mãe, nas cartas – atalhei eu revivendo passados remotos. Enquanto o meu Pai era sóbrio e impecável nas suas cartas para África, já depois da reforma, a minha Mãe queixava-se profusamente das suas dores e das do meu Pai, para além de contar tudo muito esmiuçadinho o que se passava por cá, sem preocupação de burilar escritas, que não estava nos seus hábitos. Eu gostava muito das cartas dela, e hoje vejo, pela exibição prodigiosa da sua memória, e do refinar, por vezes, do seu vocabulário, quando não está virada para as suas dores ou para as grades da sua cama, que era uma pessoa, de facto, inteligente, atenta aos espaços que percorreu e às pessoas com quem conviveu.
Não, não chegámos a focar o tema da indignação da minha amiga, que não houve tempo. Creio que se referia às conversatas constantes nos audio-visuais sobre a temática da economia, da corrupção, da corrupção, da economia, da economia, da corrupção.... E das doenças, que os media viraram também hospital. Ou da educação, ou falta dela, numa previsão pessimista de estilhaço social. Ai Jesus, ai Jesus, ai Jesus... Redunda nas mesmas expansões da minha atribulada Mãe: Ai, Jesus, Deus me valha, Deus nos valha...
- Ai, Jesus!
(Falam também as minhas costas, o meu pescoço, os meus pulsos...).
- Ai, Jesus! – Fala um país inteiro, desatento a tudo o que não seja o pânico de um presente sem futuro. Por conta da economia, da corrupção, da corrupção, da economia, da impreparação da nossa juventude circunscrita a um horizonte umbilical.
Um país doente, um país sem rumo. A não ser na conversata. Circular.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Pergaminhos

- Os nossos vizinhos espanhóis estão a dar uma lição. Convidam todos os portugueses doentes de Valença a deslocarem-se a Tui, onde os Serviços Sociais os atenderão a todos.
Foi a minha amiga, que não perde pitada para se sensibilizar com os gestos nobres, que se saiu com a frase da sua sensibilidade. Eu ainda achei que ela talvez exagerasse no seu entusiasmo, e que os nossos vizinhos espanhóis estariam era a angariar mais divisas para si, mas não, tratava-se de atendimento à borla, o que me encheu as medidas de gratidão. Até tive pena por não ser de Valença, onde os nossos Portugueses fecharam a porta na cara à coordenadora do Centro de Serviço de Atendimento Permanente, principal responsável pelo seu encerramento. Tudo na maior compostura e educação, não é cá como os arruaceiros do Sul, lá em Valença puseram-se à porta do SAP, sem gritos e impediram que a coordenadora entrasse, o que a fez dar meia volta de regresso ao seu automóvel, tudo com absoluto mutismo seu, apesar de um cavalheiro atrás dela tentar explicar-lhe as razões das decisões que haviam tomado os de Valença, que já são cidade e não querem ir ao centros de de Monção nas urgências, ciosos dos seus pergaminhos, com muita razão, que pergaminho sempre é pergaminho, não deve deixar os seus créditos por pergaminhos alheios.
A minha Mãe quando partiu o fémur, numa segunda feira, foi às urgências de Cascais onde esteve umas poucas de horas para fazer a radiografia, dali partiu – após mais horas de espera pela ambulância, para o hospital S. Francisco Xavier, no Restelo, e finalmente tomar o caminho do hospital de Santana, na Parede, pelas tantas da madrugada, para ser operada na sexta-feira seguinte. Andou em bolandas a carregar as suas dores numa perna de 102 anos. São os nossos serviços, sem pergaminhos, carregam-se os doentes, ou abandonam-se nas macas, indiferentes aos seus protestos contra o mal-estar ou o frio, mal os deixando acompanhar por um familiar atento, embora impotente no seu desejo de protecção. Horas fantasmagóricas, de desconforto na espera, com ambulâncias a chegar e a despejar continuamente pessoas com dores.
Mas tivemos sorte, porque a operação foi um êxito, às vezes não é. Hoje soube de uma senhora que foi operada há cinco anos ao fémur também. Mas o nervo ciático foi atingido, há cinco anos que está acamada, deixou de andar, bastante mais nova que a minha Mãe. E outros casos conheço, de desastre em operação aos ossos, no hospital Egas Monis, num hospital de Trancoso... Graças a Deus que existem os hospitais franceses para a remediação com êxito.
Mais do que os pergaminhos, o que se deveria defender sempre era a competência. Felizmente há cá as “Novas Oportunidades” da nossa fé.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Virou virose

De repente, tudo se alterou. Não consegui mais entrar na Internet. Nem sequer no FreeCell, nem nas Copas. O meu computador era uma fábrica de vírus. O Carolus bem se esforçou por eliminá-los. Tudo inútil. Teve mesmo que reformatar, se é que existe tal verbo. Fiquei longe do mundo, do meu mundo destes dois últimos anos de Internet. O Carolus até me explicou que há umas peças anti-vírus para adaptar ao computador, que elimina os vírus, e que há empresas que fabricam as tais peças, mas vão semeando vírus nas peças anti-vírus, para poderem vender mais peças suas anti-vírus.
Lembrei-me logo das decisões económicas do “Castel-Bénac”, personagem do “Topaze” do Marcel Pagnol, entre outros exemplos, o do seu negócio dos esgotos. Vou mesmo traduzir, que são páginas imortais, de alguém que revelou conhecer bem as características humanas na sua imortalidade:

«Castel-Bénac: Não chegou um certo senhor Rebizoulet?
Topaze:
Não, não. Não veio ninguém.
Castel-Bénac: Pois bem, alguém virá, porque você vai tratar pessoalmente dum negócio. Como é o primeiro (Topaze fora designado como o testa-de-ferro do sr. Castel-Bénac), escolhi-o fácil e como você faz sempre uma cara de enterro, escolhi-o alegre.
Topaze: Sim, senhor conselheiro.
Castel-Bénac: Este Rebizoulet é proprietário da grande cervejaria suíça. No ano passado, os nossos serviços de higiene abriram uma boca de esgoto diante da cervejaria. Ora, à medida que o verão avança e o sol aquece, esta boca de esgoto torna o terraço da cervejaria positivamente infrequentável, e a clientela foge de lá. Rebizoulet veio, pois, procurar-me para me pedir o encerramento desta abertura.
Topaze: Compreende-se.
Castel-Bénac: Eu respondi-lhe que não tinha tempo para me ocupar do caso, mas que, se se dirigisse ao sr. Topaze, a abertura seria fechada naturalmente. Ele vai chegar e você vai-o receber. Vai dizer-lhe que vai concretizar a coisa, mas que há despesas e que exige, antes de quaisquer diligências, uma quantia de dez mil francos.
Topaze: Mas com que pretexto posso colorir o pedido?
Castel-Bénac: Você não tem nada que colorir. Você pede-lhe dez mil francos. Assim mesmo. E ele vai dar-lhos sem nenhuma dificuldade. Então, eu mando fechar essa abertura e mando abrir uma outra em frente, diante do café Bertillon.
Topaze: Mas que dirá o Sr. Bertillon?
Castel-Bénac: Virá dizer-lhe a mesma coisa. Vem dar-lhe os dez mil francos. E depois do Bertillon, outros há. Antes de dar a volta ao quarteirão, teremos empossado mais de trezentas notas. É um negócio seguro, prático e até divertido. Poderíamos correr cinco ou seis cafés por ano de forma regular...»

E aqui está como, à conta dos meus vírus internéticos e do descritivo do Carolus sobre as empresas fabricantes de eliminadores – simultaneamente semeadores – de anti-virais, me lembrei do Senhor Castel-Bénac.
A minha amiga, conquanto suficientemente ingénua para sempre se espantar, sobretudo com as histórias antigas, como a do Topaze, feitas por pessoas com experiência e inteligência do mundo, lembra outros casos por cá, que nascem como tortulhos em dias de chuva. Cada dia há um diferente e o dos submarinos já vai longe, embora não completamente submerso, para além de tudo quanto era pobre ou remediado e repentinamente brotou em aparato e bem-estar. E os que fogem e vivem bem no estrangeiro, sinal de que o estrangeiro os trata também com consideração, e os que são presos por conta própria e por conta de outros que o deviam ser e não são, porque deixaram quem ficase preso na vez deles. E os das fraudes de vária ordem, na permissividade como apanágio nosso. Uma virose a que não é possível pôr cobro, porque não se pode reformatar. Pelo contrário, cada caso chama outro e outro e assim vai alastrando por todos os que têm unhas para os casos.
Oh! Como vão distantes as histórias daquela infância que recompensava os bons e punia os maus, e que às vezes até os redimia, como foi com o burro Cadichon!
Virámos esgoto.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Portas no Prós, parque com a Parque

Antes do parque, falámos no Paulo Portas e no Nuno Crato e alguns outros que tão corajosamente se expuseram no “Prós e Contras” da semana, de tema “Quem manda na Escola”.
Contra a maioria, que optou pelas meias tintas do discurso demagógico, geralmente formado na indiferença pelo trabalho real, pelo estudo real, pelos valores reais que implicam competências de aquisição gradual, a troco da defesa dos direitos dos estudantes, dentro de uma ideologia paternalista – por parte dos adultos espertalhões, refractários a concorrências futuras dos novéis aprendentes, que se pretende, pois, massificados na nulidade intelectual – por parte dos estudantes, numa ideologia de suficiência vaidosa, de papagueio de noções filosóficas da berra, na mira de uma projecção política futura, como se tem visto – contra todos esses e os outros da indefinição, do desprezo ou da indiferença, Portas e Crato e algum outro, defenderam, com inteligência e ousadia, um ensino responsável, que assente na ordem, na seriedade, na qualidade.
A minha amiga, em evocações felizes do seu passado escolar, apressou-se, muito bota-de-elástico, (segundo as convenções pedagógicas hodiernas), a definir o ensino à sua maneira drástica que eu acho muito simplista, embora mal me atreva a exprimir-lho: “O professor entra na aula e há respeito, dá a aula com respeito, sai da aula com respeito. O respeito é fundamental, para se aprender.” Mas acrescentou uma notícia recente: “Há dias, uma menina disse à professora, durante a exasperação desnecessária desta: “Não me grite!” Quem manda lá dentro é ela” – concluiu, pensativa.
De facto, nada ganhamos em frisar uma vez mais o que nos vai na alma a respeito da nova ordem que tanto maximiza os direitos dos alunos, minimizando o mais possível os seus deveres, até já autêntica letra morta, por conveniência das estruturas seguidoras dos tais novos padrões educativos, que confundem e baralham as mentes dos estudantes, dos docentes penitentes, dos parentes mais ou menos indiferentes ou entrementes impotentes.
Ontem escutei no Canal Parlamento a interpelação feita ao staff da Educação, e a Srª Ministra Alçada falou muito no parque escolar, por via das dúvidas apresentadas pelos demais deputados, e na Empresa Parque, à qual entregara as reformas das escolas, num projecto reformista progressivo que está a ir muito bem, segundo ela gabou, que até foi apreciado por gente lá de fora, que achara que a Parque e a sua Ministra estavam a fazer um bonito serviço, embora os deputados cá de dentro desejassem conhecer mais pormenores, sobretudo no que concerne a entrega da empresa do parque à Parque, por escolha directa, sem concurso prévio, e ela explicou que o fez na urgência da reforma desse tal parque escolar, já que mais ninguém se apressaria tanto como os arquitectos, engenheiros e gestores da Parque, na rapidez do arranque e progressão. Mas não esmiuçou os pormenores justificativos da sua opção, o que indignou os deputados que vão ao Parlamento especificamente para se indignarem.
E nós as duas comentámos, em vista disso, que agora com o parque da Parque, é que a escola se ia transformar em muito mais do que o jardim do tempo em que a escola era franca e risonha.
Mais do que apenas jardim, agora a escola compõe-se de parque – implicando jardim também, é claro – para passeatas, diversões, bowling – um parque natural, nem se precisava da estruturação da Parque, pois que os alunos se encarregarão de o organizar de acordo com os seus critérios selectivos. São estes, pois, para responder ao tema do “Prós e Contras”, que mandam na Escola. Mas com o apoio da Srª Ministra Alçada e mais da Parque.
Na verdade, no que a Ministra Alçada não tocou, no Parlamento, foi no Ensino em si – só no “Prós e Contras” é que se tocou – mas com tantos interesses lá expostos - entre os quais os das perfídias do professor ou director do Ensino Particular a puxar a brasa à sua sardinha, que o seu ensino é que é o bom para as opções dos pais, ignorando expressamente as dificuldades pecuniárias da maioria dos pais para esse tipo de opções, e os entraves docentes trazidos com a massificação, a diversificação e a legislação da estultificação do actual ensino oficial; e também os do sociólogo que se está nas tintas para a realidade do caos escolar, debitando conceitos que se propõe modernos e inteligentes; ou do estudante iluminado no seu saber recente de demagogo, a lembrar interesses culturais seus, provavelmente adepto de uma escola de amplidão de matérias concernentes aos interesses específicos de cada aluno, não de uma escola orientadora que exija resultados dentro das matérias da sua orientação.
Mas os bons resultados exigem atenção, respeito e trabalho. E isso o aluno demagogo não quer dar. Quem manda na escola é, de facto o aluno, quer o demagogo, quer o praticante de bowling. A Ministra apoia. A Parque ajuda.