segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Felizmente não temos morro

Falámos em escândalo, como cenas do nosso genérico ambiental:
- O que é que não é escândalo? Veja! As cenas miseráveis no Rio de Janeiro! Eles mostraram a fortaleza de criminosos e traficantes. Vivem como milionários. Têm tudo dentro do morro, os tais bandidos! Apanharam vinte e eles são seiscentos.
- Só? –
pergunto, mansamente.
- O governo está a gastar milhões, a prometer acabar depressa. Espera aí que aquela guerra vai mesmo acabar! São ladrões, são assassinos, olha a força daquela raça…
- Autênticos “bin ladens”
, consegui articular, mas a minha amiga prosseguiu:
- E a nossa anedota dos blindados na cimeira da Nato?! Não fazem falta nenhuma, porque felizmente não temos morro. Mas alguém estava à espera que os terroristas viessem aí? Bastou o treino dos polícias para o caso do Obama ser molestado, não eram precisos blindados.
- Pois! Além disso o Obama trouxe os seus guardas, teve sempre as costas quentes.
- Ai meu Deus! Não há vergonha!
- Pois não! Não havia dinheiro à vista para pagar os blindados das nossas megalomanias. Foi humilhante. Mas dá para um fado, ao jeito do Frederico de Freitas, mesmo sem a voz da Amália:

Blindado! Torturado!
Tão magoado!
Quem te fez, blindado?
Não sei quem foi!
Só sei
Que não vieste e chorei
Mas que por ti esperarei
Para defenderes quem cá vem.
Só sei
Que é um sonho bem risonho
Que um dia hás-de chegar
E eu vivo e sonho a esperar.

- Ora! Para quê? Não temos morro!
- Sim, mas há sempre por aqui uns esconderijos, uns bairros esquisitos, que andamos a tentar destruir, mas que renascem das cinzas, como a Fénix. E vive gente nesses antros, com bons carros à porta, como nos morros. Nunca se sabe onde se pode chegar, mesmo sem morro.
- Mesmo assim, acho que os nossos escândalos são outros.

A minha amiga está pelos cabelos.
(Continua)

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Disco rachado

Já o tenho dito. A um terço do caminho para os 104, a minha Mãe causa-me espanto crescente, quer na recuperação dos seus dados biográficos, quer na evocação de versos ou histórias que antes não lhe ouvira, quer na expressividade das suas modulações de voz e dos gestos amplos com que acompanha por vezes a sua oratória, que me lembra os jeitos do meu Pai em situações festivas dos discursos ternos em família, que tanto admirava nele, na minha incapacidade oral de bicho introvertido.
Saiu-se ontem com a seguinte história:
«O Vale da Porca é uma quinta que vem de Cercoza para o Carregal. Pertencia a um Gaudêncio ricaço e avarento e era dirigida pelos caseiros do Ral, que muita fominha passavam. E a lenda espalhou-se até lá pelo Carregal. Era entre um cão, um galo e um moinho.
O cão ladrava: “Fom’! Fom’! Fom’!”
O galo cantava: “Nunca de cá saiu! Nunca de cá saiu! Nunca de cá saiu!”
E o moinho, que andava debalde, sem grão debaixo da mó: “Sempre assim foi! Sempre assim foi! Sempre assim foi!”»
E a minha Mãe acentuava cada uma das frases com força e prolongamento de explosão. E ria. E recontava a história, muito feliz.
E eu a reconto, a propósito do nosso Orçamento debatido e aprovado em ficção já muito gasta, de uma antiga situação neste nosso Vale da Porca, com donos da quinta avaros e incompetentes, caseiros da quinta queixosos e resignados ou soltando as vozes do seu descontentamento:
“Fom’! Fom’! Fom’!
Sempre assim foi! Sempre assim foi! Sempre assim foi!
Nunca de cá saiu! Nunca de cá saiu! Nunca de cá saiu!”
Como música ininterruptamente monocórdica de um disco antigo, rachado. E esquecido.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Homo sum?

A seguinte fábula de La Fontaine
Tem muito de universal,
Como é o próprio das fábulas
Que se colaram a nós,
Como rótulo imortal,
De forma paradoxal,
Pois ninguém pensa
Em sua perfeita razão
Que qualquer animal,
Ou uma pura abstracção
- Como a Fortuna do caso presente -
Sejam o nosso retrato magoado
Natural.
Poderão ser antes espelho
Velho e relho
Criado pelos fabulistas
Inteligentes
E às vezes mesmo imprudentes
Nas suas alegorias ,
Por conta dos brios
Dos mais salientes -
Dirigentes
Economistas
Patrões de bancos
Saltimbancos,
Artistas
Especialistas em conquistas,
Geralmente
Gente previdente,
Pelo menos particularmente:

"A Fortuna e o menino da escola
À beira de um fundo poço
Dormia, a todo o comprido,
Um menino, de escola aluno.
Tudo lhes serve,
Aos alunos,
De cama e colchão,
Sem qualquer ralação.
Em caso parecido,
Um qualquer homem honrado
Um salto de vinte braças teria dado
Para passar adiante.
Perto dali, felizmente,
A Fortuna passou e docemente
O menino acordou,
E logo discursou
Impaciente:
“Eu te salvo a vida,
Meu rapaz,
Mas peço-te
Que sejas mais cordato
E desperto
Da próxima vez.
Tivesses tu caído
E logo me teriam acusado,
Embora o erro
Tivesse sido
Só teu e teu e nunca meu.
Só te pergunto
Sinceramente,
Se esta tua imprudência
Se pode imputar
À minha competência.”
Tendo assim falado
Mais para ralhar,
Embora sem resultado
Que se visse,
Ela pôs-se a andar.
Quanto a mim,
Concordo com a sua argumentação.
Nada no mundo acontece,
Que a Fortuna não seja acusada,
Duma penada,
Pela sua participação
Na acção.
Ela é o garante
De todas as aventuras.
Quer se seja tolo,
Ou distraído,
Nunca temos a responsabilidade
Do acontecido.
Julgamo-nos quites
Com a nossa consciência,
Se acusarmos a Sorte.
Em suma,
É a Fortuna que tem sempre a culpa.”

Também nós por aqui
Parecemos meninos
À beira do poço
Dormindo, dormindo,
À espera do osso
Sem darmos o salto
Da passagem
Para a outra margem.
E mentindo, e iludindo,
E sempre pedindo,
- Alguns pagando -
Vamos construindo
- Melhor, destruindo –
O que já foi nosso,
Ao Fado imputando
A nossa má sorte,
- Que o Fado é
O nosso Forte
A nossa Morte
A nossa Sorte -
Sem responsabilidade,
Mas com habilidade,
Característica fatal
Do nosso mal,
Para perpetuidade
Da bandeira nacional,
O que é um bem, afinal.

domingo, 21 de novembro de 2010

Já podem usar

- Então não tenho? – Respondeu a minha amiga à pergunta sobre se não tinha novidades hoje, já que ontem constatou que estávamos na Cimeira, despejávamos Cimeira, nada mais havia a não ser Cimeira e eu nem percebi por que motivo não quis falar disso, já que, só o ouvir falar na aprovação do “conceito Lisboa”, por conta do novo conceito estratégico da Aliança Atlântica, como aliança cooperativa entre os povos aliados, com a Rússia amiguinha e dialogante, falar de um escudo anti-míssil europeu, para prevenir contra as ameaças do Médio Oriente, falar do entregar o Afeganistão ao povo afegão em 2014, com a participação portuguesa no fenómeno da instrução militar do dito, nos devia encher as medidas, além da referência do simpático Presidente americano ao seu cãozinho português, e à boa recepção feita por nós cá aos da Cimeira da NATO. Que ele agora nem sabia se a sua próxima Cimeira teria o brilho da nossa, e isso foi uma afirmação de modéstia que nos transmitiu confiança em nós mesmos, sempre extremamente tímidos…
Tudo isso e muito mais foi, pois, não só positivo para o mundo, mas prestigiante para nós, que já tínhamos um tratado de Lisboa e passámos a ter mais um conceito estratégico de Lisboa, como marco histórico, não sei, portanto, porque é que a minha amiga não colaborou no meu entusiasmo patriótico, que sei bem que fomos plantadores de muitos outros marcos históricos no mundo havido.
Acho que ela anda com os humores transviados, alinhou mais com os que protestam contra a guerra, e que cuidam que este novo conceito de NATO vai levar mais gente à guerra, não sei se por acharem, os pacifistas, que a guerra dos terroristas é coisa sagrada, sem direito a devolução. Quanto a mim, todos estes conceitos apresentam rasgões e fragilidades, como qualquer teoria, afinal, e até fico muito grata aos que não se importam de ir para esses sítios de combate, embora não seja já por amor pátrio mas por outra sorte de altruísmo. Ou mesmo de egoísmo. Porque agora a tropa não é mais obrigatória, pelo menos entre nós, lusitanos, e só vai à guerra quem não se importa, quer para glória pessoal, quer na mira de um ganho mais eficaz, quer para conhecer o mundo...
Por isso, a minha amiga hoje, domingo sagrado, tinha notícias de outro modo importantes:
- Então não tenho? O Santo Papa autorizou o preservativo. Agradeçam aos espanhóis. Aquela recepção em Barcelona dos tipos a beijarem-se escancaradamente foi muito influente. Já podem usar o preservativo. Bento XVI merece aplauso!
- Sim!
– Alinhei docilmente.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

A nossa cortiça vai brilhar

A minha amiga mostrou-se eufórica:
- Ai! Respirei!
- Então está melhor?
Ontem estava meio constipada, e tinha-lhe levado o meu tubo de comprimidos efervescentes de acetilcisteína receitados pelo médico à minha mãe e que uso para mim em caso de emergência.
- Não é isso, foram as notícias que ouvi. Disseram ontem que as despesas da cimeira da NATO não somos nós que pagamos. E uma rica notícia é que os hotéis de cinco estrelas estão superlotados. Ontem a rapariguinha da televisão respondeu-me – que eu tenho muitas vezes posto a pergunta – que esta despesa é suportada por todos os países. Não fica contente? Eu fiquei muito aliviada.
Claro que me aliei ao alívio da minha amiga e disse mais, como os Dupondt, que sim, que ficava contente. Mas a minha amiga não estava à espera de resposta:
- Também gostava de saber quanto é que vai custar isso tudo. Devem dizer.
- Ora, nem pense! Eles lá não costumam dizer das despesas que fazem, só exigem que paguemos, ora essa!
Mas a minha amiga estava muito positiva, muito rigorosa nos seus dados, pouco lhe importavam as minhas respostas provenientes de ignorância dos telejornais, que são à hora do Dr. José Hermano Saraiva e do “Quem sai aos seus”, seguidos de queda nos braços poderosos do atrevido Morfeu.
- O Obama também vem. O cão dele, que é da raça algarvia, vai receber uma coleira de cortiça. Todos os da cimeira vão receber uma prenda, mas o Obama recebe duas – uma para o cão de água algarvio. As senhoras têm direito a uma carteira de cortiça. Os homens a uma gravata de cortiça. A nossa cortiça vai brilhar na cimeira. Uma promoção da cortiça portuguesa muito bem feita.
- Então e o vinho do Porto?
Desdenhou dos meus conhecimentos.
- O Obama merece duas prendas. Escreveu um livro para crianças. Todo o dinheiro reverte a favor das criancinhas.
- O nosso Obama também tem o Magalhães, que ofereceu a muitas criancinhas.
Mas a minha amiga desdenhou Sócrates e uma vez mais, exaltou Obama, sempre rendida ao seu charme e bondade:
- Aquele tem tudo para ser um Chefe de Estado. Os que andam à procura de defeitos nele não passam de uns sacaninhas. É o único homem que está ali para servir o povo deles. Pôs os pobres a ter assistência médica, pois até isso pagam. Não vivem numa torre de marfim, de vez em quando enchem os jardins da Casa Branca com crianças. Eles adoram o cão, que vai ter uma bela coleira nossa, de cortiça.
A minha amiga, quando admira, é muito sectária. Mas também quando embirra. E não há cortiça que lhe ponha travão. Digo, rolha.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Não tem ponta

A minha amiga comentou sobre os titulares – ou seja, os compradores dos nossos títulos de dívida – especialmente em referência ao presidente de Timor-Leste:
- Realmente, quando se vê o seu país tão pobrezinho, e ele a dizer que vai ajudar o seu amigo Sócrates, faz impressão. Como é possível ajudar um país riquito, sendo eles tão pobrezinhos?
Duvidei, como pessoa consciente da crise que vai a caminho do seu clímax, com o avanço do FMI, embora o anúncio do avanço das obras públicas de grande envergadura já no próximo ano, nos deixe a esperança de que afinal não estamos assim tão destituídos de posses:
- Riquito?
- Claro! Nós somos o país com mais carros, com mais telemóveis, com reformas milionárias maiores que as da América…
Uso a severidade:
- Realmente, temos carros em barda, mas de fabricação estrangeira, não criámos marcas. As fábricas cá são de junção de peças, que vêm de fora. Mas as marcas são francesas, italianas, alemãs, americanas, japonesas… E o Volvo, que é sueco.
A minha amiga interrompeu-me as amargas lucubrações provenientes das minhas meditações sobre as nossas transacções, de extremo décalage entre importações e exportações:
- Eu peço já a canonização do Ramos Horta.
- Também não exagere nos pedidos. Para a aura basta-lhe ter sido Nobel da Paz. Ele está a pagar a nossa colaboração aquando dos ardis da Indonésia, que até cantámos uma canção muito bonita, com que os ajudámos a ganhar a independência: “É Timor”, além dos peditórios para os trocos. Como falhou a sua proposta para que Durão Barroso fosse Nobel da Paz, no ano seguinte ao prémio dele e do D. Ximenes, que estas coisas de prémios dão logo direito a primos, estendeu agora a mão protectora a Sócrates, que anda nas suas águas a pedir reforços, não sei se por conta do petróleo que parece que têm… Coitado do Sócrates! Ter que pedir reforços tão a leste! Será que Sócrates anda a cobrar, por conta dos nossos peditórios de há uns anos para a independência timorense?
- Não, é mesmo por amor à navegação, que nos está na massa do sangue. Navegação e maquinação. Mas olha lá o outro que me deixou espantadinha, o seu amigo bem vestido, o dos Negócios Estrangeiros, Luís Amado… O que é que lhe deu? Sentiu vergonha lá fora e achou-se perdido? Um governo de salvação! Isso foi o mesmo que dizer que isto não tem ponta por onde se pegue
!
A minha amiga às vezes excede-se. Que ao nosso Primeiro não faltam nunca recursos, só vergonha. Sempre.

domingo, 14 de novembro de 2010

Os títulos

Lembrei-me de uma fábula de Esopo
A propósito da discussão
Com a minha amiga sobre
A promessa de Ramos Horta
Ouvida na televisão,
De nos comprar títulos
Como parece que já fizera
O presidente chinês,
Ou talvez apenas a sua esposa
Melindrosa,
Que até foi presenteada
Com um bule para o seu chá
Como já não há.
Digo, o bule, não o chá,
Que ainda há cá
Embora, talvez,
Por pouco tempo já,
Que até o chá passará
À história,
Pois de tudo o que fomos
Ou tivemos
Com maior ou menor
Glória
Apenas nos restará
Escória.
Isto diz a minha amiga
Com muita desconsideração,
E daí a discussão
Bem ou mal atamancada.
Mas vejamos a fábula grega
Se tem ou não aplicação
Ao caso da nossa aflição
De povo que até adrega
Ser bem brincalhão:

“O cão, o galo e a raposa”
«Ligados por uma bela amizade
Um galo e um cão viajavam de companhia.
Pelo crepúsculo, o galo empoleirar-se-ia
Numa árvore, enquanto o cão se escondia
Entre as raízes da mesma árvore,
Que assim os protegia
Com generosidade.
Mas o galo cantor
Useiro e vezeiro em cantoria,
Durante a noite cantou
Com galhardia.
A raposa acorreu,
Por baixo da árvore se postou,
E suplicou
Ao galo que descesse,
Para que ela o beijasse,
Pois tão bela voz como a sua
Merecia
Que o galardoasse

Com beijos de cortesia.
O galo concordou mas pediu
Que primeiro acordasse o porteiro.
A raposa, a quem todos chamam matreira,
Desta vez, causou-nos perplexidade,
Ao cair na esparrela
Com tanta ingenuidade.
Chamou o porteiro
Que dela
Fez bons pedaços,
Os quais, bem cozinhados
E condimentados,
Serviram o jantar de ambos
Os amigalhaços.
A fábula mostra, na perfeição,
Que o homem de sensatez
- Ou de esperteza infinda -
Afasta o seu inimigo figurão
Desviando o ataque deste
Sobre alguém mais forte ainda.”


É por isso que eu admiro
O nosso Primeiro
Ministro.
Digam-me lá
Se ele não se parece
Com o galo empoleirado,
Que desviou, com determinação,
Para o cão,
A sua defesa
Contra a raposa manhosa,
Isto é, a defesa
Da dívida indecorosa?
O presidente chinês,
O timorense,
E outros mais
Que virão por aí,
Mais fortes do que nós,
Livrar-nos-ão,
Como o cão,
Dos efeitos perniciosos
Das dívidas sem explicação
Decente,
Adquirindo títulos
Ao que se diz
De uma dívida
De forte raiz.
E da nossa história,
Futuramente,
Restar-nos-á
Somente escória…
E o tal sol, que pecou
Porque, em vez de criar, secou.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

“Ditosa Pátria Minha Amada”

Um dia, a apresentadora de televisão, Marie-Ange Nardi, que comecei a admirar no programa “Pyramide”, pelos anos noventa, veio a Portugal, tendo sido acompanhada nas suas visitas turísticas por um cicerone português que a fez percorrer bairros típicos de Lisboa, onde se entretiveram a troçar da roupa estendida nos estendais dos prédios, sintoma da paroleira que nos define no nosso atraso milenarmente imutável.
Senti vergonha, senti revolta, senti asco. Vergonha desse atraso, revolta contra nós próprios, povo irremediavelmente incapacitado, asco contra a pessoa intelectualmente superior, de um país milenarmente superior, que, paradoxalmente, em tempos, permitira a existência dos famosos bidonvilles, para tectos de gente sem casta, usada nos trabalhos da dureza e dos estrumes domiciliários franceses, tectos próprios para uma imigração intelectualmente destituída. Inteligente como sempre a reconheci, Marie-Ange Nardi não tinha o direito de se mostrar tão desprezativa, tão desprezível, na sua arrogância e imodéstia superiores, incompatíveis com o “quod nihil scitur” da reflexão humanista.
Muito antes dela, Simone de Beauvoir, no seu livro “Les Mandarins”, põe igualmente duas personagens do romance a visitar Portugal, país que vivera placidamente, liberto e inocente - os milhares de ricos nos seus arrotos, os milhões de pobres nas suas miseráveis choupanas - os horrores da guerra que outros povos sofreram directamente, na sua atrocidade. Sinto como um ferrete a lição, já não de troça mas duramente crítica, que tinha o mesmo objectivo que o dos nossos escritores neo-realistas de pôr em causa o regime prepotente de Salazar e, simultaneamente, o país de grande pobreza espiritual: “la tyrannie politique, l’exploitation économique, la terreur policière, l’abêtissement systématique des masses, la honteuse complicité du clergé…”
Também Voltaire, no seu “Candide” chamara a atenção para os horrores dos autos-de-fé em Lisboa, após o terramoto de 1755, dentro do mesmo espírito de independência crítica, como ataque à injustiça, obscurantismo e fanatismo que nos foram marginalizando no conjunto dos povos europeus, todos estes prezando a formação cultural, como bagagem distintiva do ser humano.
Ninguém melhor do que Eça para desmontar as idiotias da nossa “mesmice” e da nossa pobreza espiritual e material.
Sempre a crítica foi forma de alertar para o erro, de convidar à virtude.
Nestes nossos tempos de pseudoconstrução cívica, que nos tornam joguetes da arbitrariedade, da má fé, do egoísmo e da incapacidade governativas, muitas críticas se vão lendo como alerta e previsão de catástrofe, na mesma sociedade imatura, que se tem vindo progressivamente a destituir dos valores da disciplina mental e moral, a acrescentar à perda material escoando-se pelas comportas destruídas dos sorvedouros económicos.
Ela, a catástrofe, já é presente, no fantasma de uma dívida que cresce incontidamente, nas soluções para a inverter, de cariz tsunâmico, que mergulham o futuro pátrio em trágica incógnita sobre a nossa continuidade como nação.
Pretender que tais críticas negativas revelam menos amor pátrio, a isso apor exemplos de êxitos pátrios, é um falso argumento chauvinista, que não implica a anulação da via errática do nosso pesadelo político. Não há nelas altivez de troça, mas uma tristeza fatalista na expectativa do fim. Ou da mesma continuidade sem nobreza.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

«O que vai ficar são os “acórdos”»

Mostrei a minha indignação a respeito dos “acórdos” de que falou imoderadamente o nosso PM, opinei sobre a visível satisfação que nele provocaram os seus “acórdes” musicais de sintonia com os do PR da China e respectiva esposa – do Presidente, não da China – a quem o povo português de uma localidadezinha lusa onde se vai fabricar mais um “acordo” de o fechado, ofereceu um bule para o chá, que me pareceu piroso – o bule, não o chá - mas não tive tempo de o averiguar, distraída com o ar fechado da madame e do respectivo esposo orientais, talvez apreensivos, talvez arrogantemente depreciativos, mais uma vez falei doutoralmente em metafonia, que faz abrir certos ós plurais, como o de “fógos”, enquanto se mantêm fechados outros, como os de “acôrdos”, lembrei que a moda do “o” aberto em “acordos” pegou mesmo, pois muitos são os ilustríssimos – alguns até advogados da nossa banca ou políticos e jornalistas da nossa praça – que o proferem, sem terem o cuidado de consultar uma gramática que os esclareceria, embora isso não me admire tanto no nosso PM, que, se despreza a sua língua e a sua nação, com provas irrefutáveis, muito mais desprezará a gramática dessa língua, de preferência acedendo ao dicionário, para nele se ilustrar a respeito da deturpação capciosa do pensamento, para uma acção política caprichosamente mistificatória.
Logo a minha amiga, tristemente, concluiu:
- O que vai ficar são os “acórdos”.
Mas continuou, profusamente, sobre os novos habitantes:
- Estes vinte mil que cá estão já fecharam lojas portuguesas aos molhinhos. E não dão trabalho a ninguém. Nós sabemos muito bem como são os chineses. Ficaremos de gatas e de olhos em bico. Os gajos estão em Angola a construir sem empregados angolanos. Não compram uma pá. Tudo os acompanha. Eles trazem tudo, todo o material lá da China. Não é que o chinês não seja um povo trabalhador!
- Isso é
- consegui meter a minha colherada – mas nunca tive confiança no “made in China”, ao contrário do “made in England”, de qualidade sólida.
- As coisas mudaram muito, com a fabricação em série. Mas a louça e as mobílias trabalhadas eram de grande valor e perfeição.
- Nunca gostei. Gosto mais do liso das nossas porcelanas e mobílias. E não confio nas comidas.
Mas a minha amiga não concordou, embora lamente os nossos comerciantes:
- O comércio mais pequeno está nas mãos deles. Cascais está cheio deles.
- Estamos perdidos. Mas será que entre os “acórdos” se conta o reverdecimento dos nossos campos, mesmo com as alfaias vindas da China?
- Não acredito. Eles lá trabalham nos campos, mas cá é no seu comércio.
-De quinquilharia, digo, agoniada.
Mas de facto também já lá comprei, que é mais barato e tem de tudo, desde roupas aos esfregões da louça, de papel de carta aos cortinados e aos chapéus de chuva… Estamos perdidos.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

“ Eu venho comprar o vosso rectângulo”

A minha amiga aproveitou o facto de eu estar de costas, a distribuir os produtos recicláveis pelos respectivos contentores para me assarapantar com um aflautado “Tchong! Tching! Thaung!”, que me fez voltar-me num susto, julgando que estava a ser vítima já do dominador asiático cobrando a dívida. Era ela, de mãos cruzadas e trejeitos de deusa hindu, simultaneamente humilde e grácil, dizendo “bom dia” em chinês, segundo explicou, feliz com a descoberta linguística.
Foi mais tarde, já instaladas à mesa da bica, que ela largou o que lhe ia na alma:
- Eu, quando ouvi a história na televisão pensei logo: Então os portugueses não estavam avisados duma coisa tão importante? Chega ali o presidente muito rico e diz: “Eu venho comprar o vosso rectângulo” e isso cai como uma bomba, pois nos programas de discussão de ideias ninguém jamais se referira a isso, todos à volta da dívida calamitosa à Europa e respectivos juros brutais…
- E das medidas de “austeridade” impostas, que todos acham de bandalheira porque só pendem sobre os menos capazes, pois os mais esforçados, que até contribuíram para a dívida, batem o pé com as exigências da sua indignação despudorada… A escumalha atingida limita-se à grevezita mandatada pelos partidos das greves…
- Como é que se faz uma coisa destas, sem nós sabermos? Eles não disseram nada à gente! Por isso o coiso dizia: “Nós não precisamos da ajuda de ninguém”. Os outros políticos também não deviam saber. Estiveram a falar de tudo, menos disso…
- O coiso sabia do Dom Sebastião, é o que foi. Volta sempre, o Dom Sebastião, e nem precisa de nevoeiro. Quando tudo parece perdido, a gente arranja logo um dispositivo salvador, para maior perdição futura, é certo, a pender sobre as gerações vindouras. Bem dizia, pelos anos posteriores ao do 25 de Abril, o meu amigo Juiz Brites Ribas, quando lhe falava no perigo africano sobre a Europa, ele, dos arcanos do seu muito saber preocupado, ripostava que o perigo grande residia no asiático. Realmente, os chineses têm-se vindo a insinuar. Mas agora foi como uma bomba que se soltou.
- As contrapartidas, vamos sabendo aos poucos. Eles importarão os vinhos e os azeites do costume e instalarão lojas por aqui? Talvez invistam no TGV… O que eu fiquei sabendo é que há já por cá vinte mil chineses. Bons alunos, os da escola portuguesa… Muitos nascidos cá. É a melhor maneira do país não acabar…
Indignei-me um pouco, com a expectativa:
- O meu último netinho, nascido na semana passada, também se chama Sebastião. É para ele que me viro, é nele que deposito a esperança de salvação futura, pequenino ser que não respeitamos hoje. Que Deus o guarde, numa pátria livre.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

“Só se chega mais depressa a Madrid”

- Não vejo ninguém com esperança. Todos preocupadíssimos. O Sócrates está como quer, queria o Acordo assinado e lá o tem, para o T.G.V. arrancar. Tem um compromisso com os espanhóis, não é homem para faltar aos compromissos.
Admirei-me:
-Hum!
Não me deixou ir além da interjeição, na fúria da sua alta velocidade:
- Dá-se muito bem com o Primeiro Ministro espanhol, são muito amigos. Não desarma com o T.G.V. Ele já disse que ia adiar. Mas mantém. Não pode faltar a um compromisso com os espanhóis. O Sousa Tavares e variadíssimos economistas dizem que aquilo não vai dar lucro nenhum. Só se chega mais depressa a Madrid.
Consegui articular:
- É útil! O Museu do Prado vale a despesa.
Não compreendeu o meu arroubo artístico:
- Isso é que me espanta. Como é que o homem prefere não faltar a um compromisso com os espanhóis e vai sacrificar toda a gente! O povo devia ir p’rá rua.
Nisso discordo da minha amiga, velhas manias de obreira zelosa que fui, raramente faltando ao trabalho, julgando-me importante no funcionamento de algumas das rodas que ajudavam o país a mover-se…
- Para quê? Já somos suficientemente calaceiros… O Sócrates e os demais pares, com o Cavaco à mistura, estão-se marimbando para as manifs. Essas passam, e nem importa se o país ficou mais pobre – na moral, na economia, nos costumes. Democráticos. É uma linda palavra.
Continuei:
- O meu marido anda indignado, tal como os mais. Diz ele que está tudo à espera que as pessoas alterem a sua intenção de voto, mas quem tem o poder só apresenta o que convém. Ninguém consegue saber. As pessoas de carácter nunca são ouvidas. Há um Juiz que só agora que se reformou é que escreveu um livro sobre o que são esses acordos – tudo roubo – mas enquanto esteve no activo não podia fazê-lo, todos a ver se lixam o parceiro que se atreva a desmascarar. Tudo gatunagem. Sócrates quer ficar na história como o homem que fez o TGV. E também quer chegar aos dez anos de governação para a maquia da pensão - explicou o meu marido, circunspecto.

Nem vale a pena
Tanto penar.
Mas só mesmo Esopo
Para nos fazer gozar
Um pouco:
«Uma cotovia de poupa
Foi apanhada num laço
- Confesso que um pouco baço -
E a sua sorte deplorava,
Que se desgarrava:
“Ai! Pobre de mim,
Pássaro mísero e mesquinho,
Embora sem ser tão tratante
Assim!
A ninguém roubei
Nem ouro, nem prata,
Nem diamante,
Nada de precioso
De valioso
Ou muito importante!
Apenas um grão
Minúsculo de trigo
P’r’à refeição
Foi causa injusta
De perdição”.
A fábula visa, com certo respeito,
Os que correm riscos sem jeito,
Com magro proveito».

Tudo bem ao contrário
Do nosso fadário,
Nesta fábula da “Cotovia de poupa”
Com que Esopo nos apouca,
Referindo-se aos pobres mortais
Como os Joões Valjães
Que quando roubam pães
Vão p’rás galés, como grandes ladrões,
Ao passo
Que dos que aqui roubam que farte,
Que é mesmo um disparate,
Uns vão trabalhar p’rà Europa
- Embora não seja taxativo
Que seja trabalho activo,
Ou de sujeição
A favor da nação.
Parece mais
De autopromoção
E conta própria.
Outros… os doutores
Tenebrosos,
Deixemo-los com os seus pares
Na pátria de navegadores,
Que nunca mais se erguerá.
Tal como o caldo entornado,
Que não será engolido
Porque ficou bem sumido.