quinta-feira, 30 de setembro de 2010

As mulheres têm menos visibilidade

O país está a desfazer-se, vagalhões de anúncios de catástrofes irrompem pela terra portuguesa, espraiando-se até aos confins da raia setentrional e oriental, nos jornais, nos audiovisuais, nos ais dos que já sofriam antes e vão sofrer mais, apesar da continuação na prosperidade dos que já prosperavam antes, com os artifícios habituais, entre nós, normais. Fatais.
Não, não temos mais estômago, não temos mais coragem para enfrentar as parangonas dos noticiários, ou a figura dos governantes, de uma soturnidade perversa, e “de uma fúria grande e sonorosa, de tuba canora e belicosa”, talvez, mas poderá ser também “de agreste avena ou frauta ruda” que ninguém lhes vai à mão por isso, a anunciar os cortes nos salários, as subidas nos custos, os acréscimos nos impostos, com a omissão dos triplos vencimentos, dos vencimentos exorbitantes, dos pagamentos daqueles que foram fraudulentos e que vão continuar a sê-lo com os améns dos governantes, só soturnos para os habituais roídos até aos ossos ou mesmo ao sabugo pelos roedores ancestrais. Os ratos e os roídos normais. Todos eles, funcionais.
Ainda há os que vão tentar puxar o travão de mão antes que o país resvale, dizem eles. Mas tudo isso é brincadeira, que todos sabem que já resvalou, não tudo, porque ainda vai resvalar mais, sobretudo o vão ser os habituais. Os leais. Só o sendo, porque são à lealdade forçados, embora sempre atraiçoados pelos promissores de medidas sociais, negativas em termos gerais, positivas em termos individuais. Marcadamente desleais. Bestiais.
Não, não quisemos gemer mais. Lembrámos a notícia saída ontem em rodapé, no canal 5, de que um estudo prova que as mulheres têm menos visibilidade. Comentámos a parvoíce desse estudo, só mesmo para entreter paspalhos, quando andamos às voltas com as medidas governamentais a que ninguém consegue pôr cobro.
A minha amiga ainda troçou da informação, nem se deu ao cuidado de citar excepções de mulheres bem visíveis, ainda que na imprensa cor-de-rosa, às vezes escandalosa. Considerámos que, apesar da condição de sombra da mulher na vida mundial, ela lá está, como sempre esteve, na sua labuta que mais ninguém tem nem vê, nem reconhece, luta dura, obscura, mas eficiente, óleo que seja nas rodas da carruagem familiar. Mas além dessas, há as que trabalham fora e acumulam com o trabalho na carruagem. E há as excepções honrosas das mulheres visíveis. Poucas mas boas.
Mas temos os homens audíveis, no nosso Parlamento. Ouçamos-lhes as vozes fenomenais, vaidosas, tranquilas, inimputáveis, ancestrais. Nacionais.
E retomemos os ais.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

“Chamem-se as donas de casa”

- Ai, as notícias são tristíssimas, alarmantes, degradantes – responde a minha amiga à minha questão sobre o andamento das coisas por cá. - Quando eles põem lá os milhões que se devem, os milhões que se gastaram, tudo cabeças leves, é o que se deduz. E ainda se permitem mudar as frotas dos carrões.
Com a integridade em que fui educada desde a idade tenra, repus a verdade, segundo a notícia que ouvira de que a frota topo de gama este ano não se mudava, mas a minha amiga não acredita muito nas minhas informações, geralmente escutadas com a ligeireza da dispersão, é certo, mas não desta vez, garanti, formalizada.
- Se proibiram, foi o mês passado. Desde o 25 de Abril era só mudar as frotas.
E retomou, com arranque, a questão económica:
- Entreguem às donas de casa, qualquer dona de casa via isso – os gastos superiores aos ganhos – menos os palermas. Estes nunca souberam fazer contas. Coisa tão estúpida, tanta asneirada, um país que não produz… O destino deste país mudou no dia em que morreram Sá Carneiro e Amaro da Costa. Com estes, seria a mudança. Não estou a dizer que seria um país rico, mas normal. Era gente com vontade de fazer obra. Foi por isso que morreram. A pouca sorte dos portugueses foi aquele crime. Eram dois homens interessados. Eles e os que os acompanhavam. Como foi possível? Um país deste tamanho… era caso para levar isto a sério… descobrir quem os matou.
- Nisso concordo. Mas o destino dos portugueses mudou muito mais cedo. E quando os diques rompem, dificilmente se reconstrói, vai tudo raso. Eles fizeram parte da enxurrada que o dique provocou, mau grado as suas boas intenções. E por aqui vamos nós também, na enxurrada que irá atingir as gerações vindouras, cada vez mais desabituadas de fazer contas, indispensáveis para o travão. O actual ensino dá-lhes brinquedos para não se preocuparem muito com previsões e cálculos, retira-lhes a reflexão do ensino sério e responsável.
A minha amiga mudou de assunto, com a costumada volubilidade:
- A gente ainda não falámos – é assim que se diz, não é? – nos mineiros do Chile, que aquilo é uma coisa horrorosa. Como é possível que haja minas assim a arriscar a vida dos homens daquela maneira? E não há solução rápida. E os donos são muita ricos, muita ricos – e aquela gente festeja, lá fechados… Falam em três meses para sair, se conseguirem. Falta o ar só de pensar. Como é que se permite que estes homens trabalhem nesta profundidade?! Uma mina! Há um espação de tempo para lá se chegar ao sítio. Há direito que o ser humano desça tão fundo?! Aquilo é crueldade até dizer chega. Tudo o que vive ali na terra é mineiro. Têm um ordenado que dá para formarem família. E os donos muita ricos. É exploração pura…
- Os submarinos também causam falta de ar. Lembra-se do desastre do submarino russo no mar Árctico, há uns anos? A minha mãe nunca gostou do Putin, em parte, à conta disso, porque o Putin não interrompeu as suas férias para se associar ao pavor que foi, que nós vivemos cá em casa com verdadeiro horror .
- Cá e lá e mais acolá más fadas há, é a conclusão…
- Pois, mas o sofrimento de lá e de acolá é mais violento. Nós por cá até somos favorecidos. Pela nossa falta de educação e vergonha, de vivermos há longos anos à custa alheia, sem preocupação. Parece que chegou a vez de pagarmos em força. Mas sempre temos o fado a ajudar-nos a superar a dor...

domingo, 26 de setembro de 2010

O rabecão

Mais uma vez o Esopo
Tem toda a razão,
Ao mostrar
Como é velha a sentença
Do povo sabichão,
“Quem te manda a ti, sapateiro,
Tocar rabecão?”…
Embora a flauta
Do lobo da sua fábula
Tenha uma elegância
E uma vibração
Que não tem a rabeca
Do nosso remendão…
O que não é admiração!

«O cabrito e o lobo que tocava flauta»
«Um cabrito que se afastara do rebanho,
Por um lobo delambido
Foi perseguido.
Olhou para ele e disse, com ar meigo
E casto:
- Ó lobo! Eu não tenho nenhuma dúvida
De que te vou servir de repasto!
Mas uma morte ignominiosa é tristeza.
Toca flauta para que eu possa dançar
Antes de, em beleza,
Acabar.
Enquanto o lobo a flauta tocava
E o cabrito dançava,
Pelo ruído alertados,
Os cães, enfurecidos,
Acorreram mesmo na hora
E puseram o lobo a andar
Dali para fora.
Ao voltar a cabeça,
O lobo delambido,
Cheio de pesar,
Disse ao cabrito arguto
E muito atrevido:
“ – Pelo meu destino
Sou bem responsável
Por não ser fino
Ou arteiro.
Não passo dum carniceiro
E quis armar em flautista
Admirável!
O castigo mereço,
Imperdoável
E sem desconto,
Pois me portei como um tonto
Ou um menino sem tino,
Diria até, masoquista!

Assim acontece,
Frequentemente,
Àqueles que,
Sem terem em conta
As circunstâncias,
Da vida presente,
Se vêem privados
Sem tom nem som
Mesmo daquilo
Que têm na mão.»

E aqui está mais uma
De aplicação
Aos nossos tempos
De muita bruma
Na nação,
Na indigestão
De muitos
E na fome do pobre,
Embora o pobre agora
Seja mais ajudado
Do que o desempregado,
Por devermos mostrar
Na habitual bondade
– Digo, hipocrisia -
Que a democracia
Está em primeiro lugar.
De cabeça perdida
E sem comedimento,
O nosso Primeiro
Já faz queixas lá fora
Às grandes potências
Do que aqui se passa.
Que atrevimento
E que falta de classe!
Como se importasse
Aos outros povos
Aquilo que somos
E o que fazemos!
Somos sapateiros,
Remendões, embora,
Que nos vamos amanhando,
E atamancando,
Com muita penúria
Mas não de tolice,
Lançando sempre mão
De qualquer rabecão.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

“Vou ali, já venho. Vou de barco.”

- Ouviu ontem o Cavaco? - pergunto, ainda impressionada com a nova proposta do nosso esbelto Presidente, ontem, num discurso televisionado.
A minha amiga também ouvira, e também se impressionara:
- O Cavaco acordou. Viu que há mar. Que há muito mar para aproveitar. Olha como ele descobriu!
- Acha que é p’r’ó peixe?
- Não é p’r’ó peixe. É p’ra transportes. Viajar por mar, em vez do T.G.V., que foi ao ar. Agora vamos todos apanhar o barquinho. Vou ali, já venho. Vou de barco.
- Isto nem em Veneza! O que eu vejo é que cada um dos maiorais quer deixar o seu nome ligado a uma via. O Cavaco já tratou da rodoviária, em tempos, já tem assegurada a fama histórica, mas agora quer a da via marítima. O outro preferiu a ferrovia de alto gabarito, mas teve que desistir, como há muito lho aconselhavam. A história lembrará as suas ventoinhas das energias alternativas, além dos Magalhães, para pôr as cabeças dos meninos a girar também. O Cavaco veio agora com esta de nos virarmos p’ró mar, o que deixou toda a gente, julgo eu, meio esquinada. Não há para o comboio e vai haver para o barco? Não estamos definitivamente afundados com os submarinos importados, e outras coisas mais que até parecem por demais?
- Parece que não, que não estamos. Mas agora até podemos combinar as nossas próximas férias.
- Aonde quer ir? -
pergunto, já na retranca. Eu não posso passar das Berlengas, que tenho o meu dinheiro guardado no banco.
- Guardado no banco? Ora, ora! Se o guardou no banco já anda a girar, que o banco é como os moinhos e as cabeças dos meninos.
- Gira que gira… Bem, vou então a pé, subindo a minha calçada…
- Mas como raio é que ele se lembrou dessa do mar, sem ser para peixe?
- Deve ter sido na praia lá do Algarve, aonde passa as férias. Sentado na areia, ter-se-á lembrado da pose do Infante D. Henrique em Sagres, com que se iniciou a volta? Digo, pelos continentes? Deve ter sido numa de sonho, de evasão, de saudosismo do nosso Presidente, como português genuíno que é.
- Da tolice,
largou a minha amiga implacável. E quem vai custear as naus de agora?
O défice tem vida própria, e a gente paga. Sempre pagou. Mas os nossos governantes sonhadores têm um companheirão no António Nobre, não julgue que estão sós! Há um soneto de 1887 que um dia encontrei transcrito num rochedo sobre a praia lá da Boa-Nova, como homenagem ao autor do “SÓ” e à dita praia. Bem merecem os nossos governantes que o dedique a eles, almas gémeas no fabrico de “castelos no ar”, “châteaux en Espagne”, francofonamente falando, lusofonamente definhando:

Na praia lá da Boa Nova, um dia,
Edifiquei (foi esse o grande mal)
Alto castelo, o que é a fantasia,
Todo de lápis-lazúli e coral!

Naquelas redondezas não havia
Quem se gabasse dum domínio igual:
Oh, castelo tão alto! parecia
O território dum senhor feudal.

Um dia, (não sei quando, nem sei donde)
Um vento seco de deserto e spleen
Deitou por terra, ao pó que tudo esconde,

O meu condado, o meu condado, sim!
Porque eu já fui um poderoso conde
Naquela idade em que se é conde assim …

"Alma de Afonso Henriques, retoma o teu gládio e vem salvar o nosso condado! Do vento do deserto... "

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

“Eu acho isto um carnaval…”

- …Estas discussões entre eles, nas televisões… e depois vêm pessoas normais dizer o que está mal e tudo o que se devia fazer para melhorar. E cada vez está tudo a piorar. Onde é que está a melhorar? Vê lá que para salvar o futebol – a minha amiga está mesmo formalizada, senão não me trataria por tu, que a nossa relação é de cerimónia, pois só nos conhecemos cá, após o retorno dos retornados de Abril, de que fizemos parte honrada, e nunca nos tuteámos, por isso é que estranhei a falta da deferência a meu respeito, a menos, admito, que falasse em abstracto, em invectiva para os seus botões – para salvar o futebol – disse - foram convidar o Mourinho para salvador. Mas para salvar Portugal não vão buscar gente.
- Ora essa! Que é lá isso? Então o que somos nós senão uma nação de nobre povo, ou seja, de gente valente, imortal?
- Nunca fomos capazes. Só somos bons rapazes,
rimou a minha amiga com ferino desprezo. Herdam-se os genes, não se herda o génio, alguém disse. Eu li. Mas não foi a propósito do país.
- Mas onde quer achar gente?
- Vão lá buscar alguém, ao Norte.
- O quê? À Noruega? À Inglaterra? À Lapónia? Que têm eles a ver com isto?
- Não! Ao Minho! Ou a Trás-os-Montes!
Não sei aonde é que a minha amiga vai buscar estas ideias peregrinas, pois se se refere a génios como o Eça, nascidos no norte, ele andou sempre às aranhas com as contas dele, para poder servir de exemplo. O Fontes Pereira de Melo, o Salazar, até o João Franco, estão ligados a esforços para safar a nação e não são lá do norte, que eu saiba, nem mesmo o Marquês ou sequer o seu seguidor nos esforços, Pina Manique. O nosso Sócrates também é do sul, é certo, e os esforços que faz são devastadores, apesar do seu empenhamento no cumprimento, provavelmente porque cumprimento in incumprimento, ou vice-versa, como poderia ter escrito o nosso Ary dos Santos poeticamente, se não se quisesse limitar ao seu voluptuoso e forte “insofrimento in sofrimento”, e que todos reafirmamos prosaicamente, amigos de parafrasear que somos, por não podermos ser outra coisa. Se é pelos escritores que fala, a minha amiga, lembro-lhe o nosso Nobel da Literatura que é cá das lezírias, embora se tenha norteado sempre bem.
Quanto a mim, acho, redundantemente, por sinal, que a primeira observação da minha amiga sobre os nossos genes está mais correcta e por isso não temos safa, que somos dados à calaceirice e ao incumprimento. Por isso, a escolhermos alguém a impor regras, só mesmo lá de fora, mesmo da Lapónia.
Quanto à questão do milagroso Mourinho, a minha amiga concluiu:
- Mas é cómico, não é? É pena que os espanhóis não sejam compinchas!
- Eles não são compinchas, e nós não deixamos nunca de ser pedinchas. Outra dos nossos genes.

sábado, 18 de setembro de 2010

O castor

O castor é um quadrúpede
Dos pântanos habitante.
As pudibundas partes suas são,
Com muitas artes
Das humanas mentes,
Empregadas
Em tratamentos medicinais
Naturais
E inteligentes,
Como só poderiam ser,
Provenientes que são
De gentes bípedes
Embora muitas vezes
Tratadas de quadrúpedes
Não por amor,
Mas é certo que sem favor.
Por isso, quando as gentes o descobrem
E o perseguem para lhas cortarem,
- Digo as partes pudibundas
E nada mais, mas isso é demais -
O animal, que sabe muito bem
O porquê de o cercarem,
Inteligente também,
Tenta, por algum tempo,
Escapulir-se,
Para intacto conservar-se,
Contando com a velocidade
Da sua corrida
Na pantanal campina
Para safar a vida.
Mas quando acuado se vê,
Corta as tais partes da sua vergonha
Com muita coragem e muita ronha,
Para longe as atirando,
A vida, assim, salvando.


Assim os homens:
Darão bem
Prova de sensatez,
Se sacrificarem o seu bem
Que alguém
Dele pretende, com avidez,
Para não arriscarem
A vida
E a salvarem,
Mesmo ficando
Sofrendo, chorando,
Plangendo,
De uma dor
Execrável,
Irreparável."

Mais uma fábula de Esopo
Que é um aviso
Para nós, mesquinhos,
Acuados, perseguidos,
Maltratados,
Nas almas, nos corpos
Nas bolsas,
Rebentadinhos,
Desesperançados.
“A bolsa ou a vida!?”
- Largai a bolsa, desgraçados,
Que não tendes outra vida.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

“Isto é ditadura”

Contei à minha amiga uma história recente, de alguém em busca aflitiva de emprego, que fez a sua entrevista, começou o seu trabalho, depois de ter sido aceite, de ter preenchido os papéis necessários, depois de estar duas semanas a trabalhar e a esforçar-se bem, dando-se bem com as pessoas, disponível para prolongar o seu tempo de trabalho, sempre que requisitado… Na véspera assinou os papéis do contrato, no dia seguinte foi despedido por uma outra empregadora que não tinha ainda aparecido na história. Não percebeu porquê, a desculpa foi de um engano de dez euros na caixa, não se sabe se real se fictício. A minha amiga considerou:
- Os despedimentos que se fazem agora, sem explicação nenhuma! E ninguém se atreva a perguntar! Isto é ditadura. Antigamente, mesmo com razão, o despedimento não podia ser de qualquer maneira. Agora pode. O lápis azul voltou. A Manuela Moura Guedes e o Moniz perderam os seus empregos porquê? Esses também se podem queixar de ditadura. Ele começou a acusar demais. Essa história de haver liberdade acabou. Não há. Já não há. Alguém que se atreva a dizer mal! Essa história até custa a crer! Como é que se pode fazer isso?
- Não, ditadura é um regime com significado histórico, em que se condenam ideologias refractárias ao sistema. Aqui não se trata disso, trata-se de uma brincadeira de indivíduos armados das suas falsas superioridades de empregadores, geralmente sem categoria mental,
para brincar com os que eles consideram inferiores, porque estes estão na posição de necessitados de trabalho. Há outros casos, razões de vingança, razões de inveja, as ciganas devem esclarecer. A arbitrariedade aqui faz lei, ela nos dirige, o medo instalou-se. É certo que as ditaduras, hitleriana, stalinesca, de Ceausescu, dos ditadores africanos, de ditadores sul-americanos, chineses, etc., foram e são horrendas, sem sentido, de uma perversidade medonha, inverosímil, equiparável aos atentados da natureza cega, nos seus furacões, nos seus tsunamis, nas suas precipitações arrasadores, que não respeitam nada nem ninguém do “pobre bicho da Terra”. Mas impostas por chefes, mantinham a nobreza de uma monstruosidade proveniente dos cabecilhas, dos governantes, dos que detinham ou detêm o poder, que eles julgam sagrado, sobre os outros homens, como no tempo dos Tibérios. Hoje, trata-se de uma rede, com muitos nódulos – os mandantes de vária ordem – cujos débeis fios que os interligam deverão esforçar-se por se manter firmes, e aceitar prepotências sem rebeldia, caso contrário, afundam. Embora, como no caso da aranha e da sua teia, outro filamento cubra depressa a ruptura. Uma rede forte, muito cobarde e muito mesquinha, que não dá azo a independências, nem a desobediências, excepto nas escolas, para os alunos, onde reina a liberdade da indisciplina, sofismadamente, para uma vida posterior em que tal desvairamento educacional passará à história, mas só nessa altura os meninos o saberão. Ser-se livre? Mas como, se o medo impera? Democracia, sim, que o povoléu das chefias é quem manda, após o esforço domador meritório do chefe supremo.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Não tarda uma Universidade na linha

A nossa proposta – Ela disse que foi só minha – foi a de elegermos o Paulo Portas Presidente da República. Mas foi Ela que disse: - Concordo com tudo o que ele diz. Tudo o que ele propõe é o que a gente gostava que se realizasse.
Aliás, eu nem me importei muito que ela se demarcasse da responsabilidade de elevar Paulo Portas ao cargo maior da política, pois há muito que o digo, sobretudo depois que o ouvi falar do Ensino com arroubo, desejando o regresso dos exames e o retorno da disciplina, embora ultimamente ele não tenha exposto tanto sobre isso. Espero que não seja por amizade com a Ministra da Educação, que até é escritora, pois as amizades às vezes fazem-nos mudar de opinião e levar-nos à abstenção, o que é uma forma muito descorada de participar, para não nos comprometermos tanto, mas mostrando que votamos vencidos, como faz o nosso actual PR.
Até costumava preferir para ele o cargo de PM, sendo o de PR para a Dr.ª Manuela Ferreira Leite, mas aqui o nosso povo não foi na conversa, julgo também que por não querer reconhecer as competências morais e intelectuais de ambos - como coisas desnecessárias - o primeiro porque se afundou com os submarinos, a segunda porque a acham lenta na oralidade, sem a amplitude vocal dos actuais ministros, na proporção da amplitude destrutiva da nação que eles insistem amplamente em proteger.
A minha amiga ouviu dizer esta manhã ao Portas, que aquilo que ele propusera, que fora instalar câmaras de videovigilância e que o Governo acabara por instalar, fizera decrescer a criminalidade.
- Foi ele - disse a minha amiga - e eu disse: sim senhor, eu também penso assim, eu costumo apoiá-lo. Porque é verdade: estas câmaras de vigilância resolvem as coisas mais rapidamente. Na questão da criminalidade. Há polícias a suicidarem-se. Por isso vão fazer greve, por falta de condições de sobrevivência. Quanto à Educação, não é nada de especial, é uma questão de bom senso.
- E ouviu sobre a nossa participação triunfal no ensino universitário com tão grande número de entradas?
- Pois! Nós em Portugal somos os mais espertos e civilizados, somos o país com mais universidades. Não tarda, está a abrir uma universidade aqui na linha. Fabuloso! E depois um homem do governo vem e diz isto, a saber, que não há emprego para ninguém, mesmo com curso.
- Sobretudo com curso! Mas muita falcatrua deve ter havido nos acessos! Ou será que eles acham que a gente não acha que houve falcatrua?
- Mas e isto quer dizer o quê? Os pais já não estão em crise, para porem os filhos na Universidade? A tal questão das propinas? Era. Já não há questão.
Isto dissemos nós anteontem, na nossa esplanada dominical. Ontem, a minha amiga disse, antes das compras:
- Estava a ouvir as entradas. Até com nota negativa se entra, em certos cursos. E depois aquele Mariano Gago – e quem fala assim não é gago – ele estava muito contente. Que entraram muitos mais do que no ano passado. Ah! Sr. Mariano Gago, eu fiquei gaga.
- Para além da simplificação dos exames, que isso pode significar, os alunos podem entrar com negativa?
- É capaz de ser assim, uma coisa forte demais. Qualquer dia o que é que acontece? Vai tudo para a Universidade. Sai tudo com diploma. E depois acontecem aquelas coisas de Justiça desacreditada, Medicina a falhar, um Ensino sem qualidade, uma matéria humana errática…
- Mas eu li que há universidades que devem fechar, por falta de alunos… Isto é um país de opereta, como dizem as pessoas dadas aos concertos. Herói-cómico, com haplologia, heróico-cómico sem haplologia, dizemos nós, mais talhadas para os desconcertos.
Lembrei o discurso do Alegre que me pareceu equilibrado, a pôr o dedo em certas feridas comportamentais do nosso actual PR. Mas como não acredito nele, nem sei em quem votar.
A minha amiga disse que ia votar no da simpatia do Jerónimo de Sousa, a pretexto de que eles é que sabem mais dos males.
- Podem saber dos males e desconhecer os remédios, digo eu indignada. Mas está bem, todos têm direito a encher os bolsos, segundo a sentença para as comidas e os comensais: “Ou há moralidade ou comem todos”.
- Mas o “comem todos” refere-se antes à “porrada”, responde a minha amiga circunspecta, pois não aceita facilmente contestação, donairosa como é, a lembrar o salero - e a aparência - da Sofia Loren.
- É o que nos espera a todos, “vae victis”!

sábado, 11 de setembro de 2010

Os crimes já tão iguaizinhos…

A minha amiga está possessa:
-Viu aquele crime horroroso em Coimbra? E aquilo tudo organizado pelo filho? Um estudante de medicina quase médico? O que é aquilo?! Um filho adoptado! Cá em Portugal que até é um país de brandos costumes, como se diz…
Eu não digo, acho uma expressão banal e falsa, sinto que não corresponde. Porque uma nação que só respeita os que são julgados superiores – e a gente sabe quantas das superioridades escondem má formação moral, não é um país de brandos costumes, é uma nação de pobres diabos, sem interesses culturais que ultrapassem o ressabiado “rumor das saias de Elvira” do descritivo de Fradique Mendes. Já vem, pois, de longa data, o tal atraso espiritual que impõe timidez, traduzida por “brandos costumes”, contrabalançada pela enérgica actuação dos totalitaristas finórios que nos governam e se governam, no desprezo das reivindicações dos que sofrem tais aberrações governativas. Mas a minha amiga não quis ouvir protestos:
- Isto é gente de um certo nível, continuou. Ela diz-se que era querida de todos, médica dum centro de saúde, em Coimbra, toda a gente gostava dela. Mas ele foi apanhado muito rápido. Estava de férias na Figueira da Foz. Fez de maneira a parecer assalto, mas a polícia depressa desvendou o crime e o seu responsável. O tipo a fingir que estava de férias na Figueira da Foz! Foi informado de que a mãe estava morta. Mas deixou pistas.
- Os crimes de faca e alguidar… Olhe que no tempo do Camilo também as filhas matavam as mães, evoluímos pouco nos sentimentos, devia ler o “Maria não me mates, que sou tua mãe!”, com que Camilo mais ou menos se estreou na notoriedade e na arte folhetinesca de partir o coração, embora aquela mãe do caso camiliano fosse uma mãe real e não de empréstimo, pois nas adopções dos filhos progredimos mesmo.
Esta colherada literária mandei-a eu, sentida por a minha amiga a cada passo frisar o meu desconhecimento das coisas neste país, embora eu a tivesse esclarecido de que o meu marido me falara no caso, ontem à noite. Mas a minha amiga, quando está lançada numa narrativa de sentimento, avança impante, indiferente a protestos:
- Gente que vivia bem, ela era separada do marido. E só tinha 58 anos a senhora. Agora, perante isto, o que é que se pode pensar? Isto é a coisa mais degradante do ser humano. Uns, porque dizem que é bêbado, outros, drogado… Este, não tinha nada, não sei o que este tinha, era quase médico… Horroroso, uma pessoa não quer acreditar. Então os portugueses não se comparam com os países grandes, como os Estados Unidos, o Brasil, e os crimes já são tão iguaizinhos?
Oh! Este crime que tanto feriu a sensibilidade da minha amiga – que a minha creio que está mais embotada, devido aos atentados que sofremos, nos corpos e nas almas, sem descanso, ao nível mundial, nacional, mediático, literário – este crime merece que repasse um pouco do tal texto de Camilo, que talvez nos inspire um sorriso de distância, dado o tom empolado e melodramático de que só o Parlamento se inspira hoje, embora se não dirija aos pais de família. Vejamos o texto:
«Maria! Não me mates, que sou tua mãe!»
«Pais de Famílias!
Atendei, e vereis o maior de quantos crimes se tem visto no mundo! Vereis uma filha matar sua mãe, porque esta lhe não deixava fazer o quanto desejava. Vereis como essa filha corta a cabeça de sua mãe, e os braços, e as pernas, e vai pôr cada pedaço de corpo da sua mãe em diferentes lugares, para que ninguém conhecesse o cadáver da morta, nem a mão que a matara e despedaçara. Vereis como a matadora de sua mãe, de sua mãe, ó pais de famílias, de sua mãe que a trouxera nas entranhas, que lhe dera o alimento dos seus peitos, que a criara ao seu lado com beijos e afagos, que tirara o pão da sua boca para o dar à sua filha, que fora talvez pedir uma esmola para que a sua filha não tivesse fome, e não desse o seu corpo em troca de um bocado de pão! Vereis como esta filha sem alma, sem medo de Deus, sem temor das penas do Inferno, é descoberta como matadora de sua mãe, por um milagre, pela providência de Deus! Vereis aquela mulher com alma de tigre comer com toda a vontade e contentamento, ao pé da cabeça ensanguentada de sua mãe, e responder quando lhe perguntam se é aquela a cabeça de sua mãe.
-Sim! – disse ela – essa é a cabeça de minha mãe!
E continuou a comer.
Pais de famílias! Eu vou contar-vos o mais triste e espantoso acontecimento que viu o mundo, e que talvez não torne a ver. Chamai vossos filhos para junto de vós. Lede-lhe esta história, e fazei que eles a decorem, que a tragam consigo, e que a repitam uns aos outros.
Pais de famílias! O que escreveu estas linhas com o seu pouco saber talvez vos terá ido à porta mendigar as migalhas da vossa mesa. Deus Nosso Senhor Jesus Cristo permita que eu possa levar a compaixão ao coração dos que me lerem, que eu, desgraçado pecador, fico pedindo a Deus pela alma daquelas infelizes mãe e filha.»
Eis o intróito desta peça, que ocupa as páginas 305/317 de “As novelas de Camilo”, da “Portugália Editora”, por Alexandre Cabral. Segue-se a história da Maria José e da sua paixão pelo falso José Maria, que a induz a estraçalhar a sua mãe que, honesta, se opunha ao concubinato da filha enganada, dissimulando os pedaços do corpo em vários sítios, e que termina assim:
«Estes atentados contra Deus, esta guerra de irmãos com irmãos, estes acontecimentos de filhos matarem pais, e esses sinais que nos aparecem no céu tudo indica que o fim do mundo está chegado”.
É claro que Camilo se enganava nas previsões, e, ao contrário do efeito moralizador, textos destes, tais como as violências modernas tão visíveis, têm apenas como consequência imediata, a proliferação do crime.
Mas só a minha amiga reage assim apaixonadamente, embora não à maneira de Camilo, moderna que é, que não precisou nunca de partilhar a sua sardinha, nem com a mãe nem com os filhos, como gostam de sublinhar as pessoas criadas com sobriedade ou penúria, restos das prosas camilianas do nosso miserabilismo.
Quanto aos sinais no céu… será que já havia OVNIS naqueles tempos de 1848? Mas hoje os sinais do Apocalipse têm a ver antes com os efeitos de estufa, a desertificação… Podemos ter esperança ainda, já que o Camilo se enganou, e dentro de dois séculos outros serão os motivos para a destruição do nosso tão belo planeta azul.
E quanto aos crimes... são mesmo muito parecidos, mesmo os de faca e alguidar, agora, todavia, com a vantagem do frigorífico.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

A vida realmente é danada!

- São pessoas que estão felizes, com saúde, com possibilidade de passear!... É uma coisa, pá! Se fossem pobrezinhos, não iam no cruzeiro! A vida realmente é danada! O navio Funchal, que sai de Lisboa e faz este percurso… Nove mortos!
- Agora há cada navio a fazer cruzeiros, autênticas maravilhas, que eu via da ponte, quando vinha de Setúbal, atracados em Alcântara!
- Pois! Cidades flutuantes! O Funchal é mais modesto. Mas fazem-se umas boas férias, evidentemente! E depois acontece uma coisa destas, pá! Aquele autocarro só levava portugueses…
- É tudo tão precário nesta vida! Tão injusto! E a criança de dez anos que perdeu três pessoas de família, certamente que as principais! Não é justo!
E ambas nos ficámos a meditar nos horrores. Um poeta falaria na beleza do céu, como contraste. E teria razão. Mas os contrastes são muitos num mundo de maniqueísmos. E nem a poesia nem a filosofia ou mesmo só filosofice, disfarçam o horror de tanto horror que por ele vai.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Mais vale prevenir

As lições das fábulas
São sempre sábias,
- Estamos fartos de o saber -
E actuais a valer.
Como se o tempo passasse
E nunca mudasse,
Tal o impasse
Permanente
Que a vida de contingências
Nos apresenta
Infalivelmente,
Sem rectificar as consequências
Das nossas acções
Com maiores ou menores variações.
Disse La Fontaine,
Cheio da sabedoria,
Que é nele habitual,
Na sua Inteligente alegoria

“Os dois Machos”

Dois Machos iam em bom andamento,
Sem qualquer lamento:
Um carregado de aveia,
Do moleiro da sua aldeia,
Outro com o dinheiro do imposto do sal
Gabela chamado, por sinal.
Este, em glória por tão belo encargo,
Dele ser liberto não admitiria
Nem receava
Que por causa dele
Algum mal lhe aconteceria.
Com passo elástico caminhava,
A corneta tocava
Num espavento:
Apresentando-se o inimigo
De ouro sedento,
Agarrou-o pelo freio
E sem receio
O deteve.
Ao defender-se o pobrezinho
Do Macho, carregadinho
De golpes, sente-se atingido
Pela trupe maldita;
Ele geme, ele suspira
Ele delira
Ele medita.
“É então isso o que me tinham prometido?
Este Macho por quem sou acompanhado
Do perigo é libertado.
E eu estou nele caído
E assim morro, esvaído.”
“- Amigo, diz-lhe o companheiro,
Foleiro mas certeiro:
Nem sempre é conveniente
Ter um emprego decente:
Tivesses tu servido apenas um moleiro,
Tal como eu,
Não ficarias agora
Em má hora
Todo rebentadinho
De pancadas,
No caminho. »

E não é que La Fontaine nem precisou
De escrever a lição de moral
Como lhe é habitual?
Eu não sou assim tão confiante
Na compreensão de todo o ser falante
E por isso vou
Imediatamente
Lembrar aquelas sentenças
Da sabedoria antiga
Sobre o excesso de ambição,
Ou de vaidade
Ou de desprezo
Pelo semelhante,
Que às vezes é castigado.
Será avisado
Quem nisso pensar.
Carreguemos pois, a nossa aveia,
Como quem ouro semeia,
E deixemos o ouro
- Que para mais é pó,
Como o somos nós
Dizem os doutores
Da Igreja mentores -
Para algum mais esforçado
Que tantas vezes é castigado
- Embora nunca arrependido -
Dos excessos da ambição,
Embora julgue que não,
Que não lhe chegará a vez,
Como ao macho francês
De ficar sozinho,
Pelo caminho.




quarta-feira, 8 de setembro de 2010

“Não são vítimas. São malfeitores.”

Foi a respeito do caso “Casa Pia”, que a minha amiga se saiu com uma expressão imprópria de pessoas educadas no esmero das boas maneiras, como logo lhe fiz sentir, na indignação compreensível pelos motivos anteriormente aduzidos de esmero educacional:
- Realmente, uma pessoa tem que se animar, mas não sei com quê. Só apetece dizer “bardamerda”. Acho que não convém, mas, na impotência em que estamos, perante tanto “poderio” que não olha a meios, alivia-se a alma.
- Essa lembra mesmo a posição do Maquiavel no seu “Príncipe”, como defensor do monarca de tal modo absoluto, que “não olha a meios para atingir os fins”.
- Tantos que a usaram e usam, mesmo sem serem monarcas, ora, ora !… A História é um chorrilho desses, o século passado foi um alfobre de ditadorzecos e este nosso século também vai bem guarnecido, não há que estranhar.
- Sim, e os que mais defendem a democracia, hoje, são os que menos olham aos meios para obter os fins. E os fins polarizam-se em torno deles e dos amigalhaços. É essa a essência da democracia: a centralização dos poderes em torno dos amigalhaços ou aderentes do partido. As noções de Honra, Pátria e Família são arcaísmos. Hoje impera o desprezo por valores de que se tinha a mente impregnada, no tempo em que não se contestavam as palavras “Moral”, “Justiça”, “Honra”, como o próprio “Malhadinhas” não deixa de assinalar, assarapantado com a revolução já no seu próprio tempo, para a qual tanto contribuiu o progresso, que muito mais hoje em dia se faz sentir, com a própria entrada triunfal dos magalhães nas escolas:

Voltou-se tudo; de meu tempo, também, homem de palavra era como se trouxesse sempre consigo um alforge de libras. Ajustava o que queria e levantava o que queria de proprietários e de tendeiros. Palavra era palavra, mais ouro de lei que uma peça de D. João. Assinava-se de cruz e muito judeu seria aquele que negasse os dois rabiscos lavrados de seu punho, porque não era só negar dois rabiscos, mas o grande sinal de lisura e de verdade que Jesus Cristo deixou aos homens ao morrer num madeiro para nos remir e salvar. Vão lá agora com essas !...”

M
as a minha amiga não vai em prosas aquilinianas, particularmente agora que anda à procura de animação e não a encontra, porque não faz como eu, que tento fugir às dores noticiarísticas à hora dos programas cómicos, dos de José Hermano Saraiva nos seus encantadores percursos histórico-geográficos imbuídos de carinho pátrio, dos filmes clássicos ou dos policiais oferecidos pelos meus filhos, que há muito já me traçaram o perfil, pouco adepto das confusões surrealísticas das modernidades criativas.
E assim, para disfarçar, a minha amiga acrescentou à sua expressão ofensiva da boa moral:
- Ontem estava a dar uma notícia, uma boa notícia: aquela fábrica que esteve para fechar recebeu uma boa encomenda de carros e vai empregar muita gente. Só que, acaba essa notícia, e logo outra se segue que diz que vai fechar outra fábrica. Tudo p’rá rua! Daquelas coisas tremendas que sempre me custou ouvir.
- Nos custa ouvir, creio que não há ninguém que não sofra com este panorama do desemprego sempre aumentando no nosso país. Uma pessoa sem trabalho sente-se tão infeliz como uma pessoa doente. Aliás, é uma doença, a falta de trabalho, que não só destrói as pessoas como a nação inteira, que fica cada vez mais exangue.
- E já viu como se processa o processo Casa Pia? As defesas dos condenados, a notoriedade mediática, os discursos dos que aparentemente foram incriminados justamente, e que se defendem tão bem, tão bem, que os que foram suas vítimas – e provou-se o quanto sofreram essas crianças – passaram de vítimas a carrascos. Não são mais vítimas, são malfeitores.
- E tudo isso, graças ao poder real - e até mesmo divino - da palavra. Oral ou escrita agora, porque nos tempos bíblicos, bastou a oral: “ In principio erat verbum”, foi S. João que assim iniciou o seu Evangelho, referindo-se à palavra de Deus. Mas, quem for senhor da palavra, mesmo hoje, tem também o mundo nas mãos, por muito maculadas que estejam. Ou a seus pés, que deve ser sinónimo.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

“Já não os suporto”

- Só tenho para dizer que não os quero ver à minha frente. É horrível ouvir qualquer deles, incluindo o Cavaco. Já não os suporto. O Cavaco está muito manso, o que ele quer é que não haja nenhuma complicação entre aqueles dois. – Creio que se referia ao Sócrates e ao Coelho. - Mas afinal, o que é que convém? E vai-se buscar o dinheiro aonde? Aonde? Aos bolsos destes ricos, às reformas milionárias, elas existem há anos e continuam a existir.
- Eu acho que o dinheiro se vai buscar aos bolsos dos de sempre, ora essa!
Enfim, a minha amiga estava perfeitamente a leste do programa “Prós e Contras” de ontem sobre a questão pedófila, que era o que eu desejava que ela tivesse visto, pois eu mal os ouvi, também enfastiada, com os amigalhaços a defender o Carlos Cruz, como o tal Marinho que usa os seus poderes legislativos para chafurdar na lama das almas, incluindo a sua, e atacar o povoléu que o que quer é assanhar-se e chafurdar também, a fingir-se indignado com a hediondez dos crimes, mas na realidade rebolando-se no delírio invejoso do ataque aos bem posicionados na vida, como o Cruz. Foi o que depreendi de alguns dos dizeres do Marinho Pinto, na sua linguagem corrida e desenvolta, de quem tem a verdade como lema e a usa como dono dela, acusando os indignados de acima de tudo quererem lixar o PS. Em tempos, achei que o Pinto era bem-intencionado nos seus discursos e objurgatórias verrinosas, como defensor dos bons costumes, mas o que ele foi traçando, nestas suas vindas às mesas televisivas, foi maior visibilidade para a sua figura, com reflexos, certamente, na progressão da sua carreira.
Não, pouco interessa o que dizem A ou B ou C, estamos todos fartos, fartos, fartos, esgotados.
Somos um povo sem escrúpulos. Nas escolas agrupadas, directores manipulam horários dos professores a seu bel’prazer, soube-o ontem, conforme as suas simpatias, pois que a preparação técnica do professor, a sua dedicação, a sua classificação profissional deixaram de contar, por conta da reforma do ensino.
Estamos na época das Novas Oportunidades, dos tais cursos de formação para a estatística, cursos “sem escrúpulos”, dos sem escrúpulos que os promoveram e fingem acreditar neles, no que são acompanhados pelos envolvidos nessa ficção, por conveniência própria.
E ninguém se rala, e os meninos pequenos, nas escolas, já se chamam, uns aos outros, inocentemente - ainda não creio que seja perversamente - “gays”, vocábulo que entrou na nossa terra, onde a pedofilia não só tem bastante saída, como a sua punição não passa de retórica para mais chafurdice nos corpos, nas almas, nas acções, e na linguagem.
Como aceitar? Como suportar? Como continuar?

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Tudo p’r’ó normalzinho

Fui de peito feito para demonstrar o meu apreço e orgulho pelo nosso Engenheiro José Sócrates pelo recitativo que fez sobre as crianças, depois de ter pegado numa ao colo, estavam a inaugurar mais uma creche, como enalteceu, em apoio à procriação:
“Mas o melhor do mundo são as crianças, flores, música, o luar e o sol que peca só quando em vez de criar seca”.
O Pessoa não ficaria escamado pela singeleza do recitativo, que o seu poema é todo ele um apelo à preguiça mental e à anarquia comportamental, embora o faça ironicamente, coisa que os anarcas não topam, que até lhes convém não cumprir o tal dever e esperar pelo D. Sebastião.
Infelizmente a minha amiga não me acompanhou no meu elogio, pois não ouviu o recitativo socrático-pessoano, só reparou na criança ao colo socrático, eu creio que eles retiraram o registo cultural ministerial, só deixaram a menina ao colo, segundo vi no noticiário a seguir.
O que ela logo considerou, com a sua agilidade mental habitual, foi a superioridade do nosso Engenheiro relativamente ao nosso Presidente na questão das criancinhas, pois o Dr. Cavaco não memorizou poemas para recitar nem pegou em meninos para a sua campanha eleitoral, no Refúgio do Ascensão Amboim, ao contrário do nosso Primeiro, que joga a todos os carrinhos e por isso pegou e disse, na inauguração da creche. O que ela apontou ainda, foi o paralelismo nas actuações governamentais, de iniciarem os respectivos programas de retoma com as manifestações afectuosas nos lares com criancinhas, causadoras de natural empatia popular, para as candidaturas que se seguirão.
Mas a minha amiga estava mais voltada para as terras donde voltámos, há quase trinta e seis anos:
- Não falámos na revolta do Maputo. Os coitados já estão abafados. Não têm mais para dizer? Isto é à pressão. Eu só sei que eles têm razão.
- E disse o seu amigo há dias: “Aquilo agora é que está bom! Como nunca esteve!”
- Ah! Mas esse é mesmo por amor àquilo, à terra e à família que lá tem! Amor à terra, como muita gente! O que eu digo é que os branquinhos que lá ficaram e outros que para lá foram, muito ricos, muito ricos, vivem com uma ostentação que brada aos céus. E porque não se revoltaram mais cedo os negros? E revoltaram-se ontem, 1 de Setembro, eles só têm fósforos, não têm mais nada. Aqueles pretos são muito boa gente mesmo. Veja que se passaram mais de trinta anos. Houve uma manifestação ontem e outra aqui há uns anos. E eles têm razão. Acusaram-nos a nós de os explorarmos! Mas nós não vivíamos com tanta ostentação, era tudo p’r’ó normalzinho. Isto agora é ostentação demais, autênticos bunkers dos brancos ricos, com tudo o que há de melhor, à prova de todos os fósforos. Os pretos têm razão, que é criminoso o aumento do custo de vida, nas suas vidas miseráveis que tão bem contrastam com as dos “bunkers” dos brancos. Mas são abafados. À bastonada, talvez com bolas de borracha, metidos nas cadeias…
- Pois! O normal, nas democracias que semeámos.

Nos meus tempos do liceu
Tempo em que a escola era franca e risonha
Ao contrário do que se diz
- Tempo de exigência bisonha,
Na opinião geral
Actual -
Havia no livro de francês
Uma fábula do La Fontaine
Que eu decorei.
Era um tempo em que se decorava
E a poesia andava
Na nossa cabeça e acompanhava
O nosso evoluir
Que eu muito bem sei.
Era a fábula
Le Laboureur et ses Enfants”
E assim rezava :
« Travaillez, prenez de la peine :
C’est le fonds qui manque le moins »…
Mas devo antes traduzir
Para assim me divertir
E melhor fazer compreender
As lições do clássico francês
E o porquê de tal fábula no nosso livro de francês,
Não sei bem se do terceiro ano
Que corresponde ao sétimo actual
Em que, por nosso mal,
O francês desapareceu de vez.
Vejamos a tradução,
Com o meu pedido de perdão
Por atraiçoar um pouco a escrita
Embora sem muita batota
Que não está na minha intenção
A traição:

“Trabalhai, esforçai-vos
É o recurso que menos falha
Na diária batalha.
Um rico Lavrador, sentindo a sua morte chegada
Mandou vir os seus Filhos,
Falou-lhes sem testemunhos.
“Não penseis em a herança vender
Pelos nossos pais deixada:
Um tesouro está lá escondido ,
Perdido
Não sei bem onde; mas corajosamente
Achá-lo-eis, vereis:
Consegui-lo-eis,
Se o quiserdes ter,
Seguramente.
O vosso campo revolvei
Mal a ceifa esteja acabada,
Furai, remexei, cavai,
Nenhum lugar deixeis
Em que a vossa mão pesada
Não passe e repasse
Cautelosamente.
O pai tendo morrido,
O campo os filhos revolvem
Por aqui, por ali, sem exceptuar nenhum cantinho
De tal forma que ao fim do ano
O campo produziu mais milho e vinho
E tudo o que o campo tem obrigação de dar
A quem se quer esforçar
Por isso obter.
Dinheiro não o puderam achar
Que não estava lá escondido
Realmente.
Apenas metaforicamente.
Mas o pai foi bem prevenido
Ao mostrar-lhes, antes da sua morte
Que o trabalho
É o tesouro mais forte.

Esta fábula é bem importante!
Quem dera que os nossos alunos a decorassem
E a si a aplicassem,
Briosamente,
Que as nossas famílias aos seus filhos a ensinassem,
Que as nossas gentes a meditassem
E nos seus trabalhos a utilizassem
Profissionalmente,
Inteligentemente!
E que os nossos governantes a impusessem
Sem subterfúgios,
Rigorosamente!
Quem dera que isso fosse verdade
E não fábula sonhada
Entre nós cá,
E só propalada
Aos quatro ventos
Pelos povos atentos.
Lá.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Receita para um envelhecimento tranquilo

- Os prédios estão cheios de gente velha! Isto é um bairro de gente velha!
Via-se que era com desgosto que a minha amiga falava, sentada na esplanada, diante do seu garoto pouco claro. Eu é mais a bica calmante dos bocejos escancarantes da manhã, cujo primeiro gole detém instantaneamente bocejos e lágrimas do cansaço diário, diz-se que graças à cafeína milagreira. Mas ela continuou, atirando a cabeça em jeito dramático, abarcando os prédios e a senhora idosa que passava no largo de braço ao peito:
- Os das vivendas escapam. Mas é uma coisa horrível Ih! Pá! Ai!
Fiquei deprimida. De facto, o tempo passa que é um ver se te avias. E não nos podemos esquecer de ser cuidadosos a andar, que a calçada leva-nos facilmente ao malhanço, já o tenho dito, sem que isso tenha relevância, que somos conservadores nos buracos. Mas que há muitos velhos, há, los hay. E buracos, claro. Também.
Não quero deixar-me abater e retomo as notícias do meu país, mais de acordo com o nosso intelecto.
-O Cavaco interrompeu as férias e foi visitar o Ascensão Amboim, por via das presidenciais, começou ontem a candidatura… Não conhece o Ascensão Amboim? Não me diga, que eu caio já aqui para o lado. Tem um refúgio para crianças abandonadas, veja na Internet…
É muito crítica a minha amiga, com a falta de actualização nos conhecimentos. Pelo menos nos meus. Há dias foi a respeito do Casino do Estoril, que fez um estardalhaço idêntico, por eu ainda não ter ido ver as remodelações, presa que vou estando aos espaços das minhas limitações, que ela atribui mais à ausência de curiosidade. Por isso lhe mostrei a troca de correspondência internética, com o meu amigo Salles da Fonseca, prova de que, tal como o Hamlet, também eu acho que “há mais coisas entre o céu e a Terra, Horácio, do que sonha a nossa vã filosofia”. Foi a respeito de um poema da Glória de Santana que ele publicou no blog Elos Clube de Tavira, a que preside:
Se me quiseres conhecer
Se me quiseres conhecer,
Estuda com olhos de bem ver
Esse pedaço de pau preto
Que um desconhecido irmão maconde
De mãos inspiradas
Talhou e trabalhou em terras distantes lá do norte.

Ah! Essa sou eu: órbitas vazias
no desespero de possuir
a vida boca rasgada em ferida de angustia,
mãos enormes, espalmadas,
erguendo-se em jeito de quem implora e ameaça,
corpo tatuado feridas visíveis e invisíveis
pelos duros chicotes da escravatura…
torturada e magnífica altiva e mística,
África da cabeça aos pés,
– Ah, essa sou eu! Se quiseres compreender-me
Vem debruçar-te sobre a minha alma de África,
Nos gemidos dos negros no cais
Nos batuques frenéticos do muchopes
Na rebeldia dos machanganas
Na estranha melodia se evolando
Duma canção nativa noite dentro
E nada mais me perguntes,
Se é que me queres conhecer…
Que não sou mais que um búzio de carne
Onde a revolta de África congelou
Seu grito inchado de esperança.

Noémia de Souza / Moçambique 1958

Não resisti a comentar, no blog Elos Clube de Tavira:

Como todas estas sensibilidades parecem agora distantes, todas em redor das mesmas plangências, dos mesmos motivos de dor, de um patrioteirismo fértil em insinuações e imagens sentidas contra o opressor explorador! Será que eram absolutamente sinceras? O certo é que rendem mais fama e proventos!


O Dr. Salles aproveitou a deixa, para esclarecer, com bonomia aristocrática em comentário demonstrativo das verdades contidas no meu prosaico comentário:


Noémia de Souza nasceu na Catembe (para quem não conheça Lourenço Marques/Maputo, é assim como Cacilhas relativamente a Lisboa e Niterói relativamente ao Rio de Janeiro), e divagou pelo Brasil, França, etc. Mas quando chegou a hora da verdade, aconchegou-se em Portugal e morreu em Cascais.
Eles falam, falam, falam... mas afinal é a nós que voluntariamente entregam as almas.
Fazem assim muito bem e nós gostamos que assim seja!
Hoje, passados quase 40 anos das Independências, já perceberam que nós estávamos lá para viver deixando viver, o que não terá sido exactamente o que fez quem nos sucedeu no Poder.
Creio - apesar das alfinetadas desta literatura histórica - que a expressão africana lusófona não pode deixar de ser divulgada pois é inequívoca parte da Cultura Lusíada e o Elos propõe-se congregar não só os lusófonos passados e actuais mas também aqueles que já não falam português e que hão-de voltar a fazê-lo. Divulgar a obra dos que viveram em português, é um modo de nos aproximarmos.
Continuemos...


Enviei segundo comentário:

"Pois assim se fazem as cousas". Era o "refrão" aposto por "Pero Marques" à proposta da "Inês Pereira", às cavalitas do marido e dizendo: "Marido, cuco me levades! E mais duas lousas!" Nós somos os cucos. Prestáveis.

Concordou a minha amiga com os dizeres, na ponderação de uma sensatez sem ilusões, tal como a nossa, pois que o Dr. Salles ainda as tem. Por ser mais jovem. E assim me reabilitei a respeito da curiosidade ou da falta dela: Há mais coisas, há outras…
Mas em casa encontrei, em letras garrafais, na primeira página do caderno “Economia”, do Expresso, o seguinte título seguido da notícia sobre a construtora Leirislena:

“Estado investiu E936 mil em empresa que faliu dois meses depois”

Telefonei à minha amiga. E concordámos que as férias, embora quentes das chamas, tinham acabado. Regressáramos ao antes delas, estávamos no nosso elemento. Melhor seria deitarmos tudo para trás das costas.
Não, não há mais coisas entre o céu e a Terra, Horácio, por muito vã que seja a nossa filosofia.
Pelo menos por cá.
Deitemos para trás das costas…