segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

“Deus queira que aquele povo o agarre”

A minha amiga estava hoje azeda até dizer chega. Falou-se do Bibi e logo ela:
-Eu espero que o Bibi apanhe mais uns anos, por aquilo que está a dizer. Porque é que não se lhe pergunta: -“Quem é que fazia isso? Diga um nome”. Aposto que não denunciava ninguém. Que miserável aquilo que este homem está a fazer, a falar em falsas declarações anteriores, a pretexto de ter sido drogado!
Mas a minha educação esmerada força-me a desculpabilizar o Bibi e tudo o que lhe fica subjacente:
- Pois olhe que deve haver grandes sumidades por trás de tanto descaramento e desbragamento “mentireiro”, e não haverá mal que lhe chegue a mais. Tal como já dizia o outro, dos nossos primórdios mediévicos: “Ca vej’eu ir melhor ao mentireiro / Qu’ao que diz verdade ao seu amigo”. Aliás, Bibi anda por aí, à solta…
A minha amiga continuou implacável:
- O advogado do Carlos Cruz veio logo todo ufano: quer reabrir o processo.
Falou-se também no ditador Hosni Mubaraque e a minha amiga foi feroz:
- Deus queira que aquele povo o agarre. E o mate. Aquele sacana daquele homem está há trinta anos no poder.
- Isso também o Jardim, e o povo venera-o. Ele tem o apoio de Israel, não vai cair assim.
Mas ela insistiu no seu ponto de vista virtuosamente exaltado, respeitador do que considera justo:
- Cada vez, admiro mais o Obama.
Achei que o estado de espírito da minha amiga estava mais moderado, e alegrei-me:
- Então porquê?
- Porque ele está lá para fazer coisas, não é só para mostrar o seu poder. Os anteriores sempre apoiaram cinicamente o governo egípcio. Obama afirma que as leis têm que ser mudadas. Que o povo tem que ser ouvido.
- Talvez. Mas isso também se passa na China, e é o que se vê de gente descontente. Mas de tal modo obediente, que quase raia a perfeição, no domínio humano. Basta ver as paradas e toda a arte circense. Para além das cabeças disciplinadas e inteligentes daquela gente jovem, que sabe respeitar valores. E eles, os chineses, aí estão, com os seus comércios, por enquanto, esperemos que sem veleidades de imporem a sua raça como forma de selecção natural, para a pureza racial, que isso tem consequências desastrosas. Só espero é que não venha por aí novo holocausto…
A minha amiga lançou os meus receios no rol das utopias:
- Não, os chineses não fazem ondas, só fazem contas. E bem.
Mostrei-me abespinhada:
- Mas é uma utopia bem pessimista, se é que se pode chamar assim.
- Seja! Não acredito nessa hipótese.
- Ninguém pensou, antes, em campos de extermínio nazis. E eles aconteceram. Temos que nos mentalizar para tudo, tal a velocidade a que se progride
- explico eu, muito prática.
Mas a minha amiga achou que estávamos para ali só a falar, a falar… como disse o Ricardo Pereira.
E recolhemo-nos ao silêncio. Das compras no supermercado.


terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Corridas da memória, corridas da história…

Meu Pai faria hoje 110 anos.
Mas morreu com 78.
Lembrei-me de o festejar
Com a fábula de uma corrida -
- Coisa, aliás, em que ele nunca quis entrar,
A não ser na corrida da vida,
- E foi heróica a sua vida,
De esforço constante, a lembrar
A tartaruga estóica,
Embora não
No seu vaidoso alardear final,
Troçando da lebre, esperta
Mas negligente.
Vida de amor, somente,
Sim,
De dedicação,
Que se mantém, como recordação,
Numa constante evocação
Até ao fim.

"A Tartaruga e a lebre"
De nada serve correr; o que é necessário
É partir no propício momento
Para o evento:
A Lebre e a Tartaruga testemunham esse princípio.
- (Mas, é claro,
Não é só o fabulário
A comprová-lo.
Aliás, o fabulário,
Serve apenas, de lição,
Como já disse La Fontaine,
Aos homens, cujo comportamento ele anota
Na sua semelhança com o mundo animal.
Donde, a lição de moral.) -
“Aposto, diz a tartaruga
Na dita fábula de La Fontaine,
- (Que ele transpôs
De Esopo fabulista,
Com mais pormenor visualista
Contudo, do que este) -
Que vós não atingireis
Mais depressa do que eu, aquela meta”.
-“O quê? Vós? Mais depressa do que eu?
Não estareis vós pateta?”
- Troçou o animal mais ligeiro,
Com certo despeito
Se não mesmo com falta de respeito:
“Comadre, precisais de quatro grãos
De heléboro para vos purgardes
De um disparate de tal arte.”
- “Pois eu continuo a apostar,
Por muito imprudente que pareça ser.”
Assim se fez; e perto da meta
Foi colocado o dinheiro
Da aposta.
Nada disso para a lebre
Foi problema,
Nem o foi, o juiz contratado.
- (Já então, ao que parece,
Qualquer juiz merece
Desconfiado cuidado.
Não é só de agora,
Já o era outrora.)
Mas à nossa lebre
Bastavam quatro passadas para lá chegar,
Embora tivesse que se afastar
Duns cães, às calendas os enviar,
Para que a fossem pela charneca farejar,
Sobrando-lhe tempo ainda para roer,
Para dormir e para escutar
De que lado o vento ia soprar

Para, enfim, até à meta correr.
A tartaruga parte, esforça-se
Apressa-se com passo lento
Mas forte.
A lebre, pelo contrário,
Despreza essa vitória.
Nenhuma glória atribui a tal aposta

Pouco honesta.
Considera uma desonra partir cedo.
Come, repousa,
Diverte-se com outra coisa,
Não com a aposta
Que a desgosta.
Por fim, quando vê
Que a outra estava a chegar ao fim
Da corrida,
Dispara em brasa,
Em direcção à meta.
Mas esta, para si, está perdida,
Que a tartaruga chegou primeiro.
- Pois bem – gritou esta – eu não tinha razão?
Para que vos serve tanta velocidade?
Eu ultrapassei tal qualidade,
Com a minha persistência
A minha vontade,
Digamos, inteligência.
Que seria de vós, então,
Se no dorso, tal como eu,
Transportásseis uma casa
Que com seu peso me arrasa?”

Não, meu pai não se gabaria,
Como a tartaruga valente.
Até porque jamais teve,
Às costas, casa que preste.
Mas também sabia
Que mais valia ser persistente
Para se chegar
A um qualquer lugar
Que desejemos obter.
Pelo menos era o que ele via
Do lado de cá onde vivia,
No lado de lá, na galeria
Dos que sabiam correr
Para melhor viver.
Ainda hoje é assim,
Ainda hoje se corre,
No afã de lá chegar,
À meta, e até mesmo ultrapassar
Qualquer lebre mais capaz,
Mas de ambição pouco sagaz.
Aliás,
Se uns provérbios dizem o mesmo,
Outros focam o contrário:
Fia-te na Virgem e não corras”
Aponta para a necessidade
De trabalhar para conseguir;
Nada deixar
Ao acaso
De uma devoção de cumplicidade.
“Não é por muito madrugar
Que amanhece mais cedo”,
Pelo contrário,
Mostra a inutilidade
De qualquer esforço para a meta atingir.

Teremos que recorrer,
Para o aprender,
À experiência de quem nos está a gerir.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Se calhar já não é problema

Falámos há dias no caso de uma amiga da minha amiga que deixou de falar com a filha porque esta resolveu engravidar por meio da inseminação artificial. Discutimos o caso, a minha amiga contou que a sua amiga andava desfeita.
Perguntou-me que atitude tomaria eu no caso de isso acontecer com uma filha minha e eu respondi que não sabia. Que achava hediondo o caso, um dos muitos casos hediondos em que mulheres ou homens resolvem ter filhos de pais ou mães incógnitos. Não por causa dessas mulheres ou homens, seres adultos responsáveis pelos seus actos, mas das crianças que eles criariam, sem preocupação pela sensibilidade daquelas.
Porque as crianças inicialmente aceitarão a sua mãe ou o seu pai exclusivos, mas um dia, ao despertarem para a vida, desejarão conhecer o outro elemento responsável pelo seu ser e sentir-se-ão marginalizadas na sua escola, complexadas na sua vida, seres castrados, amputados de um conhecimento indispensável ao seu equilíbrio afectivo, social e moral.
E como avó que seria de uma criança nessas condições, castrada psiquicamente, castrada socialmente, desfalcada de um progenitor, como de um órgão doente do seu corpo, eu viveria infeliz para sempre, tal como a criança sem culpa, fruto dos egoísmos materno ou paterno, que criminosamente utilizaram os poderes da ciência e das governações sem moral, para satisfazerem os seus apetites de entretenimento com uma criança viva, sem preocupação pela sensibilidade daquela, tal como na infância haviam brincado com os seus bonecos.
Mas num jornal grátis - colhido na minha caixa do correio – Folha de Portugal – creio que por obra e graça do Espírito Santo, pois que provém da IURD, Centro de Ajuda Espiritual, que não cobra, segundo informa, do que nem a minha amiga nem eu temos a certeza, pois que geralmente este tipo de espiritualidades sobrevive à custa de muitas cobranças – leio em título: Famílias no Singular, seguido de umas alíneas em subtítulo sensacionalista: “Número de famílias monoparentais aumenta em Portugal. Casais com filhos são cada vez menos. Há mais mulheres sozinhas com filhos do que homens. Alteração familiar segue tendência europeia”, e a minha amiga aproveitou para, à minha preocupação pelo futuro da sociedade, contrapor, calmamente, que “se calhar já não é problema”.
Senti-me, pois, relegada para o grupo do conservadorismo e atraso bota-de-elástico, ao ver a minha amiga tão indiferente, lembrando crimes mais antigos, como a "roda", dos tempos passados, máquina de despejos de crianças enjeitadas, frutos de pecados a ocultar, ou o abandono dos filhos ordenado pelas convenções sociais, manipuladoras das reputações das donzelas, ou, mais contemporaneamente, ter o estigma de “pai incógnito” no registo da criança filha de qualquer macho irresponsável, abandonando a fêmea que se descuidara no seu papel de simplesmente fornecedora de prazeres libidinosos…
Era verdade, muitas Fantines sofreram então, na vida real como na literatura, muitos filhos enjeitados teriam a sua parte de dores, que a sensibilidade de escritores como Camilo, focaria de modo inflamado, numa Josefa da Laje sacrificada, numa Maria Moisés redentora.
Hoje, todavia, a mulher deu um piparote nas convenções, que a modernidade desinibida e trocista, indiferente ao bom senso, e sem grandes escrúpulos, condena na sua hipocrisia, encomendando o filho que a ciência lhe proporcionou, e o Estado lhe permitiu, sem dar cavaco a ninguém. O mesmo fazem os casais homossexuais, com direito às suas afectividades, sem preocupações morais nem respeito pelo ser que vão perfilhar ou criar.
Temos que aceitar a evolução como se apresenta, nos seus benefícios, nos seus malefícios, na radicalidade das mudanças.
A minha amiga tem razão: A sensibilidade das crianças se calhar já não é problema dentro de alguns anos. Ou meses, quem sabe?

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

“Morrer fica caro”

Foi a minha amiga que o disse, depois de nos transmitirmos notícias de vigarices fúnebres – ou exóticas – ou lusas - relativamente aos funerais realizados pelas funerárias do nosso país a decompor-se. Contei eu primeiro, por ser recente a minha história. “Morrer fica caro”.
Era uma senhora simpática, 82 anos, que sofria do coração, quando o marido morreu ficara toda a noite de vigília, acompanhada da filha e de mais dois familiares, prova de muito amor. Morreu em igual dia de semana do marido, com a mesma idade, era pessoa estimada, teve bastante gente no velório. Menos no funeral, é certo, como é costume. A filha tratou com a Funerária, julgavam todos que as cinzas do corpo cremado iam ser guardadas no pote a enterrar, com uma planta a crescer por cima, com o tempo. Na natureza nada se perde. Pois não foi assim. Souberam-no pouco antes, o agente funerário não explicara. As cinzas foram para o monte de cinzas de outros corpos, vala comum que não extrema individualidades, e que pelo contrário as irmana, definitivamente. Cristãmente, dirão os do exercício fúnebre. Para ter direito às cinzas da pessoa amada, eram necessários mais duzentos euros, não tinham sido avisados, tinham pedido para pagar toda a despesa posteriormente, aquando do recebimento do valor estipulado, pela colaboração estatal. Por isso não foram avisados, que é preciso ser rápido nas despesas com a morte, e as dificuldades familiares não o permitiram. As cinzas ficaram na vala comum do crematório, indistintamente. Mas o que conta é a alma, que está no céu, na afirmação do seu bisneto de oito anos, criança sensível e meiga e que nada entende de cinzas. Foi em Rio de Mouro, Sintra, o certificado, recebido posteriormente, indica que poderiam escolher entre o buraco comum e o pote, mas ninguém os advertiu sobre as condições.
A minha amiga ficou indignada e contou também o caso de uma amiga sua, que tinha pedido o preço mais barato, por proposta do marido antes de morrer. O senhor da funerária estendeu as amostras de caixões e não falou em preços. A senhora informou o que pretendia, ciente de que a escolha estava dentro da sua proposta de preço reduzido, caso contrário o sujeito teria contestado, informando sobre o seu valor real. Quando apresentou a conta exorbitante, o sujeito respondeu tranquilamente à surpresa indignada da senhora: - “A senhora escolheu o mais caro!”
- É preciso muito cuidado, concluiu a minha amiga. Apanham as pessoas numa situação de fragilidade e usam a astúcia e o dolo, para melhor enganarem.
- Afinal, não há diferenças entre os nossos bancários, os funerários, os freeportistas, os argentários, todos eles falsários, todos eles aproveitadores, todos eles encobridores… Todos sem sentimentos nobres. Uma triste história a nossa, a destes últimos tempos. O que virá a seguir, para além do desemprego em ascensão de descontrole, na indiferença de quem manda?

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

As solas

Falámos da Nau Catrineta a propósito
Da crise que atravessamos, e das solas de molho
Que os navegantes tiveram que pôr
Para poderem no outro dia comer
Ao jantar,
Quando andavam a navegar.
A minha amiga achava
Que teremos que as pôr de molho
Novamente,
Por causa do Presidente
Andar a dizer agora
Que bem tinha o Governo avisado
De que este andava desencaminhado
- Embora não fosse propriamente
Um descamisado -
Mas nunca avisara o país desse facto
Por, de imediato,
Lhe convir a si ficar no posto ambicionado
Sem se mostrar contra ele
Demasiado contrariado.
Eu concordei
Com essa das falsidades
E espertezas do Presidente,
Mas achei
Que solas, se tivermos que de molho as pôr,
Embora mais duras de roer,
Já só as de plástico poderemos meter,
Por serem mais raras hoje em dia
As dos cabedais nacionais
Por falta de bois.
Mas achei muita graça à ideia das solas de molho
Que devemos ter colhido no Esopo
Na sua fábula “As cadelas esfaimadas”
Umas que, como nós, preocupadas
Pela sua sobrevivência,
Se tramaram
Quando tentaram,
Com muito esforço e pouca inteligência,
Alcançar as solas
A beber água, e assim morreram
Arrebentadas.
Vejamos o que diz Esopo
Sobre as solas de molho
Que o esbelto Garrett usou,
Com comiseração,
Na Nau Catrineta da nossa tradição:

«Umas cadelas esfomeadas
Tinham notado uns cabedais
Postos a curtir num ribeiro
Por conta dum sapateiro,
Mas bem fora do seu alcance,
O que as motivara para,
Antes de lá chegarem,
Irem beber primeiro
Toda a água do ribeiro.
Mas tanta água emborcaram,
Que rebentaram
Antes de os cabedais
Alcançarem.
Acontece assim também
Às pessoas que, para um proveito
Que achem do seu preceito,
Se arriscam a perder a vida
Numa excessiva lida,
Antes de terem satisfeito
A sua ânsia, mais ou menos atrevida.»

Mas a minha amiga notou
- No que eu concordei,
Pois em discordância raramente sou -
Que estamos de tal modo habituados
A meter água,
Por mal dos nossos pecados,
Que jamais rebentaríamos
Ainda que tivéssemos
Que nos esforçar
Por conquistar
Os cabedais especiais
Das nossas lides tradicionais.
As normais.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Partilhar

Nas escolas hoje em dia
Os mestres ensinam os meninos
A partilhar com alegria
Com os amigos.
E quanto mais os meninos
Sabem da cartilha
Quanto mais falam
Em partilha
Mais parece que recrudesce
A falta de solidariedade
Na nossa sociedade,
Com a ausência real de bondade,
A incompreensão
O egoísmo
A desatenção
Embora se diga que não,
Que há mais altruísmo
No socialismo.
Mas tudo isso é fictício.
É hipocrisia,
É falsa humanidade,
De uma caridade
Como puro artifício,
Perfeita indignidade.
De facto, se há bancos da fome
Há também quem a espalhe,
Essa fome,
Num comportamento pouco decente,
Esquecida a partilha
Na cartilha.
Porque os amigos da infância cresceram
E não há partilha que valha.

Mas Esopo já tratava, com muita garra,
O tema da partilha, na sua fábula

«Os viajantes e o machado»

«Dois viajantes viajavam lado a lado,
Amigavelmente,
Quando um deles achou um machado
E dele se apoderou
Sofregamente.
“Nós achámos um machado!”
O outro exclamou, alegremente.
- «Não, não digas “nós achámos”,
Mas “tu achaste”,» - corrigiu asperamente,
E de má catadura,
O seu companheiro de aventura.
Alguns instantes depois,
Os que tinham perdido o machado
Lançaram-se sobre os dois.
O que tinha encontrado o machado,
Fugindo, esbaforido, lamentou:
“Estamos perdidos!”
O outro retorquiu:
- «Não, não digas: “estamos perdidos”
Diz antes: “estou perdido”.
Quando o machado achaste,
Comigo o não partilhaste,
Só para ti o quiseste.
Pois agora, que te preste,
Que eu por aqui me vou.»
E abalou.
A fábula mostra sabiamente
Que quem com os amigos não partilhar,
Na felicidade,
Com eles não deve contar
Na adversidade.”

E a fábula tem, de facto, actualidade.
Mas o que se passa na nossa sociedade
É que nós com o governo partilhamos,
Partilhamos,
E nunca mais paramos
De partilhar
Na felicidade,
Na adversidade,
Habituados que estamos,
De longa data,
A descontar
Para partilhar.
E não propriamente um machado
De adversidade,
Mas o ordenado
Do nosso suor
Para tentar evitar
O pesadelo do descalabro final,
Total,
Da pobre fragata
Em que navegamos,
Há séculos, há anos,
Sempre na dúvida,
Sempre na dívida,
Sempre à bolina,
Sempre à deriva.
Com terror também
Do que aí vem.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

A terra do João

A história do meu e do teu
Também La Fontaine a tratou
Exemplarmente,
E ainda actualmente
Tem seguidor competente:
O povo da morena vila bem gostaria
De ao “meu” aceder
Mas quem melhor nele embarcou
Foi, naturalmente,
O urbano senhor
Que se prepara
Para dar o fora
Se não tiver que responder
Ao juiz de fora
Porque o de dentro, coitado,
Está muito acanhado.
Ou acabado,
Segundo algum impertinente
Menos paciente.
Leiamos devagarinho
«O Gato, a Doninha e o Coelhinho»
“Do pátrio ninho de um Coelhinho
Dama Doninha se apoderou
Numa bela manhã: eis uma grácil
Esperteza.
Com o dono ausente, tornou-se coisa fácil.
Com ligeireza,
Levou para casa dele os seus penates,
Num dia em que, à Aurora, ele fora
Fazer a corte,
Entre o tomilho e o orvalho.
Depois que roeu, trotou, correu
Joãozinho Coelho voltou
Todo pimpão,
À subterrânea mansão.
Dama Doninha tinha postado, à janela,
O seu nariz,
Tal como o faria mais tarde, ao que se diz,
A Carochinha
Do João Ratão,
O que morreu na panela
Do feijão.
“Ó Deuses hospitaleiros! quem vejo eu
Aqui aparecer?” – disse o animal
Expulso da residência pessoal.
“Olá! Senhora Doninha,
Vamos a sair, sem mais demora!
Ou irei avisar todos os Ratos cá da terra.”
Mas a dama de nariz pontudo
Replicou que a casa pertencia
Ao primeiro que a ocupasse.
“Era um belo assunto de guerra,
Uma casa, onde ele próprio só entrava a rastejar…”
“E mesmo que um reino fosse,
Gostaria de saber
– Disse ela, com ironia -
Qual foi a lei que para sempre o outorgou
A João, filho ou sobrinho
De Pedro ou de Guilherme, ou mesmo de Maria,
Em vez de o fazer a Paulo
Ou sequer a mim que o poderia
Merecer
Tanto como outro qualquer.”
João Coelho alegou
O uso e o costume habituais:
“São, disse ele, as suas leis
Que desta habitação me tornaram
Dono e senhor
E que de pai para filho a transmitiram
De Pedro a Simão,
E mais tarde a mim, João.
“O primeiro ocupante é uma lei mais justa?”
- Disse ele, com irritação.
- Ora bem, sem mais gritar,
Vamos Raminagrobis consultar.”
Era um Gato vivo, como um devoto ermitão
Um Gato a quem
A hipocrisia quadrava bem,
Um santo homem de Gato,
De peles bem forrado,
Gordo, anafado, de bom trato,
Árbitro perito em qualquer questão.
João Coelho contrata-o para juiz,
Ei-los a ambos chegados
Com humildade
Diante de sua Majestade,
Que, de sobrepeliz, lhes diz:
- “Aproximai-vos, filhos meus,
Aproximai-vos, que surdo sou,
Por desejo de Deus, que não me poupou
A velhice em que estou.”
Ambos junto dele foram,
Como patinhos que eram,
Sem medo se aproximaram.
Assim que ao seu alcance chegaram,
O bom apóstolo Gatarrão
Lançando simultaneamente
As garras sobre os dois contestantes
Pô-los de acordo, finalmente
Papando-os devotamente.

Isto se assemelha aos debates
Que por vezes os reis insignificantes
Têm diante
Dos reis maiores
A quem pedem favores.”

Pois é, exactamente, essa a questão
Da crise que atravessamos,
De Coelhos e Doninhas espojados
Nos pedaços dos espaços
- Que eles acham seus
Mas que poderiam também ser meus -
Comendo sem contenção,
Todos apostados
Em defender o que lhes pertenceu
Não por uma lei de raiz,
Afinal também injusta,
Segundo a Doninha diz,
Mas por uma lei pessoal
Igualmente impertinente,
De injustiça colossal
No atabalhoamento
Sem quartel
De uma sociedade
Quase se diria irreal
De tão pouco importante
E brutal.
Mas o Gato lá estará
A repor a lei por cá.
Será que o conseguirá?
Em minha opinião
Os Coelhos e as Doninhas
De cá
Continuarão
A comer os de cá e os de lá
Até à sua extinção,
Que não tarda aí, dirão,
Pois o espaço europeu
É um Gatarrão
De mérito reconhecido,
Nestas coisas de invasão.
Temos que prestar contas
Ao Gatarrão
Mas as contas são cada vez mais tantas,
Que o Gatarrão é capaz
De nos deixar em paz.
É assim que se faz
Quando não há salvação,
Segundo um bom cristão.
Mas o certo é que o mal está em todos nós
Que não temos correcção
Na esperteza saloia
Da nossa humilde condição,
Coelhos ou Doninhas defendendo
O seu meu, julgando
Que o Gatarrão vai ser brando.
Ou nem sequer nos importando,
Sempre mentindo e prometendo
Que vamos conseguir, sem o Gatarrão cá vir,
O que não é para crer
Segundo o meu parecer.
Não, não é para crer.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Só mesmo a China

A minha amiga estava ontem muito chocada, muito triste, até mesmo agoniada:
- O país é um doente em estado terminal.
Acho que ouviu esta a Manuela Ferreira Leite, e continuou:
-Agora aparecem meia dúzia de políticos a dizer o que se fez mal e como se deveria ter feito. Os paraísos fiscais, um país deste tamanho? O Cavaco não quer que o interroguem, fica muito ofendido e muito sério. Está bem, mas devia esclarecer o país sobre a sua participação no BPN.
Cá por mim, que detesto peixeirada, entendo que, se ele teve oportunidade de aumentar as suas poupanças, fez o que talvez todos nós fizéssemos, se avisados por um amigalhaço, comprar por X e vender por Y, e que os jornais não fazem mais do que pretender enodoar-lhe a imagem, orquestrados por uma esquerda barulhenta, que se apresenta como defensora dos bons princípios só porque não governa. Estivesse ela no poleiro e veríamos se os princípios não teriam fim imediato.
Mas a minha amiga não estava pelos ajustes:
- O palerma do nosso Presidente! Uma ambição. Quer mais quatro anos daquilo e vai lá ficar. Não há outro! Obrigada!
Mas a minha amiga também estava agoniada pelo caso Carlos Castro, numas considerações a que se aliou uma amiga nossa, que interrompeu momentaneamente o seu café com outras amigas e nos veio dar o beijo da amizade, e as três lamentámos o pobre moço de vida desfeita, provavelmente, e a família que o ama…
Depois de a nossa amiga se retirar para junto das suas companheiras momentâneas diárias, falámos em deboche. Contou o caso da partenaire do Goucha, Cristina, creio que do programa da manhã:
- Ela que é uma mulher giríssima está a descambar desta maneira. Tudo descambado até à quinta casinha. Não haja dúvida que está. E o Goucha tem uma mãe que o censura. A Júlia Pinheiro é brincalhona mas sabe comportar-se. Só se agora na Sic começar a descambar também.
- Como o Herman…
- Mas esta Cristina tinha uma classe! … É das mulheres mais giras da televisão, quando faz um papel sério. Pois há dias, o diálogo entre ela e o Goucha, lá no programa foi deste calibre: “ - Demoraste! - Fui fazer chichi. - Fizeste sentado ou em pé? - Por acaso fiz em pé! Mas faço muita vez sentado…” E eu em vez de não ligar ainda me irrito.
- É! Já vale tudo no país. Só mesmo uma China para mudar o mundo.


terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Com petróleo é outra coisa

Foi no domingo passado que passámos à pátria onde um primeiro Pedro nosso - Cabral de apelido - aportou, corajosamente. Pátria donde extraímos riquezas a seu tempo, que um outro Pedro – o IV da nossa História houve por bem libertar, já então imbuído de doutrinação libertária, granjeadora - um século e meio depois - de bons acólitos doutrinários, de uma doutrinação relativamente parecida, e que se pode resumir em duas penadas: “Afastai de mim os governantes anteriores, que agora vou eu governar em proveito próprio, deixando em cada terreno por mim desprezado, outros governantes do próprio proveito. Amen.”
Mas isto é apenas uma introdução, de nunca esquecidas mágoas, ao discurso que a minha amiga iniciou nesse domingo passado, dia 2 de Janeiro deste ano da graça, que a maioria no nosso terreno actual agoira desgraçada, sobre a nova presidente do Brasil, Dilma Rousseff, depois de lhe escutar o discurso de posse:
- Não ouviu?
- Ah! Sim!
– apressei-me a anuir, sem muita convicção, todavia, mas para preservar o meu brio, que ela tem a mania de que só ela é que ouve, só porque eu já lhe disse que me dá engulhos ouvir seja o que for, presentemente, e que por isso me refugio nas histórias fantasiosas, ou nas explicações do Dr. José Hermano Saraiva, mesmo sobre o Natal, o que não quer dizer que não faça excepções a essa regra, desde que não adormeça pelo meio. A minha amiga continuou com donaire:
- Saiu-lhes o euromilhões. Têm uma mulher a tomar conta. Estou convencida de que vai fazer obra. Justiça seja feita ao Lula da Silva, que fez um bom trabalho antes. Também tem uma coisa a favor dela: tem petróleo. Com petróleo é outra coisa. Mas era preciso que acabasse com aquela pobreza. Não mete raiva um país rico ter pobres? Mas aquele Brasil foi muito roubado. Estes é que estão a fazer tudo para serem sérios. E as mulheres é que deviam governar. Com petróleo é outra coisa.
Estabeleci paralelos. Podemos não ter petróleo, como eles, mas temos o Cavaco. Temos força nas palavras, temos promessas de hombridade, temos uma governação que promete outros combates, outros alicerces.
Nada fez, concordámos, no primeiro mandato, contra as nossas misérias sociais e administrativas, mas promete que vai interferir no segundo.
Quanto a alicerces - os dele, pelo menos - estão bem fundos. E muitos mais fundos bem fundos cá há, que tivemos a revolução do proveito próprio.
Vou votar em branco, pela primeira vez. Com desgosto.
Votaria numa mulher. Mas foi rejeitada. Fica-nos a matar, a palhaçada.