terça-feira, 31 de maio de 2011

O que vale é que a gente não exporta

Desta vez fui eu que estranhei que a minha amiga, que tudo mostra saber de notícias e de escândalos – termos que neste momento passaram a ser sinónimos - não tivesse ouvido a trágica notícia da morte de catorze alemães causada pela ingestão de pepinos espanhóis.
Eu vira as imagens e notara que os pepinos eram muito compridos e estreitos, pendurados nos pepineiros espanhóis. Comentei que achava os nossos pepinos mais normais, pequenos, à medida das nossas posses, e a minha amiga, impressionada com as mortes germânicas, acrescentou:
- Olha, o que vale é que a gente não exporta!
Eu defendi patrioticamente os nossos pepinos, como produto sem bactérias venenosas, tratadas no rico sol nacional, que, mesmo que os exportássemos, eu tinha a certeza de que não causariam mossa na saúde de nenhum alemão. E fora, provavelmente, porque a U. E. nos impedira de os exportarmos por falta de tamanho e trato adequados, por meio de pesticidas, de preço incomportável nas nossas pepineiras, que usamos os nossos pepinos só para consumo nacional, e sem percalços para a nossa saúde, apesar das ditas pepineiras, que até temos em excesso, dentre as diversas coisas em excesso que produzimos, no nosso fértil solo nacional, banhado de luz e cor.
Mas a minha amiga observou amedrontada:
- Olha, está uma pessoa muito bem a conversar, e daqui a pouco está morta, porque comeu pepinos espanhóis!
E prosseguiu muito derrotista:
- Eu estou convencida é que a gente não come nada que nos faça bem!
Eu vi naquilo a mania dela das elegâncias e censurei-a com preceito, não direi que sem algum despeito, por não lhe chegar aos calcanhares na silhueta, mas ela concluiu melancólica:
- Eu tenho um medo da salada! É tudo perigoso.
Não percebi bem a que salada se referia. Que a minha amiga às vezes baralha.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Um exemplo turco

Creio que a primeira vez que ouvi falar dos Turcos, foi por alturas do estudo da Idade Média na História Universal, lá pelo meu 4º ano do Liceu, já que no 3º nos debruçáramos sobre as Antiguidades Oriental e Clássica, antecedidas da Pré-História, que nos punha a decorar antas, cacos, machados de pedra e outros artefactos museológicos para reverenciarmos.
Foi a respeito das cruzadas que, suponho, se falou em turcos seljúcidas, nome arrevesado que guardei na memória religiosamente. Parece que os turcos eram façanhudos e um dia mesmo, tomaram Constantinopla, cidade fundada por Constantino, o liberalizador do cristianismo no Império Romano, transformando-a em Istambul, ela que já fora também Bizâncio, à mercê dos conquistadores, muitos séculos antes de Cristo. Aprendi que, com a tomada de Constantinopla, em 1453, se punha fim, não só à Média Idade, iniciando-se a Idade Moderna, como também ao Império Romano do Oriente, o que aceitei desportivamente, como dado adquirido, conquanto vexatório para a nobre casta romana, na altura já muito baralhada por conta das hordas invasoras miscigenatórias, marco diferenciador todavia, mais tarde contestado com o feito de Colombo a marcar o começo da nova Idade, por alturas de 1492, feito mais considerável do que o dos turcos, tanto mais que viria a render bons lucros ao nosso ficcionista do suspense, José Rodrigues dos Santos com o seu "Codex 632”. Pelo menos a piscadela de olho com que termina o relato televisivo das notícias diárias prova que é um homem das Américas e do suspense.
Mas a força turca só em Eça a topei verdadeiramente, na discussão no jantar no Hotel Central (Cap. VI d’"Os Maias”), a propósito duma tirada de Ega sobre a cobardia portuguesa, que Dâmaso acabara de demonstrar ao afirmar que, se as coisas se pusessem feias em Portugal, em caso de invasão espanhola, ele pirava-se para Paris criteriosamente:
Ega triunfou, pulou de gosto na cadeira. Eis ali, no lábio sintético de Dâmaso, o grito espontâneo e genuíno do brio português! Raspar-se, pirar-se!...(…)
“- Meninos, ao primeiro soldado espanhol que apareça à fronteira, o país em massa foge como uma lebre! Vai ser uma debandada única na história!
Houve uma indignação, Alencar gritou:
- Abaixo o traidor!
Cohen interveio, declarou que o soldado português era valente, à maneira dos Turcos – sem disciplina mas teso. O próprio Carlos disse, muito sério:
- Não senhor… Ninguém há-de fugir, e há-de se morrer bem.”

Eça, como fora à inauguração do canal do Suez, provavelmente passeara-se por locais da Turquia e passara mesmo pela Anatólia donde terá descido ao Egipto, daí a referência do Cohen provinda da experiência queirosiana a respeito da valentia turca, para paralelo nacionalista desvanecedor, mau grado a carismática falta de disciplina que mantemos briosamente.
Os meus conhecimentos mais recentes reportam-se a uma empregada que tive, Valentina de registo, moldava de nacionalidade, que muito sofreu porque uma das filhas se enamorou de um turco por cá, o que veio enriquecer a minha cultura sobre a idiossincrasia dos Otomanos, que a Valentina muito detestava, talvez por diferença de religião, ou de estruturação económica inferiorizante do seu país, o que até a levou a procurar o nosso, na altura ainda com posses para o domínio das generosidades e o preenchimento das vagas do desleixo nacional.
Mas uma colega, viajante estival, trouxe-me em tempos um livro de história e arte – Turquie - berceau de la civilisation – que, com as belas imagens e os textos, deu para acompanhar melhor os passeios do Dr. Salles da Fonseca, que nos vai enriquecendo com os descritivos das suas viagens pela Anatólia, com as observações de confronto nacional.
E não resisto a transcrever alguns passos do seu terceiro texto – “Anatólia 3” – que bem descreve um povo trabalhador e organizado, que tanto aposta na cultura agrária como na cultura intelectual, preservando os monumentos do seu passado, no respeito pela sua história, como pelo seu povo em cuja cultura investe, de forma bem mais eficiente do que é a nossa:


“Cidadão de país com um modelo de desenvolvimento comprovadamente caduco, a minha admiração foi total com o que vi ao longo dos cerca de mil quilómetros que percorremos entre Antália – capital da «Riviera» turca – e lonjuras tais como Kusadasi e Izmir, ribeirinhas do Egeu. E como andámos para lá e para cá à procura de teatros e mais teatros tanto gregos como romanos percorrendo auto-estradas e outros caminhos mais próprios de funâmbulos, tenho a certeza de que vi de tudo e não apenas o que a propaganda nos quereria mostrar.
Mas também sei o que não vi: miséria, bairros de lata, pedintes, gandulos, florestas ardidas, campos abandonados ou graffitis. Nada disso vi e se o não vi pelos sítios que cruzei, é porque não há disso na Turquia.
O que mais me espantou foi a pujança da economia agrícola com os terrenos aproveitados até aos limites do razoável. Se ao longo de vales férteis, de aluvião, a estrada se desviava ligeiramente do sopé das montanhas periféricas, o terreno entre a estrada e as primeiras pedras da encosta estava sempre agricultado. Sem exagero, posso dizer que não vi um metro quadrado de terreno agrícola por cultivar.
Para um português atento a esse tipo de situações no seu próprio país, dá que pensar. E é claro como a água limpa que quando entramos numa cidade ao longo dessas estradas, pululam as empresas industriais e comerciais de apoio à actividade agrícola. Para quem não acredita no velho princípio de que a agricultura é a mãe dos outros Sectores económicos (indústria e serviços), vá de passeio à Anatólia e deixe-se de outras ideias, as peregrinas que nos atiraram para o actual buraco.
O resultado não espanta: a Turquia tem uma Balança Alimentar largamente superavitária, uma Balança Comercial positiva (tem que importar petróleo) e uma Balança de Transacções Correntes igualmente positiva pois, lembremo-nos, ainda há muitos turcos emigrados cujas remessas assumem uma grande importância. Tomando em conta uma política monetária algo contida, duas Liras Turcas valem um Euro. Ou seja, a Turquia é um país de moeda relativamente séria.
Outra coisa que me espantou: a raridade de lenços nas cabeças femininas.
Das estatísticas oficiais extraiu o nosso guia, o Senhor Ata, que a população turca ronda actualmente os 75 milhões de pessoas, das quais cerca de 25 milhões são da etnia curda. Cerca de 6,5 milhões (8,7% da população total) vão semanalmente à mesquita e 2,5 milhões (3,3%) fazem-no diariamente. O Ramadão é, contudo, seguido pela generalidade da população que não come nem bebe enquanto o Sol se encontra acima do horizonte. Fora disso, bebem álcool como qualquer europeu e o vinho tinto tem mesmo uma qualidade aceitável.
Quando estávamos à espera que o fim-de-semana turco fosse à 6ª feira como nos outros países maioritariamente muçulmanos, ficámos a saber que desde a implantação da República em 1923, os turcos descansam ao Sábado e ao Domingo.
Apesar da relativamente fraca influência da religião muçulmana na população, a paisagem exibe a presença de mesquitas em todas as aldeias, vilas e cidades. Curiosidade: os minaretes são todos iguais (apenas varia a decoração exterior) pelo que admito serem produzidos em série. Perguntei – mas não obtive resposta – se não seria pela justaposição de grandes manilhas em cimento. O remate superior, em bico, é também modelo único.
Mas a cena política turca está especialmente activa com o Partido no Governo a promover a islamização e com o Partido herdeiro de Atatürk (laicizante) na oposição. Os ocidentalizados (muçulmanos, de outras confissões ou agnósticos) estão nervosos com aquilo que consideram a demagogia do actual primeiro-ministro e depositam uma confiança final no Exército. Reconheçamos que na perspectiva democrática, há outros horizontes mais límpidos...”

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Fossa

A fábula de Esopo “A Gaivota e o Milhafre”
Não tem qualquer parecença
Com a canção da Ermelinda
De apelido Duarte
Que foi quase uma doença
Em tempos cá instalada
Na terra que começou
A ser paulatinamente
Despojada,
Por via do que cantou
A Duarte,
Da gaivota que voava
Em liberdade.
Com ela nos comparámos,
Na canção,
Gaivota de novidade,
De ambição,
De ingratidão,
De negação
Do antigamente,
Para a corrupção
Presente
Continuamente.
Voadores,
Mas para o fundo do poço,
Precursores
Dos tempos em que estamos -
- No fosso.
Diz o seguinte
A fábula de Esopo:

Uma Gaivota um peixe comera.
Rasgada a goela, a Gaivota morrera.
Na praia estendida,
Um milhafre a avistara
Que logo exclamou:
Mereceste o que te aconteceu,
Pois nascida pássaro,
No mar a vida passavas,
E não cuidavas
No que te sucederia
E sucedeu.
Também aqueles que as suas próprias ocupações
Decidem abandonar
Para das que não lhes competem
Irem tratar
Muito justamente vão cair
Numa desgraça qualquer
De dimensão maior.”

Um pavor!
É o que nos vai suceder
Por andarmos a mergulhar,
Gaivotas esfomeadas,
Num mar de discórdia
E de mixórdia
Sem misericórdia
E a engolir
Peixes que nos vão rasgar
As goelas
Por serem maiores do que elas.
Que nas nossas estreitas goelas
Não cabem tantas balelas
Dos moralistas milhafres,
Mas vamos assim secando
Esvaindo-nos, morrendo,
Porque os milhafres são muitos,
Rondando, torneando, volteando
Aconselhando
Enquanto vão mastigando,
Nada deixando
A não ser promessas, frases
De carroça,
Para o fosso.
Nossa!

Tomatina

- Perde-se tanto tempo a discutir a economia! Agora estão mais ou menos quase todos de acordo para os defeitos da economia feita. Tudo desanca no Governo. Então podiam-se juntar e fazer uma salvação.
A minha amiga é especialista na arte da descodificação das expressões, daí que a tal Junta de Salvação tenha aparecido desfigurada pelo grotesco da sua perífrase. Mas continuou impávida:
- Mas não vejo. A única coisa que eles podem travar é o TGV.
Eu lembrei-lhe o Professor José Hermano Saraiva como um apaixonado pelo nosso país, patriota não dos quatro costados, de exaltação chauvinista, tendenciosa, bairrista e popularucha, mas de um patriotismo são, reflectido, que tanto revela os aspectos nacionais merecedores de elogio pela organização, trabalho ou competência por alguns demonstrados, como condena o desleixo, o abandono a que é votado tanto do que nos definiu e poderia definir ainda como pátria verdadeiramente com P maiúsculo. Vi-o num dos programas que o canal “Memória” tem exibido, numa objurgatória contra os que vão passar férias nas praias de sonho estrangeiras e deixam ao abandono sítios esplêndidos do nosso turismo actual, das casas recuperadas, com piscina, cadeiras e o sol, que, segundo a minha amiga, se devia vender ao grama, no nosso país.
Vários são os programas do professor, que mostram as iniciativas de tantos empresários, de recuperação desses espaços do Portugal velho, transformados em sítios esplêndidos para turismo. E entre esses, apresentou um quadro desolador pelo vazio, de um belo espaço desse turismo rural recuperado, com piscina contígua à casa, rodeada de cadeiras e mesas, um sol bendito, uma casa reconfortante, sem viv’alma a preenchê-lo.
- Podíamos, de facto, vender o sol ao grama, mas nós nem em turismo somos bons. Em 1990 estive numa terra de Las Palmas. Terra pequena, cheia de turistas, mas com uma praia com casino, restaurantes, hotéis de cinco estrelas. Como não tinham água, fizeram o transporte de água para aquele sítio. Nós nem turismo sabemos fazer. Hotéis, só no verão. Vila Moura, por exemplo, no inverno, é a maior pasmaceira.
Contrapus que não bastam o sol nem a areia para se fazer turismo. Por isso Londres, Paris, as grandes cidades da cultura, da arte, das livrarias, dos espaços da história, têm turistas aos milhões, com os seus atractivos enriquecedores do espírito. Não basta o sol. E as boas comidas que os nossos programas alardeiam, como as grandes formas da nossa cultura. E o folclore, os santos populares… quanta pasmaceira em tudo isso, e um povo que os jornalistas entrevistam para darem opiniões sobre os chefes dos partidos, ou sobre os enamoramentos dos casais dos velhos, sobre os casos da vida… como poderemos competir com povos intelectualmente mais desenvoltos, se não temos para lhes dar senão o tal sol e a boa sardinha algarvia? Porque tendo as paisagens tão belas como as mostram o professor Hermano Saraiva e a televisão que o acompanha, a nossa movimentação nos espaços da nossa terra é, geralmente, sem horizontes espirituais que não sejam os da religiosidade ou do fandango.
E a minha amiga insistiu:
- A Espanha faz turismo de Verão e de Inverno. Mas sabem fazer. Olha o Algarve! Sendo a zona com mais possibilidades turísticas, a auto-estrada para lá foi a última a fazer-se. Que raio de visão! E o Algarve, que é a terra do Cavaco, e não quis saber!
- Foi por modéstia, veio-lhe do Salazar, que muito poupou para juntar para o futuro, amachucando o presente na mediania em que nos educou, avesso a modernices, sobretudo do pensamento. Mas é porque era inteligente, sabia que o colapso viria com a liberdade, habituados que estávamos à sujeição.
- Mas o Cavaco fez muitas auto-estradas, ora essa! Não havia razão para deixar a do Algarve para o fim, como estrutura rentável imprescindível, com o sol e as praias fabulosas que o Algarve tem!
- Mas talvez o Algarve também falhe porque os empresários, querendo enriquecer depressa, exploram e abotoam-se com as massas ganhas na safra. Não há turismo – nem país, de resto, que resista a tanta desordem.
- Não, não somos povo para progredir em nada. Então não é que no sábado, em Braga, se destruíram toneladas de tomates? Então vai-se copiar isto dos espanhóis? Há 45 anos faz-se tomatina em Espanha. Este ano fez-se em Braga, ouvi a notícia. Estamos sem cheta e jogamos ao tomate.
- Mas nunca a crise limitou a diversão, vá lá vai! Até dá para se mostrar aos outros que não temos falta dessa fruta! São hábitos que nos vêm de Aljubarrota. Da padeira.

terça-feira, 24 de maio de 2011

Memórias antigas de Novas Oportunidades

Hoje falou-se nas Novas Oportunidades e a minha amiga deu mostras do seu saber:
- As pessoas quando vão responder aos anúncios, com o diploma na mão, não podem dizer as habilitações.
Outras pessoas estavam presentes no café, contaram casos, o da senhora que trabalhara mais de trinta anos, ajudara a formar outros, e depois fora mandada embora, a pretexto de falência da firma - que fora abrir noutro lugar. Apresentara as suas habilitações na instituição encarregada de distribuir trabalho, porque precisava de trabalhar, mas fora recusada a sua admissão, a pretexto de que tinha habilitações excessivas, que não condiziam com a parca dimensão das competências para trabalhos de pouca exigência intelectual que eram os disponíveis na tal instituição.
Falou-se da acusação feita por Passos Coelho a Sócrates sobre a fraudulência dos tais cursos das Novas Oportunidades, e eu comprovei, com conhecimento de causa, como eram mínimas as suas exigências, pelo menos ao nível do nono ano de escolaridade, constando, em língua portuguesa, de um relatório mais ou menos autobiográfico, além do tempo mínimo de aprendizagem exigido.
Mas comentei que o processo não era despiciendo para facilitar a obtenção de cursos a quem não os pudera obter antes, desde que os critérios usados fossem de seriedade. Lembrei a minha experiência no campo de formação em um ano, em 1975, no liceu de S. João do Estoril – creio que nessa altura ainda conservava a designação de liceu.
Eu chegara de África, com família extensa, a ganhar ainda por inteiro o vencimento que duraria uns meses, pois em breve seria reduzido a metade, no quadro dos adidos. Concorri – era no início de 75 - para a docência de um curso nocturno de ensino de adultos, pago pelos próprios alunos, com cedência estatal do espaço escolar desse liceu, próximo do meu espaço habitacional.
Tratava-se de obter em um ano o resultado de três, para o 2º ciclo liceal – 3º, 4º, 5º, pela antiga nomenclatura, 1º, 2º, 3º, segundo a nomenclatura de então, 7º 8º e 9º no actual ensino unificado; ou o resultado de dois anos para o 6º e 7º do Ensino Secundário, 1º e 2º complementares, actuais 10º e 11º. Nas disciplinas de Português e de Francês.
Eram pessoas que trabalhavam e que precisavam dos diplomas de finais de ciclo para efeitos de ascensão nos seus empregos. Assim, três anos foram dados em um só – aliás, em seis ou sete meses - aos alunos do 5º ano, dois anos foram igualmente dados num só, aos alunos do Secundário, em Português e Francês. E os exames finais foram um êxito quase absoluto. Só uma aluna do 2º Complementar falhou no exame de francês da 1ª época, tendo obtido 14 na época de Setembro.
Ditoso tempo esse que não voltou a repetir-se, de alunos cordatos e atentos, desejosos de colher, participando, com os seus objectivos bem definidos, bem diferentes daquilo em que se tornaria um ensino de abuso e indisciplina, de crianças a quem foi proporcionado desrespeitar, enjoar, desprezar, abominar aquilo que os poderia valorizar.
Alguns desses alunos seguiram cursos superiores, pessoas conscientes de um mundo em transformação, e recordo esse ano em que, em Coimbra, às quartas feiras, segui simultaneamente um Seminário de Literatura Portuguesa, que igualmente me enriqueceria.
Os alunos pagaram o seu curso secundário, trabalharam para o obter, nada de semelhante aos cursos apelidados de Unidades Capitalizáveis, leccionados à noite, anos depois, em turmas que se iniciavam com largas dezenas de alunos, as mais das vezes insubordinados, muitos deles adultos, e terminavam com meia dezena, quando não com um ou dois apenas, de resistentes, um pouco mais sérios nos seus intuitos formativos, pois que, segundo se dizia, os alunos nocturnos inscreviam-se apenas para obterem redução nos passes de comboio. Alcançado o objectivo do passe, iam falhando gradativamente a frequência de aulas que não consideravam necessárias, pertencentes que eram a um povo de expedientes, mais do que de rigor e seriedade, que nada lhes diziam. Entretanto, inúmeros horários eram distribuídos pelos professores encarregados de os leccionar, os quais, logo após o início das aulas, de turmas cheias e alunos em pé, as tinham repentinamente às moscas. Largos anos o Estado despejou dinheiros para professores nocturnos de Unidades Capitalizáveis, que a meio do ano não davam para formar uma turma. Eu própria tive essa experiência durante um ano, com uma turma que se iniciou com uns quarenta e seis alunos e terminou com três ou quatro. Seríamos uns oito ou nove professores pagos para leccionar nessa turma, pagos, afinal, para o vazio de um ensino de fraude, que largos anos foi mantido pelas políticas educativas dos nossos Governos, que nada faziam para desfazer tal abominação.
O actual Primeiro Ministro quis favorecer a chamada irrisoriamente auto-estima do seu povo dando-lhe cursos aparentemente valorizadores, para apresentar números menos humilhantes de confronto com outros povos.
Mas o nosso povo teve sempre maus inícios escolares, não foi habituado ao trabalho mental que observamos lá fora, jamais aqui se investiu numa educação séria que contemplasse o total da população.
Por isso esses cursos feitos à pressa para angariar falsos diplomas de falsas competências não só são desonestos, como injustos relativamente aos que os fizeram dentro das normas.
Contou a minha amiga, contudo, que os tais diplomas falsos são preteridos a favor dos verdadeiros, ela conhece casos.
Eu contrapus – e nisso concordou - que verdadeiros ou falsos, neste momento todos são preteridos e irão sê-lo mais, por imposições da Tróika.
Convém mesmo não levar diploma nem currículo, quando se vai pedir emprego, para se merecer a esmola de um empregozito que permita ir sobrevivendo, o povo da caridadezinha. E do esbulho.

domingo, 22 de maio de 2011

Poder é poder

Poder é poder
Falámos em Strauss-kahn, encerrado na mesma prisão em que se encontra o português Renato Seabra, que em má hora se deixou envolver na rede perversa de um outro português, cronista da moda e da virtude no seu país, no seu convicto e profuso ataque às deficiências sociais, e que seria reconhecido – e o seu assassino assim o reconheceu e por isso o assassinou – como o mais depravado de todos os seres humanos, tartufo miserável que só uma sociedade podre aceitaria abrigar. E, sobretudo, acarinhar.
Lamentámos, uma vez mais, o pobre rapaz português de carreira e vida destruídas, que a ambição terá manipulado para, afinal, o desgraçar.
E achámos chocante a forma como igualmente foi tratado o Presidente do FMI, embora o poder monetário deste consiga imprimir uma reviravolta menos dolorosa, embora grotesca, na sua vida, do que a ausência desse poder imprimirá na vida de uma imoralidade sem sentido em que se transformará a de Renato Seabra. Por força do poder de quem pode saltar por sobre todos os obstáculos, físicos e sobretudo morais.
A minha irmã, que já esteve nos Estados Unidos, tem dos Americanos uma opinião muito severa, considerando-os brutos e ignorantes, impondo normas de grande rigor, falsamente puritanos, porque poderosos, no seu estatuto de donos do mundo. Veio à baila também o pobre do Clinton confessando em tempos, humildemente, o seu erro de adultério, talvez para continuar no poder da sua nação poderosa, perdoado pela esposa e pela sociedade, que se lembraram a tempo da parábola das pedras bíblicas para o indultarem.
Exemplificámos ainda com a Guerra do Golfo e a morte horrorosa de Saddam Hussein, com a perseguição e morte de Bin-Laden, oculto o corpo, ao que se diz, no mar salgado, com os discursos conselheirais de Obama aos ditadores norte-africanos, impondo, ameaçando, matando, conduzindo os destinos do mundo, no dorso levando o carcás bem carregado de crimes – os de Hiroshima e Nagasaqui, por exemplo, de que a retaliação de Bin-Laden nas Torres nova-iorquinas seria amostra reduzida no confronto retaliativo.
Não se pode, é certo, pedir consciência aos povos ricos ou que o julgam ser, por terem o comando do mundo. Como também não se pode pedi-la a qualquer ser que se considere rico e mesmo poderoso sem contar com o reverso. Porque as medalhas têm sempre reverso. Para toda a gente, é certo, mas alguns já estão habituados ao reverso, não estranham tanto.
Russos, Japoneses, Chineses, tudo gente poderosa, que, não contentes com o que têm, se lançaram alguma vez na conquista do que os outros têm. Foi assim desde que o mundo é mundo, e até Alexandre se estendeu por ele, muito antes dos Romanos lhe irem no encalço. E Napoleão. E Hitler. E tudo se acabou, se acabará, porque outros virão que se lhes sobreporão.
Mas voltámos ao Strauss-Khan, e àquele desgraçado rapaz, enfiado em masmorra de facínoras, sem, afinal, ser um deles.
Porque os Americanos não perdoam o erro, e a sociedade, que anda cada vez mais à cata de escândalos, transformou-se em goela putrefacta, vomitando as imundícies dos crimes e dos respectivos castigos vilipendiosos, mais quando são os países poderosos a determinar tais castigos, pese embora o contributo que eles deram a esses crimes, na sua permissividade, na sua literatura, nos seus filmes, na sua Justiça facilitadora, no seu laxismo, de uma liberdade sem regras, na animalidade dos instintos que tudo isso favoreceu. No jogo lucrativo que estabelecem com aqueles povos ou homens que depois condenam.
E veio à baila o tema dos escândalos políticos e sociais veiculados pela literatura, já do século XIX, na pena de dois extraordinários escritores coevos – o irlandês Óscar Wilde, o português Eça de Queirós.
Entre as esfuziantes comédias de Óscar Wilde, de um sabor e graça moldados por um discurso de calembur, de trocadilho, pondo tantas vezes a ridículo a sociedade sofisticada e fútil da época vitoriana, conta-se “Um Marido Ideal”, cujo tema de chantagem e provável destruição política – feita por uma bela aventureira, lady Cheveley - tem perfeita actualidade.
É lord Goring, alter ego de Wilde, como João da Ega o será de Eça, que na sua maneira provocadora, de uma graça irreverente e iconoclasta, como a de João da Ega, resolverá a situação do seu amigo chantageado – lord Robert Chiltern – marido ideal para a esposa – lady Chiltern, de uma dignidade um tanto rígida – tal como Ega será o solucionador impagável, com a chantagem cheia de verve malandra que ele próprio irá exercer sobre os dois fabricantes da destruição social do seu grande amigo Carlos da Maia – Palma Cavalão e Dâmaso Salcede, do romance "Os Maias".
Uma literatura imortal sobrepondo-se à indignidade humana a cada momento dando-se espectáculo. Felizes os que a ela têm acesso, como forma de fugir às convulsões de um mundo cada vez mais desfigurado. Mau grado o progresso. Ou por causa dele.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

De pouco valeria

- Não tem nada para me dizer hoje?
- Deus me livre!
A minha amiga acha que eu deturpo ou descontextualizo muitas vezes o seu pensamento, e foi por isso que se mostrou renitente.

Ou então é porque receia os castigos divinos causados pelas incúrias nacionais no capítulo da rodovia, bastas vezes esventrada, de pedregulho solto. Receia, sobretudo, quedas, até porque tem a mania do tacão alto que lhe protege a elegância natural, ressalvada a indignidade das topadas nas pedras.
Mas não resistiu. Lançou imediatamente a bomba de outro milagre do Papa: A rainha da Inglaterra, pela primeira vez na Irlanda, em visita oficial ao país não só vizinho, mas fazendo parte do dela. Só por milagre isso podia ter acontecido.
Eu considerei que a minha amiga, como achava que o Papa precisava de mais milagres para melhor expressão da sua santidade, tratava de lhe atribuir mais esse do ineditismo da presença da rainha inglesa na Irlanda, para o cômputo, mas eu, que também sou dada a credulidades, achei igualmente coisa de mistério assinalável a coincidência de dois clubes nossos a jogarem na final da Taça UEFA, logo no mesmo sítio da rainha, por muito que a visita desta só prejudicasse o nosso milagre de protagonismo na taça, além da perda de espectadores motivada por ser só um país – ainda para mais na bancarrota – a jogar. Conquanto as entrevistas da Tânia - deslocada à Irlanda para o efeito exaltador da pátria - aos adeptos dos dois clubes, chegados de várias partes do mundo, nos revele que o reconhecimento da nossa presença exaltada se vai sentir lá fora, por muito que tal ruído possa ter um sentido negativo para o orgulho discreto de alguns de nós.
E a conversa desviou-se para a questão da bancarrota. Disse a minha amiga “ipsis verbis”, não desejo mais merecer as suas críticas por qualquer erro meu a respeito do que ela diga:
- E nós cá vamos, cantando e rindo, o PM a dar boas notícias aos portugueses. Ele nem sequer se convence de que não há dinheiro. Para ele, até hoje, ainda não acabou o dinheiro.
Defendi o ponto de vista sobre a capacidade daquele de dinamização do seu eleitorado, pelo truque da difusão da confiança popular na honestidade das suas promessas optimistas, mas a minha amiga não me deixou desenvolver:
- Desde o 25 de Abril, gasta-se dinheiro na promoção deles. É fazer jantares de encontros, e caminhadas, e presentes a aliciar eleitores, e os jovens que também lá vão, há trinta e tal anos que se faz isto. E o país na bancarrota. Parece que é surpresa o termos chegado à bancarrota. Já se ouve dizer: “Tinha que acontecer. Nós não produzimos, só importamos.” Agora é que já sabem tudo. Até que ano vai estar em bancarrota. Cada ano pioramos. E os especialistas sabem. Só se ouvem especialistas que sabem. Mas ninguém advertiu antes. Também de pouco valeria…
E logo a pátria se nos apresentou como cadáver de rês esventrada por abutres ou outros quaisquer animais da selva, esfomeados de roda dele, devorando.


segunda-feira, 16 de maio de 2011

Os Halos

A minha amiga tem umas amigas com quem toma café às vezes, por vezes em reuniões ruidosas, pois são senhoras que gostam de traduzir o que lhes vai na alma, de forma ora jocosa, ora piedosa, são senhoras de autoridade, e dum modo geral disponíveis para ajudar na paróquia, recolhendo e distribuindo donativos para os pobrezinhos, perpetrando a nossa tradição das Misericórdias, que não morrerá jamais. Preferível, de resto - dada a relevância da nossa virtude da generosidade, que ela favorece - a uma regulamentação de direitos sociais, que isso é mais trabalhoso, obscuro e exigente de um respeito humano pouco compatível com o nosso modo de ser de amantes de classes, que nos possibilita a expansão da nossa virtude relevante.

E assim, a minha amiga lançou, sem me ter previamente industriado no calibre extraordinário da sua notícia, que eu desconhecia em absoluto, o que, aliás, só lhe deu regozijo, pois todos nós gostamos de ser pioneiros nas novidades, a própria imprensa se atropela bastante, para o pioneirismo das notícias:
- E as católicas estavam todas a comentar esse milagre: o sol, quando a procissão estava a passar, começou a fazer uma roda…
- Uma roda?!
– pasmei.
- Então não leu? Um halo à volta dele. Aconteceu o mesmo em 1917. Eram sete católicas à roda da mesa a comentar o milagre. Então, mas o que é isto? Taradinho é aos molhos? Mas chegou uma à mesa e disse: “Eh pá! Eu não acredito em nada dessas coisas.” Mas aqui há uma coisa extraordinária: a coincidência de o sol ter tido um halo em 1917 e ter outro em 2011. Há explicação científica para o halo, fenómeno de refracção da luz solar, li eu, mas isso fica no esquecimento, é apenas a explicação dos cientistas. Os milhares de pessoas é que vão dizer: é um milagre de João Paulo II. Já foi assim, um milagre da Senhora de Fátima, e é assim que vai ficar: o milagre do Santo Papa. O Jardim esteve a dizer: “povo analfabeto e muito religioso”. Mas o que é que lhe deram, ao povo?
- Pois! Deram a religião para imporem melhor as regras que vêm na doutrina, com a promessa do prémio ou a ameaça do castigo, e deram a falta de instrução para o povo não pensar tanto nas regras e nos direitos que distinguem o homem de bem.
- A gente esteve a ver e a lista dos milagres do Papa era tão pequenina… Era preciso mais um. Só podia partir de nós, que andamos sempre à cata do milagre.
O que é certo é que a minha amiga estava impressionada com a coincidência dos halos.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Altar do Mundo

- Olha lá, o Santo Padre já tem uma estátua que não é brinquedo. Em Fátima. Já está a tirar protagonismo aos pastorinhos. Vê a quantidade de gente que vai lá!
Não usamos o tuteamento, cerimoniosas que somos no mútuo tratamento, utilizamos a terceira pessoa verbal precedida - ou não – do nome próprio (substituto do você, que não faz parte da nossa gramática – nem a pedante, nem a respeitosa, nem a grosseira), donde depreendi que a minha amiga dirigia o seu bombardeio verbal ao mundo em geral, não a mim especificamente, embora me deslumbrasse também com a constatação da contínua evolução do nosso Altar do Mundo. E continuou, com igual vivacidade:
-Mas nós estamos bem servidos de Santos. Temos a protecção do Altar. O FMI vai saber. Eles, que vão cobrar alto e bom som, o trabalho deles vai ser altamente cobrado…
Aqui, não resisti:
- O trabalho deles ou a nossa falta dele… Podemos chamar-lhe incúria, também. anjice, burrice, ignorância governativa… ou política de fraude, de interesse particular, com muita ambição, muito apoio dos compadres, muita entrega ao esbulho, ao malabarismo enganador, às falsas ilusões de eficiência, à magalhanice de prateleira, porque está destinada à prateleira, tal como o país, no cômputo das nações europeias… Há um sem número de razões. Mas os troikos não devem estar habituados a isso, não deram por elas, ou não quiseram saber. E nós também não queremos saber, rendidos que estamos ao nosso próprio altar: aquele que o PM ergueu para nós, com o seu nariz de mentiroso compulsivo, que diz sim e não simultaneamente, que arruinou as gentes e reduziu o país a esta situação de cauda económica e não só. Mas nós o adoramos, o escutamos, o elegemos, altar do nosso mundo de “enfezadinhos”.
Mas a minha amiga estava na dela, de via-sacra, preferindo manter a ilusão da salvação:
- Ainda por cima este Papa, sendo polaco é quase português. A estátua foi feita por um escultor polaco, não deram a um português. Mas estamos muito bem. A irmã Lúcia também faz parte. Hoje é 13, sexta-feira. Ai hoje vai ser outra de devoção. Mais uns feriaditos vêm aí. O Santo Padre ainda não tem feriado. E vai ter. E a irmã Lúcia provavelmente também.
Apontei as entrevistas aos peregrinos como mais um aspecto negativo da nossa pobre aura, e a minha amiga lembrou-se da Aura Miguel, que foi entrevistada na RTP, e que ela conhecia:
- Estava com uma aura, ela que era uma timidazinha que eu conheci, caladinha, tipo freira… Ontem, quando vejo a Aura, ponho-me a olhar para ela, a contar os ditos do Papa, todos os outros calados, ela com grande aura. O Papa era uma simpatia de rapaz. Ela estava a dizer as frases dele. Ela sabe as frases todas. Não, não digo mais mal da Aura Miguel, porque estamos a 13 e as pedras da rua estão soltas…
A
minha amiga diz que confia e não confia assim tanto, nos Santos… Prova de que, afinal, todos temos alguma coisa do nosso Engenheiro, que também diz e desdiz, com igual facúndia.
Mas é porque andamos aleijadinhos de todo na alma, sem sabermos por que via optar, agora com as notícias da recessão e o PM a continuar a bradar contra todos e em prol dele, connosco a cair na sua goela gigantesca, contrariamente ao que fez a Capuchinho Vermelho que não caiu e fugiu da do Lobo Feroz, assim se safando... Mas também porque houve um caçador que resolveu a questão e nós não temos.
Não, ao contrário do que pensa a minha amiga, julgo que não há S. João Paulo II, mesmo com o apoio de todos os outros santos, que nos safe.

quinta-feira, 12 de maio de 2011

A “Quarta dimensão” no amor

Todos os dias a minha mãe quer saber o dia da semana, o mês, a hora, sempre interessada em participar, não tanto na evolução dos acontecimentos actuais, mas nos acontecimentos temporais do seu passado que as datas do presente lhe recordam. Depressa se esquece do que se lhe disse e por isso repete os comentários que o regresso a esse passado possibilita, numa profusão nossa de espanto, dada a idade centenária. De vez em quando fornece exemplos novos.
Ontem saiu-se com uns versos que exprimem o chamado tempo psicológico, o tempo que, no caso da sentença com que explicitou - rindo - a situação que narrou - uma rapariga da minha infância, não da dela, por isso mais recente, - a Hermê - que costumava passar tempos esquecidos ao pé da fonte, em Pinheiro de Lafões, com o cântaro à cabeça, conversando com o namorado, de arado ao ombro, esquecidos ambos dos pesos, em posição que poderiam tornar mais confortável, pondo os utensílios no chão – é um tempo que se revelava absurdamente ligeiro nos momentos de bem-estar: “Dias de Maio / Dias de amargura / Mal é de manhã / Já é noite escura”, o que não correspondia, de modo algum, ao tempo real, dado que em Maio os dias de sol atingem quase a sua extensão máxima. Mas os namorados assim o não sentiam, felizes do encontro, resguardados, supunham, dos olhares críticos de quem passava, com os protectores instrumentos do seu trabalho a derreá-los, como disfarce, enquanto trocavam doces requebros.
E o singelo ditame que o quadro de amor popular mereceu à minha mãe - “Dias de Maio / Dias de amargura / Mal é de manhã / Já é noite escura” - ao exprimir um tempo psicológico de extensão diferente da do cronológico, fez-me regressar a uma Idade Média onde esse conceito está já contido, por exemplo, na seguinte cantiga de amigo, de Juião Bolseiro, de uma menina que sofre de insónias nas longas noites passadas sem o seu amigo, invectivando um Deus impiedoso, porque o tempo se ia num ápice quando com ele as passara, ao passo que no tempo presente, de solidão e tristeza, se alonga indefinidamente sem ela poder dormir, contrariamente ao estipulado para as noites:
Aquestas noytes tão longas
Que Deus fez em grave dia
Por mi, porque as non dórmio,
E por que as non fazia
No tempo que meu amigo
Soya falar comigo?

Por que as fez Deus tan grandes,
Non poss’eu dormir, coitada!
E de como son sobejas,
Quisera-m’outra vegada (= vez)
No tempo que meu amigo
Soía falar comigo.

Por que as fez Deus tan grandes
Sem mesura e desiguais
E as eu dormir non posso?
Por que as non fez ataes,
No tempo que meu amigo
Soía falar comigo?
Nada, pois, mudou na questão dos sentimentos e dos comportamentos, de então para os meus tempos infantis, pelo menos, embora no caso da Hermê e do seu companheiro, o namoro se processasse às claras, e com sobrecarga de pesos, a servir de capa, e a assinalar incompetência.
Mas outras lembranças me trouxe a evocação da minha mãe: um cantar de amigo designado por “alba”, de origem provençal, em que, aí também por vezes era indicada a brevidade da noite, passada com o namorado, prova de que o que se diz dos costumes libertinos dos namorados de agora e dos da minha infância, tem antecedentes de qualidade, numa Idade Média devota e matriarcal.
E esta ideia da “alba” ou “cantiga do amanhecer”, fez-me debruçar também sobre uma cantiga paralelística, uma alba de expressiva riqueza simbólica e humana, num descritivo quadro humanizado. Pertence ao trovador Nuno Fernandes Torneol, e expõe uma situação em que contrastam o mundo de alegria, das aves humanizadas que cantam o amor, e da menina que quer com elas compartilhar a sua alegria antiga, repetindo-o monocordicamente no refrão, e o seu mundo real de tristeza, pelo abandono do namorado, que fica a dormir, nas frias manhãs solitárias da menina. E a menina apela - trata-se de uma cantiga de amigo, ou seja, de namorada – apela ao namorado para que se levante e venha compartilhar a alegria festiva das aves do mundo inteiro que cantam os amores deles.
A segunda parte deste nada banal poema, revela, simbolicamente, a corrosão do amor masculino, através do quadro de tragédia descrito – o amigo quebrou-lhes os ramos das árvores onde as aves pousavam e cantavam os amores do par, o amigo secou-lhes as fontes em que elas bebiam e se banhavam.

Mas ela quer ainda crer na alegria passada, no seu apelo, na sua repetição: "Levantai-vos amigo", "Alegre ando eu":

Levad’, amigo que dormides as manhanas frias
tôdalas aves do mundo d’amor diziam
lêda m’and’eu!
Levad’, amigo, que dormide’las frias manhanas;
tôdalas aves do mundo d’amor cantavam:
lêda m’and’eu!
Tôdalas aves do mundo d’amor dizian;
do meu amor e do voss’en ment’avian:
lêda m’and’eu!
Tôdalas aves do mundo d’amor cantavam;
do meu amor e dos voss’i enmentavan
lêda m’and’eu!
Do meu amor e do voss’en ment’avian;
vós lhis tolhestes os ramos en que siian:
lêda m’and’eu!
Do meu amor e do voss’i enmentavan;
vós lhis tolhestes os ramos en que pousavam:
lêda m’and’eu!
Vós lhis tolhestes os ramos en que siian
e lhis secastes as fontes en que bevian:
lêda m’and’eu!
Vós lhis tolhestes os ramos en que pousavam
e lhis secastes as fontes u se banhavan:
lêda m’and’eu!
E aqui está como as memórias de uma mãe centenária, me proporcionaram um prazer de revivescência, a respeito de uma dimensão – o tempo - que Einstein acrescentou às três coordenadas que definem a dimensão do espaço – comprimento, largura e altura.
Julgo que Einstein não pensou no tempo psicológico, é certo, o qual tem uma dimensão demasiado atabalhoada, mas que, com a boa vontade da nossa ignorância, talvez possa caber também na sua teoria da relatividade.


terça-feira, 10 de maio de 2011

Garantias

Disse à minha amiga que agora não se via na televisão senão comentadores sobre o estado da nossa economia e sobre a ajuda insuficiente do FMI que, ao que depreendi, não cabia na cova dum dente, tantos eram os buracos orçamentais e vários não apercebidos dos troikas, guardados escrupulosamente na nossa manga, e a minha amiga respondeu que se ia desligar, não lhe interessava o que eles diziam, eram muitos os comentadores na televisão e isso custava dinheiro…
- Custa dinheiro, sabe? – frisou, violenta, como se eu não soubesse ou tivesse a culpa disso.
Eu então retorqui que estávamos fartos do falatório, sim, e era por isso que eu andava sempre à cata de filmes nos vários canais de cinema, mas nem sempre estes faziam esquecer o stress, pois os filmes também prodigalizavam violências, algumas piores do que as que nos impõem no dia-a-dia governamental e jornalístico. O que é - ouvira a um ministro alemão, não sei se de finanças - é que eles, os fornecedores do empréstimo, tinham que ter a garantia de que o dinheiro não ia ser atirado à rua, e eu achava que à rua não fora com certeza o dos empréstimos anteriores, pois ninguém denunciara o seu achamento, eu própria, como andava pouco a pé, embora a olhar para o chão, por via dos estatelanços causados pelos pedregulhos, também não me podia gabar disso, mas tendo pena.

Muitos haveria, é certo, que o apanharam por várias vias, mas não nos convinha esmiuçar essas questões que poderiam inadvertidamente chegar à troika, além de que a minha amiga decidira desligar-se dos falatórios, muito concisa, nem sei se para poupar energias.
Mas se não fora deitado antes à rua, porque caíra em vários outros sítios, também não iria ser deitado agora, que temos que prestar contas de três em três meses, com muito rigor. O que é certo é que o empréstimo à Grécia só tem contribuído para o engordamento, diz-se, do FMI, que cobra juros salientes, e também se diz que os países que não têm capacidade para se governar na totalidade - embora se governem na parcialidade – e por isso têm que prestar contas trimestrais ao FMI, estão tramados, pois ninguém consegue pôr as contas em dia de três em três meses a um FMI tão exigente.
É certo que os chefes dos partidos bem fazem por desmascarar o PM que nos governa, mas este não se preocupa, nem se justifica, apenas agride, e o povo vota nele com confiança no carisma dele, pelo menos enquanto não vê os resultados do empréstimo, embora eu tenha captado esta ao Jerónimo de Sousa: “Hoje quem não estiver preocupado está abstraído”, e sabe-se quanto Jerónimo de Sousa ama o povo, não iria mentir.
Todavia, o FMI quer garantias, e os partidos à bulha, e com a esquerda a manipular greves e a acicatar ódios - que, aliás, todos acicatam, não quero ser chauvinista ou menos objectiva nas afirmações – não há garantia que consigamos fornecer.
Somos um caso perdido.
Mas os santos vêm aí. E temos sempre a Nossa Senhora de Fátima, já fora dos ramos de azinheira, em dimensão mundial.
Valha-nos a nossa Nossa Senhora, a nossa Mãe Clemente.

sábado, 7 de maio de 2011

Sentadinha na areia

Estávamos cheias de más notícias. Eu acabara de ver a reportagem sobre uma moça inglesa – Laura Hall – alcoólica e proibida de frequentar bares no seu país, por fazer desacatos, e a quem uma clínica algarvia generosa oferecera tratamento. Tive pena da moça, 21 anos já de uma vivência no horror de um vício, mas achei estapafúrdia a ideia de a filmarem nas suas intimidades desastrosas, que só poderiam provocar tanto impacto por a rapariga ser bonita.
Mas a minha amiga não se deixou comover, porque trazia outras na manga, e cortou-me os espantos destas novidades dolorosas a que em geral me furto:
- Mas igual a essa há aos molhinhos! Então não ouviu ontem o Cavaco?
- Para quê? Nem tentei. Não ia dizer nada de diferente do que tem dito…
- Agora descobriu que faz mal gastar-se demais. Mas aquele é um homem que tem um curso de economia! Sabe o que parece? Que está tudo doido! O Cavaco parece um atrasado mental. A dizer inépcias como a de que “ou se se consegue levantar ou não há solução”. O que quer isto dizer? Nada.
- Ora! São duas soluções de evidência, como as que fazemos aos nossos filhinhos: Ou estudas ou estás tramado, sabendo que a primeira hipótese não se verifica. Mas ele tem direito a anúncio televisivo das suas inépcias com suspense. Realmente, ele nada fez para mudar o estado de saúde do país, só se afirma preocupado, como foi o lema dos seus discursos. Mas há quem goste, ou não condene, por ser da mesma linha…
- Hoje o senhor percebeu que isto vai mal. Nunca toma uma atitude para ajudar a cortar o mal. Às perguntas da premência, protela, não pode responder, guarda para mais tarde, para os discursos trabalhados e pré-anunciados para o suspense. Eu fico parva. Não quero acreditar que aquilo é real.
- Somos uns tagarelas, já é tempo de deixar a recriminação de avozinhos.
- Ai, mas o que é que esta gente quer? Não lhes faz diferença as fábricas que fecham, os milhares de desempregados… Já são 800.000… Têm a família a salvo, e os amigos…
- Mas o Sócrates vai ganhar! Estamos com ele.
- Há muitos que dizem que ele devia ser chamado a prestar contas!
- A gente não se importa com as aldrabices, até achamos graça, ele vai ganhar.
- Entretanto, o Cavaco está todo de peito feito com o mar, quer o país voltado novamente para o mar….
- Pois! Sentados na areia, a “apanhar conchinhas do mar…”, como na canção:
“Ai que praias tão lindas, tão belas,
Quando eu ia a passear
Sentadinha na areia sozinha
A atirar conchinhas p'r'ó mar…”

E a imagem das conchinhas trouxe-nos a das panelas, por via do sal. Levantámos âncora.

A falsa moral da fábula, no caso de banha da cobra

É extremamente conhecida
A fábula seguinte
Que narra Esopo
Do pastor farsante.
Quase parece
Que o que ele disse
Sobre a moral sentença,
O nosso culto merece
Por ser de justiça
Sentença não mansa.
Parece efectivamente verdadeira
- E mesmo generalizada -
Tal moral certeira.
Mas não é seguida
Por cabeça menos lida,
Inconsciente, indiferente,
Que não lê
Garrett, Eça ou Gil Vicente,
Nem vai ler,
Mesmo numa tradução
Feita com exactidão,
Este «Pastor farsante»:

«Um pastor que para longe da aldeia
O seu gado costumava levar
A pascer,
Jamais se cansava,
De, à boca cheia,
A seguinte farsa compor
Sem qualquer pudor:
Punha-se a gritar,
A chamar as gentes da aldeia
Confessando
Que os lobos ferozes atacavam
Os seus carneiros, e os dizimavam.
Das primeiras vezes
As gentes da aldeia acorreram
Assustadas, mas sempre regressaram
Enganadas.
E um dia, que os lobos realmente
Apareceram
E os carneiros dizimaram,
Por mais que ele gritasse
Pedindo à aldeia que o auxiliasse,
A aldeia em peso
Não foi acudir
Porque julgou que mais uma vez
O pastor estava a mentir
Com a habitual desfaçatez.
E assim o seu rebanho querido
Aquele perdeu,
Por ter mentido.
A fábula demonstra
Que, no mundo inteiro,
Todo aquele que mente
Com máximo desplante,
Jamais é acreditado,
Pela gente inteligente,
Mesmo que ocasionalmente
Ele seja verdadeiro.»

Ora o que eu dizia,
Anteriormente,
É que hoje em dia
Não é como antigamente.
De facto, o pastor que nos guia
Fartou-se e farta-se de mentir
E a mentir continuará,
Com grande requinte e engenho.
E não julguemos que se fartará
De as suas razões embrulhar,
Cada vez mais a troçar
Das nossas gentes por cá,
Que ao invés de lhe não acudirem
E não o escolherem,
Voltam a votar nele
Mansinhas, desgraçadinhas,
Para melhor se perderem
Nas farsas do manobrador
Aliciador, sedutor
Ganhador,
Impavidamente gritador
Sem pudor.
E tudo porque mais atrasadinhas
Do que as gentes inteligentes
Do tempo do fabulista grego
Por não aprenderem com a experiência,
Só porque lhes falta a ciência.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Não há pulseiras

Falou-se na beatificação de João Paulo II e a minha amiga perguntou-me se eu ouvira falar em algum milagre do santo. Eu em tempos ouvi falar de um, mas ela achou pouco para tal ascensão, e eu então referi que nem sempre as pessoas merecem os doutoramentos honoris causa e têm-nos.

Além disso, parecia-me ser um milagre dele, bem substancial - até porque ele sempre esteve de bem connosco graças à Nossa Senhora de Fátima, sua amiga e nossa, natural era que tivéssemos direito a um milagre substancial – era, pois, um milagre dele, o FMI não nos cortar os dois subsídios como a imprensa volúvel nos ameaçava - mas disse-se depois que foi marosca do PM, que pôs maquiavelicamente a correr essa atoarda do corte para vir cantar loas a seu favor, porque tais atoardas, (da oposição, segundo ele, do Governo segundo os cépticos), não se verificaram, para glória sua, que tem o próximo governo garantido, como as sondagens mostram, por sermos um povo muito dado à crença de todas as espécies de mitos, mesmo que sejam maquiavélicos, por isso ser favorável à nossa preguicite mental, acho.
Hoje, contudo, os troikos afirmaram ao jornalista, que pôs a questão dos subsídios, que tais subsídios nunca estiveram em cima da mesa, (podendo bem, contudo, ter passado por debaixo dela sem os troikos terem dado conta, até porque os lapsos são próprios dos humanos, mesmo dos da troika, a verdade não é sempre discernível e eles não estão cientes das nossas aflições nem dos nossos mitos, por não conhecerem a nossa língua, apesar de terem tradutores eficientes).
Mas o maior milagre do santo Papa foi, segundo a minha amiga, que não se conforma com um único milagre a ele atribuído, os muitos milhares de portugueses que se deslocaram ao Vaticano para assistirem à beatificação, apesar de andarmos por aqui em situação de penúria, nem sempre, todavia, verificável nos nossos hábitos de largueza, como muitas vezes já referimos, sendo a ida ao Papa um bom exemplo disso.
Outro milagre que apontámos, mas este mais global, porque muitos de outras partes da esfera, de outros sóis diferentes, como diria o nosso bom Sá, o pensaram antes de nós, foi a morte de Bin Laden, ainda que sempre possamos recear a sua proliferação sem que o santo intervenha de novo, pois nem sempre os santos estão disponíveis, muito menos contra os Bin Ladens, que alastram com sanha progressiva, sem bem percebermos porquê, avessas que somos a fundamentalismos e a tanta crueldade reivindicativa que semeia o terror.
Mas a minha amiga mudou de assunto, na vastidão das suas fúrias:
- Era bom que o FMI viesse para meter na ordem não só o dinheiro mas os malandros. Que estes começassem a fazer as continhas e a chamá-los um por um. Aquela história do BPI aquilo é um escândalo! Estão agora a responder! Como se cá estivessem num paraíso fiscal! Grande história! E o que é que isso faz? Provas já as têm todas. Depois aparecem outros… É como os pedófilos! São cada vez em maior quantidade! Nem há pulseiras para tanta gente!
Que a minha amiga não perdoa, nada tem de santa, é claro, assim a pensar em algemas…
Como foi possível chegarmos a tanto stress? A quem pedir contas?
Valha-nos João Paulo II!

quarta-feira, 4 de maio de 2011

A Lisboa de Cesário

A Lisboa de Cesário identifica-se com a Lisboa de Eça, já que ambos os escritores pertencem à Geração de Setenta, caracterizada pelos melhoramentos urbanísticos e tecnológicos trazidos pela política de modernização de Fontes Pereira de Meloconstrução de estradas, de vias-férreas, de infra-estruturas, de jardins, parques, hotéis…
Mas, se é fácil seguir as pistas deixadas pela ficção queirosiana segundo as evoluções dos enredos, quer na referência à toponímia – Benfica, Pedrouços, Olivais, Avenida (da Liberdade), Chiado, Rossio, Largo da Graça, Penha, Santa Apolónia, quer a espaços específicos: de lazer ou prazer cultural - o Grémio Literário, a Livraria Bertrand - os Teatros - S. Carlos, Trindade - os monumentos - a estátua de Camões, o Obelisco, o Castelo - as igrejas - a Sé, Igreja da Encarnação, do Loreto, do Sacramento… - os Hotéis – Central, Aliança… - os Cafés – Baltreschi, Havanesa… (sendo a zona do Chiado o espaço de centralidade n’ Os Maias) - na poesia cesariana, que se pretende de rigor e sem banalidades líricas, tais espaços são referidos nos designativos genéricos de ruas, igrejas, hotéis da moda, cafés, teatros, lojas, tabernas, fachadas das casas… já que as designações toponímicas que nele se encontram se limitam ao café Martinho (da Arcada) - “Às mesas espelhentas do Martinho”, no poema “Arrojos”, e, no poema “Esplêndida” “a rua do Alecrim”, o Jock Club, o restaurante “Mata”, ambos os poemas publicados no Diário de Notícias em 1874.
Em ambos os escritores não podemos deixar de atentar, também, para além dos espaços temporais e psicológicos - em Cesário o egotismo vs. a alteridade (os outros), os espaços sociais, sendo, em Cesário, fortes os contrastes entre os comportamentos de uns e de outros - espaços de miséria, de doença, de exploração, de trabalho árduo, do povo que ri e que chora, versus os pedantismos, as luxúrias, as devassidões, os despotismos, da sociedade mundana, que a sua sensibilidade, atenta ao pormenor e rebelde aos convencionalismos, conduz a um modernismo inovador, quer ao nível da forma quer das temáticas, que pressupõem idênticas fontes de conhecimento – positivismo, socialismo, materialismo agnóstico… - que orientaram a Geração de Setenta, nas suas intenções de modernização de um país e de uma cultura desde sempre atrofiados, em dissonâncias gritantes relativamente aos outros países europeus..
É com iguais perspectivas, pois, que percorrendo os espaços urbanos citados por Eça, poderemos pensar que os percorreu Cesário, que em Lisboa nasceu, em 25 de Fevereiro de 1855 e ali viveu, empregado de uma loja de ferragens do pai, tendo frequentado o Curso Superior de Letras, trabalhando no campo, em Linda-a-Pastora, onde seu pai tinha uma quinta, com pomares, que descreve, com os respectivos trabalhos de dinamismo rude, na II parte da poesia “Nós” (A I e III respeitando a cidade – Lisboa – espaço de doença e de prisão).
De uma tese feita em 1960 – “Alguns aspectos estilísticos no “Livro de Cesário Verde”- transcrevo a Conclusão, como forma de rever – e homenagear - um poeta desde sempre amado, que em 18 de Julho, passará os 125 anos da sua morte.
« CONCLUSÃO»
«0 primeiro facto que se nos depara, quando estudamos as imagens do "Livro de Cesário Verde", é a sua beleza e harmonia. Pudemos verificá-lo através das comparações mais estranhas ou das metáforas mais originais, reveladoras de uma imaginação fecunda que, através do “real e da análise”, dentro de uma configuração estética anti-romântica, de temática naturalista e de influência baudelairiana, surpreenderam pela novidade, quer imagística quer rítmica. Raras são, com efeito, as imagens obtidas do mundo das abstracções. Vimos como para Cesário o concreto, o real, é fonte de quase todas as imagens, e se muitas vezes se utiliza do abstracto, é para o concretizar, para lhe dar mais vida.
Outro ponto em que atentámos foi na ausência de tom declamatório da sua poesia, manifesta através das comparações ou metáforas que raramente aparecem em série, quando referidas ao mesmo plano real.
Diz-nos José Régio em "A Moderna Poesia Portuguesa": "0 Livro de Cesário Verde" representa o naturalismo na nossa poesia. Isto é: a introdução, na poesia portuguesa, da natureza e da vida - despidas tanto quanto possível dos devaneios metafísicos, das deformações da imaginação, do preciosismo ou da simbólica; bem como do preconceito (e este tão vulgar quanto insuportável) de fazer poético."
Tal característica de rigor e precisão de traço, avesso aos convencionalismos líricos da época, ele o afirma, a cada passo, como no poema “De Verão”:
Não pinto a velha ermida com seu adro;
Sei só desenho de compasso e esquadro,
Respiro indústria, paz, salubridade.
Vimos ainda o calor de simpatia com que o Poeta envolve todos os seres - desde o homem de vida penosa e triste até aos mais obscuros objectos. E deste modo assistimos à personificação que sofrem os animais, as plantas, as coisas inanimadas, que resulta certamente de um sentimento de fraternidade e carinho por todos os seres.
Ao estudarmos os temas das imagens atentámos na variedade de termos cromáticos e de luz. Com efeito, é a vista o sentido predominante em Cesário. A ela, como verificámos no quadro das sinestesias, se dirige a maior parte das transferências.
Poeta acima de tudo visual, ele próprio se irmana muitas vezes com os pintores, pois frequentemente afirma que "pinta quadros". Simplesmente os quadros que "pinta" possuem algo mais do que o colorido dos próprios painéis. Possuem o som, e os aromas que se evolam dos ares, e as próprias sensações gustativas ou tácteis, todos os seus sentidos vibrando em coesão perfeita. Repetimos a transcrição, de “Cristalizações”:
Lavo, refresco, limpo os meus sentidos,
E tangem-me, excitados, sacudidos,
0 tacto, a vista, o ouvido, o gosto, o olfacto!
Todos estes sentidos colaboram na formação de uma poesia cheia de descritivo, em que abundam as anotações de toda a ordem, que surgem ao sabor dos seus pensamentos e, sobretudo, ao sabor do seu vaguear pelas ruas ou pelos campos. Factor impressionista este, em que os mais variados assuntos e quadros se nos deparam, numa poesia de carácter deambulatório. E, na verdade, observámos que Cesário Verde se equipara, pelo seu estilo, aos escritores impressionistas:
Série de substantivos sem verbo a ligá-los à frase antecedente, abundância de construções nominais, formas durativas dos verbos que melhor exprimem uma acção prolongada no tempo, fundas pausas no interior dos versos são, juntamente com outros factos que anotámos, factores expressivos do estilo impressionista.
Reparámos na adjectivação variadíssima do “LIVRO”, com alianças, cheias de sabor e imprevisto, de um adjectivo de ordem moral com um adjectivo de ordem física, formando aquilo a que Carlos Bousoño chama "ruptura do sistema" e que transmitem uma realidade mais complexa, numa concisão vocabular enriquecida em ambiguidade, e onde, igualmente, se encaixam a hipálage, a sinestesia e outros processos.
Estudámos ainda outros aspectos, como por exemplo a colocação dos adjectivos na frase e a sua função como factor rítmico e musical. Descobrimos assim que Cesário não é só o artista de imaginação poderosa, capaz de formar as imagens mais expressivas, tiradas do mundo real. É também artista pela harmonia com que dispõe as palavras no verso, obedecendo a um sentido rítmico em consonância com a mensagem expressa.. Melhor o verificámos ainda quando estudámos a versificação, de uma musicalidade específica, revelada no jogo das vogais tónicas ou no paralelismo acentual dos hemistíquios, no caso dos alexandrinos, e no processo onomatopaico tão actual, em jogos de sons sugestivos de estados de alma ou de ruídos físicos.
Enfim, ao longo deste estudo pudemos ir focando as várias facetas do humorismo de Cesário, que se manifestam ora por exageros hiperbólicos, ora por requintes de expressão, que levam sempre o tom irónico, ou, pelo contrário, o "pingo de sebo" lançado sobre uma superfície sem mancha, isto é, um termo grosseiro atirado para junto de uma descrição cheia de elegância. Outros aspectos do seu estilo revelaram-nos ainda como o sentido da ironia ou do sarcasmo é um poderoso agente dos seus versos.
Vejamos mais uma vez o que nos diz José Régio ao analisar Cesário Verde de forma tão penetrante:
"Se outros poetas encontrámos já em que admirámos a multiplicidade dos dons, nenhum ainda encontráramos que em obra tão curta revelasse tanto... e tão magistralmente. Dir-se-ia que em cada poemeto vinca o poeta um novo aspecto da sua personalidade..."
"Assim, as imagens são ousadas e raras, o relevo cru, sóbrio, as linhas rectas ou quebradas, o termo ora rebuscado a ponto de o não parecer, ora atirado ao acaso a ponto de parecer rebuscado. Sente-se aqui o artista caprichoso e poderoso; o mestre; o esteta sugando gostosamente o seu mel. E sente-se um aristocrata na melancolia irónica, distante e superior que lhe penetra vários poemetos. A máscara fria dos seus versos diz o pudor das expansões fáceis e das efusões sentimentais, o que nos proporciona um novo encanto: o particular encanto de uma que outra vez o sentirmos vencido (embora talvez, consciente e voluntariamente vencido) humanizando até às lágrimas a sua altivez de dandy".
Fala-se bastante no modernismo da poesia de Cesário e por várias vezes encontrámos nele traços estilísticos que o aproximam dos poetas contemporâneos: complexidade das imagens, variedade de ritmos, com cesuras profundas, encavalgamentos que transpõem o sentido dos termos ao verso seguinte, prolongando o efeito semântico das mensagens, gosto pela aliteração e pelas formas onomatopaicas, alternância dos planos do mundo exterior e do mundo psicológico.
Mas Cesário Verde está presente, pensamos, não só pelo estilo como pelo conteúdo da sua obra, cujos motivos são explorados pelos escritores portugueses neo-realistas. Lembremos, v.g. a poesia "Provincianas" que tão bem foca o trabalho brutal e mal pago dos que vão trabalhar por conta de patrões ricos e insensíveis à miséria, e as violências a que estão sujeitas as raparigas trabalhadoras, por parte desses mesmos patrões, tema que "A Fanga" de Alves Redol, p. ex., desenvolverá igualmente - o trabalhador miserável sugado e explorado pelo patrão sem escrúpulos a quem o dinheiro deu um poder ilimitado.
Igualmente são figuras sempre vivas os calceteiros vergados sob um trabalho duro, a pequena vendedeira, enfezada mas cheia de vivacidade para conseguir vender as suas hortaliças, mais pesadas do que ela, as peixeiras descalças sobre lugares imundos e infectos, as elegantes que o entristecem, apesar do luxo que as cobre ... E os marçanos, e os carpinteiros, e a velha de bandós, e o professor pedinte, e os magros soldados, e os pálidos barbeiros ... E os seus irmãos doentes... Todo um mundo de figuras sempre actuais nos é revelado através de quadros cheios de interesse pictórico e humano. É extraordinariamente sugestiva a galeria de pobres que povoam a poesia "Em petiz" e que tanta influência tiveram sobre a psique do rapazinho "destro e bravo", mas que deles fugia com terror, "agourando o crime, as facas, a enxovia".
Sentimos o pulsar de vida da cidade ou do campo através desses quadros que o Poeta tão bem consegue captar, um movimento contínuo através das referências a factos banais - um parafuso que cai, tilintando, na rua, as caleches que passam, na noite, os rebanhos que regressam dos pastos, a ondulação das plantas sob a aragem...
E esses descritivos sobre a realidade exterior, vai-os alternando com a anotação do seu próprio eu que a ela reage, em auto-análise psicológica - processo de alternância dos planos exterior e interior que tanto irá influenciar os poetas sensacionistas e futuristas do ORPHEU.
Outros traços se lhes equiparam: o prosaísmo lírico, a natureza anti-literária, dentro de uma conceito anti-aristotélico da arte, que repele lirismos bucólicos, com imagens de doçura e romanticismos luarentos de rouxinóis trinando, pondo em evidência, antes, elementos de carácter utilitário ou sons menos musicais, ou de temas baudelairianos repulsivos e de doença, um sem-número de dados, em que se inclui o Jack, marujo inglês, da poesia “Nós”, que serviria de modelo aos marujos brutais da “Ode Marítima” de Álvaro de Campos:
Jack, marujo inglês, tu tens razão
Quando, ancorando em portos como os nossos,
As laranjas com cascas e caroços
Comes com bestial sofreguidão”...
Também já sugestões surrealistas nos são veiculadas por versos extraídos de “O Sentimento dum Ocidental” como “Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras”;Os olhos dum caleche espantam-me sangrentos” ; “Enleva-me a quimera azul de transmigrar”; “A Dor humana busca os amplos horizontes / E tem marés de fel como um sinistro mar”.
A própria transfiguração sofrida pelos vegetais de “Num Bairro Moderno”, formará longa alegoria, a que não falta o sentido crítico que resulta do contraste entre a brutalidade do peso das hortaliças e a figura humana que as carrega.
Variedade rítmica, sábia configuração dos poemas, são igualmente factores da arte poética de Cesário, que nada deixa ao acaso, criando beleza na expressão das suas emoções, as quais resultam da observação atenta do mundo polifacetado, na sua beleza e fealdade, nos seus dinamismos e nas suas cores, e sons e odores, que se lhe vão deparando, na perspectiva da sua focalização expectante, ou à medida do seu deambular, sozinho ou acompanhado de figura feminina, propícia a mordacidade, como também a apreço e estima.
Cesário, um poeta rebelde, um poeta não convencional, um poeta atento, um poeta original. Que morreu cedo, apenas com trinta e um anos. Em 18 de Julho de 1886.»

terça-feira, 3 de maio de 2011

Vai Neptuno decidir

Cheguei primeira ao nosso ponto habitual de encontro – o virar da esquina, onde os três contentores dos recicláveis se enfileiram para neles repartirmos civilizadamente os produtos do despejo diário. A minha amiga chegou depois, sem lixo para despejar, entrando no carro, a falar ao telemóvel. A bomba, guardou-a religiosamente para a mesa do café, largando-a num suspense triunfalista, embora em surdina, por estarmos num espaço público:
- Olha, o dia um de Maio de 2011 fica feriado em quadruplicado – dia do Trabalhador, dia da Mãe, do Papa e do Bin Laden…
- Do Bin Laden? –
estranhei.
- Mas isto é tão incrível que eu preciso de confirmar. Se eu não tivesse ouvido o Obama, ainda estava à espera de saber se era verdade.
- Mas qual verdade?
– insisto, em frustrada curiosidade.
- Estava um português a dizer que o terrorismo ainda não acabou e eu, que acabei de ouvir o Obama dizer isso, disse cá comigo: “Não dizes isso em primeira mão, já o Obama o disse…” Mas tenho que confirmar…
- Mas afinal o quê?
– quase berrei, mas discretamente, não gosto de erguer a voz no café.
- Até se dizia p’r’aí que ele estava mais que morto, só que não havia provas…
- Mas o Bin Laden morreu?
– exclamo, já meio impaciente.
- O atentado contra o Kadafi quase que ia sendo também neste dia, foi por um triz. Mas ele não morreu, morreu o filho e três netos. Mas já viu o que era ser o Kadafi em vez do filho e dos netos? Era incrível! Foi por pouco. Nas casas deles têm bunkers. Ele devia estar no bunker e o filho e os netos cá em cima. Só quando a casa está toda rebentada é que entram nos bunkers, onde não falta nada de conforto. Ele agora rende-se, deve estar desfeito.
A dona do café trouxe os cafés e os copos de água e confirmou o mistério sobre o Ossama, dando pormenores, com a televisão sempre acesa, favorecendo o conhecimento:
- Então lá se foi o Bin Laden? Parece que foram os americanos… Mas o terrorismo não acaba.
Passou uma nossa amiga, ao largo, muito despachada, a caminho do cabeleireiro, bati no vidro, interrompendo-lhe o percurso. Veio vindo, a certificar-se de que o toque era para ela, entrou no café a bradar, num à-vontade descuidado:
- Então mataram o Bin Laden?
- Só vendo! –
ponderou a minha amiga cautelosa - precisamos de saber melhor.
A nossa amiga deu informações:
- Apareceu uma imagem dele com o olho vazado…
- Está com muita sorte de ter só um olho vazado
– disse a minha amiga, com uma ferocidade que achei de mau gosto.
E a senhora que todos os dias faz palavras cruzadas e toma o seu pequeno almoço lá no café, e ajuda os que ali entram a pedir comida, mandando a dona do café servir-lhes o que eles pedem, ponderou sobre a crueldade dessas imagens chocantes, do Saddam encurralado, do Savimbi coberto de moscas, agora do Bin Laden de olho vazado…
A nossa amiga, sempre carinhosa, lamentou os netos e o filho do Kadafi, sacrificados sem culpa:
- Coitadinhos!
Cada uma voltou aos seus afazeres, ao cabeleireiro, às palavras cruzadas, às compras no Pingo Doce, aos trabalhos de casa...
E foi um fartote de Ossama, o dia inteiro. A “ameaça terrorista que vai durar”, a “operação cirúrgica relâmpago dos dois helicópteros norte-americanos”, o discurso do Obama, o falso retrato do Ossama de olho vazado, o enterro aquático de Ossama, que eu estranhei, por nos deixar na incerteza, propiciando o mito, tal como nós também cá temos, meio enevoado o nosso, embora, ao contrário do D. Sebastião, ele venha a funcionar antes como monstruoso drácula, vampiro de raízes eternas, bebendo sangue a procriar…
E a minha irmã explicando à curiosidade da minha mãe, em jogo de rimas despreocupado:
- O criminoso é o Obama, que matou Ossama…

domingo, 1 de maio de 2011

Ditadura do patronato

A minha amiga lembrou o facto do Sr. Director do Banco de Portugal estar com cara de casa funerária, o que me levou a protestar, pois sempre conheci agentes funerários bem-dispostos, falando dos preços e do material das urnas, e a minha amiga nisso deu-me razão, até acrescentou que há urnas com duas assoalhadas e duas portas, mas como se riu, vi logo que estava a gozar comigo e confesso que não gostei nada, porque o meu lema baseia-se sempre na verdade, sem precisar para isso de jurar por nenhuma Bíblia, nem pela minha honra, nem estou em idade de aceitar troças, quaisquer que elas sejam, e muito menos a respeito de urnas.
Mas mudámos de assunto, porque lhe levei um texto da minha neta Ana, do seu blogue “Crónicas de Lisboa”, e li-lho, rindo, sobretudo eu, da graça de um texto que consegue apresentar uma situação dramática, de pânico, como todos nós já sofremos na vida, e, sem manto diáfano de fantasia a recobri-lo, todo ele manifestando um poderoso efeito de visualização dinâmica, moça e despretensiosa, com uma sensibilidade a visar o caricato para desmistificar tal pânico, e a estendê-lo a um sentido crítico e auto-crítico a que a ternura pelo outro não é alheia.
Mas a minha amiga que me acompanhou no riso, foi, em todo o caso mais atenta à realidade cruel que detectou no texto e que ela conhece por confissão das vizinhas:
- A nora da minha vizinha sai-me de casa cada vez mais cedo, para estar no serviço às 8h e chega a casa cada vez mais tarde. Também a filha dela anda esgotada. Pagam-lhe bem, mas exigem cada vez mais dela, sem qualquer respeito pela pessoa humana.
Eu também conheço casos, já várias vezes focámos este assunto da exploração a que os novos tempos conduziram a sociedade.
- É uma ditadura das piores, concluiu a minha amiga, pois não respeita o ser humano, escravo da ameaça de despedimento sempre possível…
Mas eu achei que as outras ditaduras que milhões de outros seres humanos sofreram, na Europa como na Rússia, e agora em tantas partes do globo, eram bem mais cruéis, pois tinham o direito de eliminar os seres humanos e de os submeter a tratos de um horror indescritível.

A minha amiga ironizou:
- Pois, agora tudo se faz dentro das normas, com a conivência dos governos, a comando do capital. Os governos estão a salvo, e os seus amigos também estão bem defendidos, ocupando os bons cargos...
- Mas veja como se ri a minha neta, fazendo humor da desgraça. No tempo do Hitler ou do Staline, não creio que fosse tão desanuviada a escrita:

«Retiro »
"Hoje encho o teclado de sopinha enquanto faço uma proposta de remuneração e um cronograma e cuspo mais umas migalhas de sandes de ovo enquanto revejo uns textos antes de os enviar e falo uma horinha ao telefone, mas não saio daqui depois das 19h". Este é o pensamento das 13h. E às 19, dá-se o chamado renascer do sol. O renascer das 19. E o meu dia recomeça, sem pequeno-almoço, sem lavagem de dentes, cara, cremes, perfumes, sem escolha de roupa adequada, sem as 8 horas de sono ou os Laços de Sangue antes de ir para a cama.

E assim o meu local de trabalho se tornou mais acolhedor. As minhas gavetas foram-se esvaziando de papéis (por vezes importantes), que deram lugar a pacotes de leite, bolachas, nutella, pastilhas elásticas, rebuçados, bens essenciais, de subsistência. E assim me encontrei com uma outra colega altruísta nas masmorras da agência, naquele assustador -3, dentro dos contentores do lixo à procura de papelada importantíssima, vinda de países longínquos onde parece que se fazem bons negócios. As duas a correr atrás do camião do lixo, com as mãos e os braços e a roupa inteira a cheirar a podre, camião que infelizmente "acabou de sair!" e engoliu os meus papéis e a minha reputação de pessoa organizada.

E assim dei por mim no fim-de-semana aos gritos com a senhora dos pastéis de Belém que, com 90 anos e um ar esfomeado, tentou passar à minha frente na fila para comer um pastel sentada à mesa porque já não aguentava as pernas. E depois com o empregado dos pastéis que se enganou a dar-me o troco. E com o meu namorado que observou que não era com esta pessoa que tinha começado a namorar. Um drama.

E assim perdi uns quilos e me tornei enfezada apesar das bolachas e do cancelamento da natação. E assim este blog foi perdendo vida, tal como eu, que fui inclusive abordada no comboio para frequentar aulas de apoio pessoal. Estava eu e uma carruagem inteira de deprimidos, sentados e de pé, mas apenas eu tive direito a uma festa nas costas, uma palavrinha e um panfleto sobre "como melhorar a minha aura". Estava a incomodar.

Mas estou confiante. Adoptei os saltos altos, a maquilhagem matinal, da hora de almoço e da hora de jantar e os soutiens com enchimento e acho que as coisas estão a voltar a pouco e pouco aos seus lugares.»

Camus escreveu no “Mito de Sisifo” sobre o absurdo das contingências humanas, submetidas à lei do efémero da vida e do massacre das rotinas diárias. Usou a gravidade da reflexão, ele pertenceu à elite de pensadores brilhantes que filosofaram sobre os comos e os porquês da existência e os aplicaram nas suas obras de ficção.
Este breve texto da Ana é um mimo de graça e de sensibilidade crítica, revelador dos novos tempos, de uma juventude que, tendo sido beneficiada pelo progresso material, enfrenta com desportivismo e alegria as dificuldades do seu dia-a-dia.
E assim, cada um vai conquistando o seu espaço – na submissão às normas do imperialismo capitalista ameaçador, ou na liberdade de brincar com isso.
Mas é necessário mudar.