segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Uma radiografia antiga - Nos 48 anos do João

A mania das grandezas
Que faz que desejemos imitar
Os que sabemos poderosos,
Já Esopo a tratou,
La Fontaine o imitou
Embora, em vez dum gaio,
Tivesse escolhido um corvo,
Como émulo da águia
Que o cordeiro roubou.
A fábula primeira,
A de Esopo, a verdadeira,
Que as outras originou,
Já em tempos a li
E traduzi.
Vejamos o que disse La Fontaine
Muitos séculos depois, o dezassete:

«O corvo querendo imitar a águia»
«A ave de Júpiter, símbolo pois de poder altaneiro,
Apanhando nas presas um cordeiro,
Foi avistada por um corvo pretensioso,
Que, embora mais frágil dos rins, não era menos guloso,
E decidiu imediatamente imitá-la,
Por ser tolo. Outros diriam brioso.
Girando à volta do rebanho,
Entre cem carneiros escolhe o anho
Mais gordo e bonito,
Um verdadeiro cordeiro de sacrifício
Destinado à boca dos deuses,
Que disso tinham o vício.
O espertalhão do corvo dizia,
Olhando-o com meiguice,
Sem se aperceber da tolice:
“Não sei quem foi tua ama,
Mas o teu corpo me chama:
Servir-me-ás lindamente
De alimento providente.”
Sobre o anho, que ao ouvi-lo baliu,
Se lançou com arreganho:
A lãzuda criatura
Pesava mais do que um queijo
Bem contra o seu desejo,
Além de que o seu velo
Era duma extrema espessura,
Não muito belo,
Porque emaranhado como a barba
Do “bruto” Polifemo.
Nele se enfiaram as garras do Corvo tão tortuosamente
Que o pobrezinho não pôde dele safar-se.
O pastor chegou, que o apanhou e o enfiou à pressa
Na gaiola, para divertimento dos filhos,
Encantados com a surpresa.
É preciso sabermos medir as nossas forças;
A consequência é nítida:
Mal fazem os ladrõezinhos em querer
Os ladrões autênticos imitar:
A fábula é exemplo de perigoso engodo:
Nem todos os comedores de gentes são grandes senhores.
Onde passou a Vespa
Apenas o Mosquito resta.»

Mas La Fontaine estava muito longe do que se passa por cá
E até lá por fora, agora,
Em sítios de maiores responsabilidades
Porque de maiores potencialidades.
Aquilo a que temos diariamente assistido
É uma insólita formação vigarística,
Que ao invés de partir das águias superiores,
Parte muitas vezes
Dos pardais de estatutos inferiores,
Que vão crescendo, à medida que vão aprendendo
Com águias ou com outros pardais iguais,
E a dada altura, atingindo os estatutos convenientes,
Com as suas corrupções mais que repelentes,
Mosquitos inicialmente,
Vespas desleais, depois,
Espalham uma rede tão sombria de vilania
Que ninguém mais poderá eliminar algum dia.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Os ventos da (des)graça

Uma fábula de Esopo
Que vem a propósito
Dos nossos costumes
De eternos acusadores
Dos causadores
Dos nossos queixumes,
Como infractores
Das regras, das leis,
Sem problemas maiores,
Pois que a elas são
Por condição
Superiores:

«O mar e o náufrago»
«Sobre a costa largado,
Um náufrago fatigado
Depois de tanto se ter esforçado
A nado,
Tinha adormecido
Esmorecido.
Pouco depois voltou a si e, olhando o mar,
Censurou-o por os homens atrair
Com o seu ar amigo,
Quando, seguidamente,
Depois de os ter acolhido,
Contra eles se lançar
E os exterminar
Furiosamente.
Então o mar
Sem se alterar,
Tomou a forma duma mulher,

Que nem sequer era sereia,
E respondeu-lhe a sorrir:
“Homem, não me culpes tu a mim
Mas sim
Os ventos peneirentos.
Porque quanto a mim
Eu sou assim,
Como me viste e me vês.
São eles que me atacam
De surpresa,
Pela frente ou por detrás
Seguindo as orientações
Dos pontos cardeais e mais
De toda a rosa-dos-ventos.
E me agitam e enfurecem
Sem qualquer delicadeza
Por mim, mulher de grande beleza.”
Da mesma maneira nós
Não devemos logo responsabilizar
Os executores dum crime
Sabendo que eles não são senão
Simples subordinados
Dos chefes de quem eles são
Apenas paus mandados.»

Isto disse Esopo outrora,
E hoje é tão verdadeiro
Como foi no tempo dele
Porque como clássico que foi,
Primeiro,
Conheceu bem o homem
Useiro e vezeiro
Nos seus malabarismos,
Mas também
Nos seus dinamismos,
Vento revoltoso
Empurrando, atacando,
E redes organizando,
Os não amigos excluindo,
Destruindo,
Afastando, num segundo,
Desse seu mundo bem fundo
E até, por vezes, imundo.
Nós, os governantes acusamos
De serem ventos danosos.
Mas realmente eles não são mais que mar
Que é empurrado sem parar
Pelos ventos furiosos
Que sopram do centro e do norte
E do leste e do oeste
Piores do que a peste.
É preciso sabermos lutar,
Mas colaborar
Com o mar
Para os ventos apaziguarmos
Da rosa-dos-ventos.
Ventos e marés venceremos
Se quisermos.
Cada um de nós esforçando-se,
Confiantes,
Competentes,
Em vez de só criticarmos,
Sem jamais nos responsabilizarmos,
Impecáveis que somos. Sempre.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Não havia Gisele

A minha amiga começou por se negar a contar as suas impressões do país em cujos cafés de bairro gastamos os três quartos da nossa hora matinal diária, antecedente da outra meia hora no Pingo Doce, a pretexto de que queria acabar o ano “já não digo tão bem como os ladrões – frisou com autoridade – que esses vivem na fartazana e na consideração pública, mas pelo menos sem estatelanços na calçada."
Trata-se, como já tenho explicado, da calçada de que os nossos passeios portugueses largamente usufruem, com as covas e as pedras soltas a permitir a topada distraída que já nos fez malhar por mais que uma vez, pelo que agora cautelosamente andamos por elas olhando para baixo, sem cumprimentarmos os conhecidos, que imaginam motivos de oculta zanga nas nossas poses de resguardo cabisbaixo. Por isso é com sobressalto que às vezes os ergo, com uma frase que me transporta aos tempos juvenis da descompostura risonha das nossas distracções: “Fala à gente e guarda o teu dinheiro”, dizem-me, coisa que no momento actual, nenhuma de nós ambas se pode gabar de fazer, pelo menos no que concerne a segunda imposição da frase duplamente apelativa.
Mas, apesar da sua recusa em expor, a minha amiga imediatamente se pôs a desbobinar sobre o caso Duarte Lima, com muitas referências à Rosalina e à filha do Feteira, e às tramóias de Duarte Lima que se propõe devolver as acusações contra ele, acusando a Feteira filha de assassínio da Rosalina herdeira.
-“Eu queria a Rosalina viva”, defende-se a Feteira filha. A Rosalina queria tudo para ela e esta Feteira filha pôs o pai Feteira em tribunal. “O que é que eu ganho com a Rosalina morta?”, pergunta a Feteira filha, “eu queria que ela prestasse contas”.
E a minha amiga conta de uma sua vizinha de baixo, que já trabalhou com Duarte Lima e acha que não foi ele: “Pode ter a certeza, não foi ele, ouça isto que eu lhe digo.”
E a minha amiga contesta:
- Mas a cabeça não serve para pensar? O gajo apanhado em milhares de mentiras comprovadas! E depois vêm dizer que a polícia do Brasil não presta, é corrupta! Tinha um processo em 2004. Até hoje estava tudo caladinho que nem ratos, para não ser condenado por um crime antes deste. Espera aí! Aquele homem engana Deus e o Papa. Mas a minha vizinha garante que não foi ele. Porque não pararam? Um fulano que era só advogado, não era mais nada! Dá-me a impressão de que era burro. Não tinha medo? Rodeia-se de peças de arte, tem casas de preços incalculáveis, mete o filho nas negociatas… Era pobre quando começou…
- Toca os clássicos no órgão – interrompi timidamente. Uma vez foi a um programa do Herman José onde tocou órgão - ou seria piano? -e contou de forma comedida os seus infortúnios da doença que venceu. Passei a olhá-lo com mais simpatia, pois não gostava da figura, não sei se pela crueza do seu discurso sério.
-Só diz mentiras, parece um pateta, continuou a minha amiga imparável, momentaneamente esquecida do Nosso Senhor castigador. Só há uma coisa que a gente pode pensar dele como de pessoa inteligente: ele sabia que não há extradição. Mas há uma coisa que ele não sabia, quando foi ao encontro da Rosalina no Brasil: passa numa estrada com a Rosalina, estrada com controle de velocidade e apanhou várias multas por excesso de velocidade. Disse que levou a Rosalina a um hotel: “Não, aqui não entrou ninguém”, foi o que disseram. A Rosalina ia ter com uma amiga. Descreveu a amiga, Gisele de nome, fez-se o retrato robô. Não havia amiga Gisele. Só mentiras. Então é esperto ou burro?
Pobres dos burros tão meigos, que servem para apodos rebaixantes e imerecidos para eles, nas nossas fábulas de trazer por casa!

domingo, 20 de novembro de 2011

Histórias dos mil e um dias

É de Fernando Dacosta o texto que segue, com o título «Seres decentes», e em epígrafe a informação «Quando cumpria o seu segundo mandato, Ramalho Eanes viu ser-lhe apresentada pelo Governo uma lei especialmente congeminada contra si.»

«O texto impedia que o vencimento do Chefe do Estado fosse «acumulado com quaisquer pensões de reforma ou de sobrevivência» públicas que viesse a receber.
Sem hesitar, o visado promulgou-o, impedindo-se de auferir a aposentação de militar para a qual descontara durante toda a carreira. O desconforto de tamanha injustiça levou-o, mais tarde, a entregar o caso aos tribunais que, há pouco, se pronunciaram a seu favor. Como consequência, foram-lhe disponibilizadas as importâncias não pagas durante catorze anos, com retroactivos, num total de um milhão e trezentos mil euros.
Sem de novo hesitar, o beneficiado decidiu, porém, prescindir do benefício, que o não era pois tratava-se do cumprimento de direitos escamoteados - e não aceitou o dinheiro. Num país dobrado à pedincha, ao suborno, à corrupção, ao embuste, à traficância, à ganância, Ramalho Eanes ergueu-se e, altivo, desferiu uma esplendorosa bofetada de luva branca no videirismo, no arranjismo que o imergem, nos imergem por todos os lados.
As pessoas de bem logo o olharam empolgadas: o seu gesto era-lhes uma luz de conforto, de ânimo em altura de extrema pungência cívica, de dolorosíssimo abandono social. Antes dele só Natália Correia havia tido comportamento afim, quando se negou a subscrever um pedido de pensão por mérito intelectual que a secretaria da Cultura (sob a responsabilidade de Pedro Santana Lopes) acordara, ante a difícil situação económica da escritora, atribuir-lhe. «Não, não peço. Se o Estado português entender que a mereço», justificar-se-ia, «agradeço-a e aceito-a. Mas pedi-la, não. Nunca!»
O silêncio caído sobre o gesto de Eanes (deveria, pelo seu simbolismo, ter aberto telejornais e primeiras páginas de periódicos) explica-se pela nossa recalcada má consciência que não suporta, de tão hipócrita, o espelho de semelhantes comportamentos.
“A política tem de ser feita respeitando uma moral, a moral da responsabilidade e, se possível, a moral da convicção”, dirá. Torna-se indispensável “preservar alguns dos valores de outrora, das utopias de outrora”. Quem o conhece não se surpreende com a sua decisão, pois as questões da honra, da integridade, foram-lhe sempre inamovíveis. Por elas, solitário e inteiro, se empenha, se joga, se acrescenta - acrescentando os outros.
“Senti a marginalização e tentei viver”, confidenciará, “fora dela. Reagi como tímido, liderando”.
O acto do antigo Presidente (« cujo carácter e probidade sobrelevam a calamidade moral que por aí se tornou comum», como escreveu numa das suas notáveis crónicas Baptista-Bastos) ganha repercussões salvíficas da nossa corrompida, pervertida ética. Com a sua atitude, Eanes (que recusara já o bastão de Marechal) preservou um nível de dignidade decisivo para continuarmos a respeitar-nos, a acreditar-nos - condição imprescindível ao futuro dos que persistem em ser decentes.»
Fernando Dacosta

O texto de Fernando Dacosta não necessita de comentário. Também julgo o General Eanes uma figura de assinalar, pela seriedade e inteireza que revelou durante as suas chefias. Outros referem ainda hoje Sá Carneiro, como figura de igual hombridade, sendo ambos, para mais, amantes do seu país.
O certo é que tiveram a sorte de viver num período de malogros económicos e afundamento social, causados pelos estouvamentos de quem se julgava no direito de governar, sem para isso ter luzes, apesar de terem cravos. Como inteligentes e dignos, lançaram-se na tentativa de endireitar o que fora entortado pelos estouvados da botoeira colorida.
Entretanto, outros ventos de apetecível aparente bonança nos chegaram, com o abraço messiânico das novas políticas europeias. O deslumbramento foi geral, o mergulho sôfrego nos sacos azuis e quem sabe de quantas mais cores, a ninguém isentou de quantos a ele tiveram acesso – e foi o povo todo, que foi convidado a poisar os instrumentos da sua sobrevivência, além de outras classes sociais que receberam aumentos com maior ou menor critério, como chantagem para encobrir o escoamento que se ia fazendo em obras públicas, sim, e sociais também, mas igualmente nos bolsos das muitas tramas que se iam urdindo abjectamente pela posse de dinheiros que não obtivéramos pelo nosso próprio esforço.
E assim se criaram leis para proteger os “copains”, assim se criou uma Justiça também flexível aos valores da sofreguidão em curso.
E um ministro veio que, na necessidade de adquirir auxílio financeiro de um país grande e rico a quem amoravelmente chamava irmão, se não importou de ajavardar a sua língua, em nota de desprezo pelos próprios filhos desse seu país, nesse gesto de cobardia secundado pelo presidente do mesmo país.
O ministro de agora também anda em transacções, para saldar as contas, com desprezo igual pelos filhos do seu país, que nunca contaram para nada, a não ser para pagar as contas dos débitos permanentes da má governação. Entre os saldos, conta-se a RTP que vai ser privatizada.
Essa privatização significará talvez a extinção das coisas boas que a RTP fez, entre as quais o seu Canal 11, de Memórias. Por isso aproveito este dia escutando os fados do Canal 11, já na saudade de os não voltar a ver e a escutar.
Só sei que não sei como procederiam Francisco Sá Carneiro ou o General Ramalho Eanes, caso tivessem pertencido a este escol dos sortudos pós-1986.
Será que sairiam incólumes da atracção dos cantos dessas sereias promissoras que tão insinuantemente envolveram os seus continuadores?

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

A importância de se ter quiromante

Óscar Wilde não se limitou a escrever delicadas peças de teatro ou um romance – “O Retrato de Dorian Gray” - que, a par de uma humorística denúncia de caracteres colhidos na aristocrática e convencional sociedade vitoriana, nos dão igualmente retrato de ambições e mesmo perversões de comportamentos, embora sempre dentro de uma atmosfera de requinte, que cabe na preocupação estética, segundo lema do escritor dandy que foi Óscar Wilde.
Uma das originalidades que nele se colhe é um certo carácter de suspense que preside quer à acção narrativa quer mesmo à acção dramática, envoltas em progressiva atmosfera de mistério, em cenas por vezes de grande picardia, apesar do sentimento de tragédia que lhes está inerente.
O conto “O Crime de Lorde Arthur Savile” gira à volta de um crime previsto, durante uma recepção elegante de Lady Windermere - com ministros condecorados e damas bem vestidas e outros requisitos sociais e culturais - por um quiromante – o senhor Podgers – presente na assistência, como amigo da lady Windermere - o qual, depois de empalidecer ao pegar na mão de Lorde Arthur Savile, se recusa inicialmente a declarar-lhe o futuro visionado, produzindo naquele uma tempestade de receosas emoções. Instado posteriormente, e sob o efeito deslumbrado de ampla oferta de dinheiro, informa o seu consulente horrorizado de que se trata da prática de um homicídio, o futuro para ele previsto.
A trama do conto é breve, embora bem condimentada de pormenores, inicialmente centrada no descritivo dos pensamentos aterrorizados de Lorde Arthur pelas ruas sombrias de Londres, durante o seu nocturno passeio nervoso, ao sair do palacete de Lady Windermere.
O terceiro capítulo mostra-nos um Arthur amante apaixonado da jovem e doce Sybil Merton, consciente dos seus deveres de a não sujeitar ao vilipêndio de se casar com um assassino em potência. É necessário preparar de imediato o seu homicídio, e protelar o casamento até se esfumarem os resíduos de suspeitas possíveis sobre a sua participação nele. Após a lista cuidadosamente preparada sobre as aptidões de amigos e familiares para vítimas de homicídio, tomba a sua escolha sobre uma bondosa velhinha sua prima – Lady Clementina. a quem oferece, em visita protocolar, após prévio estudo consciencioso sobre venenos, uma linda caixa com uma cápsula envenenada, remédio americano de efeito seguro no tratamento das crises de estômago que frequentemente a atacavam. Falam de banalidades sociais, a velhinha deslumbra-se com a pílula em forma de gentil bombom, e com a delicadeza da oferta, Arthur impede-a de a tomar de imediato mas insta para que se não esqueça de o fazer na próxima crise de azia. Procura amoravelmente Sybil, amontoando razões de obstáculo a um casamento imediato. Parte para Veneza no dia seguinte.
É em Veneza, onde se diverte em caçadas e passeios de Gôndola com um irmão, que recebe a notícia da morte de Lady Clementina. Volta ao hotel onde três cartas o esperam, a de Sybil descrevendo a morte da Lady Clem, e a da mãe e do advogado, explicando a herança da casa, que lhe deixara a senhora. Regressa para junto de Sybil, reatam a promessa de casamento, e em visita à casa herdada, Sybil encontra a caixinha com o bombom. Lorde Arthur empalidece de desespero, e atira para o fogo o bombom. A morte da Lady Clem não resultara, pois, do seu homicídio, tudo tinha que ser refeito.
Capítulo V, novo adiamento do casamento, com as naturais consequências da cólera da mãe de Sybil, que já mandara fazer o vestido de noiva e aconselha a filha a desfazer o noivado, imposição a que a filha não obedece. Abatimento inicial de Lorde Arthur, cujo bom senso afinal se impõe, na busca de novo homicídio, por amor de Sybil.
Nova procura de vítima, é escolhido um seu tio, deão de Chichester, coleccionador de relógios, bom pretexto para a hipótese de um explosivo telecomandado já que o veneno se mostrara inócuo. Busca de personagens para lhe resolver secretamente o problema, novas cenas caricatas, nova tentativa abortada.
“Tinha dado o seu melhor para cometer o homicídio mas falhara em ambas as ocasiões, apesar de não ter culpa por estes falhanços. Tentou cumprir o seu dever, mas parecia-lhe que o destino o traía. Estava esmagado pelo sentimento da esterilidade das boas intenções, da inutilidade dos esforços por uma boa acção.”
Jantou no clube, com outros jovens elegantes, que abandonou impaciente, alta noite. Passeio desesperado pelo cais do Tamisa, numa das pontes encontra um homem debruçado que reconheceu como o seu quiromante, o senhor Podgers. Sem hesitar, agarra-o pelas pernas e atira-o ao rio.
A informação dos jornais dá conta dum suicídio, o corpo do sinistrado aparecera em Greenwich, o casamento de Lorde Arthur Savile com Sybil Merton não se fez esperar com pompa e circunstância, Arthur Savile merecera a sua felicidade.
Vem o conto a propósito dos crimes que por cá se cometem, decerto que programados pelos destinos dos criminosos, com consulta prévia de quiromantes, ou bruxas, ou astrólogos, já que as pitonisas e os Tirésias há muito que desapareceram do nosso convívio. Também o estudo ajuda, nesses casos, de mistura com alguns amigos.
Na sociedade actual, são mesmo esses os felizes, pois que o coro das lamentações cabe mais aos sem destino prometido, por falta de posses para consultar os visionários e proceder de acordo.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

“O Soldado Prático”, retrato das nossas práticas

Já o Soldado de “O Soldado Prático” de Diogo de Couto se queixava de desmandos que aconteciam no Reino e na Índia, tal como os militares de hoje, que fizeram o 25 de Abril, se queixam dos desmandos que neste Reino lhes acontecem, ignorados os seus feitos de defesa territorial anterior. De modo que podemos dizer que sempre o nosso país foi palco de queixas, de furtos, de sonegações, e que sempre existiu cá quem apontasse isso.
O próprio original de “O Soldado Prático” de Diogo de Couto lhe fora furtado e, por cópias que dele tinha, pôde refazê-lo, por alturas de 1610.
Trata-se de um diálogo entre um Soldado sexagenário, experiente, (como significado de “prático”), um Fidalgo, ex-governador da Índia e um Despachador, (ou secretário do Rei).
Segundo Rodrigo Lapa, “A experiência dos negócios, as amarguras pessoais, a visão pavorosa da decadência dão um calor, uma violência patética à narração”, tornando a obra “O Soldado Prático” “dos livros mais honrados da literatura portuguesa”.


Não sei se as reivindicações dos militares grevistas de hoje assentam em idênticas razões que as deste Soldado rezingão. Transcrevo alguns dos seus conceitos que apontam as particularidades milenares de um povo sôfrego mas espezinhado sempre nos seus direitos, e cujos “responsáveis pela espantosa decadência do Império”, ainda segundo expressão de Rodrigues Lapa, têm à cabeça o próprio Rei.
É da Cena I da I Parte que extraio alguns passos:

Apresenta-se o Soldado diante do Fidalgo e do Despachador:
“Sou tão só neste Reino que não tenho coisa a que me possa arrimar que a estes papéis que aqui trago dos muitos e muitos serviços que nas partes da Índia tenho feitos, ornamentados e esmaltados com o sangue deste corpo, que espargi pela lei e pelo rei, de que me não tenho arrependido…”
O Fidalgo o acolhe com simpatia e promessas na boa vontade do Rei, o Desembargador o aponta como diferente de outros queixosos que “representam suas coisas com aquele ímpeto e furor, como se estivesse pelejando com os inimigos; e eu, em vez de os ouvir e responder, estou com os olhos buscando algum lugar onde me esconda de suas cóleras.”
Na realidade, o Soldado, com sendo crítico, não deixa de ser letrado, socorrendo-se mesmo de vastidão de autores clássicos para ilustrar as suas duras experiências, o que faz dele a voz do narrador Diogo de Couto, que foi companheiro e amigo de Camões nas suas andanças pela Índia.
Trata-se, assim, de um livro – «Diálogo do Soldado Prático que trata dos enganos e desenganos da Índia» - dividido em três partes, cada uma seguida de um argumento em síntese, sobre a localização espácio-temporal dos diálogos entre os três intervenientes (casa do Despachador, três dias sucessivos) e com número variável de cenas, respectivamente 10, 6 e 4.

Conta o Soldado a sua revolta contra os despachadores, lentos nos despachos:


“… Porque assaz de bem remediado parte um soldado da Índia, que pode sustentar-se nesta corte de umas naus a outras, para se poder tornar; e se vir que lhe respondem devagar, não sente mor desesperação que lembrar-se que está em terra onde não há remédio; e que o que ajuntou por seus amigos para vir requerer, parte se lhe foi na Casa da Índia, pelos excessos dos contratadores, que até das camisas que levam vestidas lhe tomam direitos…” “e que não vê donde se possa valer, e que ou será forçado morrer de fome neste Reino, ou deixar tudo e tornar-se para a Índia sem ser respondido: o que se tem por tamanha infâmia …..”


Hoje culpamos a burocracia como responsável por tantos desses atrasos na resolução dos despachos ou outros quaisquer ofícios, acrescentando-lhe a falta de competência, em paralelo, em certos casos, com o recurso à cunha e a luvas, que nos distinguem, na mediania das nossas aspirações e brio profissionais, no exercício das várias funções, condenando o país à ignomínia do seu contínuo atraso. Um olhar sobre os outros países europeus dá-nos uma constante imagem da nossa pobreza, que é sobretudo do foro espiritual.

Da ambição das riquezas – da Índia, neste caso – tão do nosso quotidiano, embora de diferente proveniência, dá igualmente conta o Soldado:
“… Estando eu um dia em um convento de religiosos, veio um fidalgo, que ia entrar em uma das melhores fortalezas da Índia, a despedir-se deles; e na conversação, em que eu me achei, lhe disse um religioso daqueles, estas palavras: -Senhor, lembre-vos que ides entrar na mercê que el-rei vos fez por vossos serviços, e que nela podeis ganhar o Céu, como eu neste hábito, com estas coisas. Contentai-vos com o que é vosso, deixai viver os pobres, e fazei justiça. Ao que lhe respondeu o fidalgo: -Padre meu, eu hei-de fazer o que os outros capitães fizeram; se eles foram ao Inferno, lá lhes hei-de ir ser companheiro; porque eu não vou à minha fortaleza, senão para vir rico …”

Quando vemos a que subtileza de crimes pode conduzir a ambição nestes nossos tempos de escândalos contínuos, e quão longe se está igualmente hoje do receio do Inferno, só que com a exteriorização de uma virtude imaculada, só podemos admirar a argúcia de Diogo de Couto no desvendar de caracteres de tão ampla projecção intemporal.

Também da Justiça nos dá um parecer de uma actualidade firme. Limito-me a esclarecer com esta simples frase da longa diatribe do Soldado:
“… Nunca se procede contra os criminosos, e sempre se livram, e Deus sabe como."


Deus sabe como, mas a maioria de nós fica a ver navios, ainda que não da Índia.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Um grande golpista

Ouviu-se hoje o Otelo Saraiva de Carvalho afirmar da forma desenxovalhada muito sua – de uma insensatez atropelada - que as manifestações dos militares não devem ser colectivas, por isso ele não vai à do próximo sábado, acha que o que pode verdadeiramente realçar a importância dos militares são os golpes de Estado para derrubar Governo, mesmo que, como já não estamos no tempo dos cravos vermelhos, mas sim pouco distantes do dia de finados, os militares tenham que levar outras flores na botoeira, ou mesmo nos canos das armas, crisântemos que sejam.
Só não percebi bem a exclusão da designação de colectivos para o caso dos golpes de Estado, que implicam sempre, acho eu, acompanhamento suficiente para não abortarem, embora os abortos até já sejam despenalizados nos dias de hoje, e isso se deve às aquisições libertárias da nossa revolução de 74, feita nas ruas com tropas e cravos e povo radiosamente exaltado. Julgo mesmo que o Otelo se esqueceu dessa característica de ajuntamento e por isso reclama outra revolução de tipo golpista, talvez para alcançar uma graduação mais concomitante com a sua acção primeira, que segundo se disse, partiu do seu cérebro.
O que é de supor é que ele se encontre meio frustrado por não o chamarem para o núcleo dos governantes, pois para todos os efeitos até foi chamado então “o cérebro do 25 de Abril” e ficou-se apenas pelo cargo de major, por muito cérebro que tivesse sido, sem poder comer à mesma mesa dos outros que ascenderam ao generalato, injustiças e ofensas que jamais se podem perdoar e por isso o major Otelo quer executar outro golpe, por muito que a hemorragia dele – do golpe – proveniente, já não seja tão visível como foi no primeiro, por o país se encontrar agora exangue, como provam os diversos cortes nas economias nacionais.
Mas vejo, com tudo isto, que afinal os povos são muito parecidos. Assim, os líbios, que tendo feito a revolução lá na Líbia, sem sequer poupar o Kadhafi, vão todos recolher às suas terras, por ordem dos novos dirigentes desagradecidos.
É por isso que o nosso Otelo, escamado com a ingratidão do seu povo, anda a idealizar outro golpe, para ver se lhe dão o relevo governativo que merece, pois nem se lhe daria furar cabeças – as dos inimigos da revolução e as dos seus próprios inimigos, por muito poucos que ele tenha, como provam as entrevistas que ainda lhe fazem os jornalistas televisivos, encantados com o seu ar desenxovalhado de idiota impune.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

O quarto Reich

Por e-mail me chegou o texto de esclarecimento sobre a panorâmica europeia, de poderio centrado uma vez mais numa Alemanha ponderosa, como já o fizera antes, desta vez não com armas de guerra, mas igualmente mortíferas, pela destruição de povos, com base numa prévia liberalidade para com eles, chamariz de atropelos e desequilíbrios económicos, morais e sociais, seguindo uma astuciosa estratégia de “descapitalizar os Estados periféricos, provocando o seu endividamento, atacando-os, depois, pela asfixia dos juros da dívida, de forma a passar a controlar, por preços de saldo, empresas estatais estratégicas, através de privatizações forçadas.”
É o que estamos a passar, cordeiros bebendo a água do curso inferior do rio, contra os ditames ponderosos das maquinações do lobo, que avidamente nos irá esfolando e desfazendo com as suas dentuças afiadas, chamando momentaneamente para o seu banquete outros bichos do seu compadrio interesseiro, raposas calculistas e falsamente humanizadas, aparentemente ledoras da cartilha humanista, em sorrisos de conivência com uns, de ironia com outros, de perfídia com todos.
Um texto para reflectirmos. Para ponderarmos.


«A inflamada declaração de Angela Merkel, numa entrevista à televisão pública alemã, ARD, em que sugere a perda de soberania para os países incumpridores das metas orçamentais, bem como a revelação sobre o papel da célebre família alemã Quandt, durante o Terceiro Reich, ligam-se, como peças de puzzle, a uma cadeia de coincidências inquietantes. Gunther Quandt foi, nos anos 40, o patriarca de uma família que ainda hoje controla a BMW e gere uma fortuna de 20 mil milhões de euros. Compagnon de route de Hitler, filiado no partido Nazi, relacionado com Joseph Goebbels, Quandt beneficiou, como quase todos os barões da pesada indústria alemã, de mão-de-obra escrava, recrutada entre judeus, polacos, checos, húngaros, russos, mas também franceses e belgas. Depois da guerra, um seu filho, Herbert, também envolvido com Hitler, salvou a BMW da insolvência, tornando-se, no final dos anos 50, uma das grandes figuras do milagre económico alemão. Esta investigação, que iliba a BMW mas não o antigo chefe do clã Quandt, pode ser a abertura de uma verdadeira caixa de Pandora. Afinal, o poderio da indústria alemã assentaria directamente num sistema bélico baseado na escravatura, na pilhagem e no massacre. E os seus beneficiários nunca teriam sido punidos, nem os seus empórios desmantelados. As discussões do pós-Guerra, incluíam, para alguns estrategas, a desindustrialização pura e simples da Alemanha - algo que o Plano Marshal, as necessidades da Guerra Fria e os fundadores da Comunidade Económica Europeia evitaram. Assim, o poderio teutónico manteve-se como motor da Europa. Gunther e Herbert Quandt foram protagonistas deste desfecho.
Esta história invoca um romance recente de um jornalista e escritor de origem britânica, a viver na Hungria, intitulado "O protocolo Budapeste". No livro, Adam Lebor ficciona sobre um suposto directório alemão, que teria como missão restabelecer o domínio da Alemanha, não pela força das armas, mas da economia. Um dos passos fulcrais seria o da criação de uma moeda única que obrigasse os países a submeterem-se a uma ditadura orçamental imposta desde Berlim. O outro, descapitalizar os Estados periféricos, provocar o seu endividamento, atacando-os, depois, pela asfixia dos juros da dívida, de forma a passar a controlar, por preços de saldo, empresas estatais estratégicas, através de privatizações forçadas. Para isso, o directório faria eleger governos dóceis em toda a Europa, munindo-se de políticos-fantoche em cargos decisivos em Bruxelas - presidência da Comissão e, finalmente, presidência da União Europeia. Adam Lebor não é português - nem a narração da sua trama se desenvolve cá. Mas os pontos de contacto com a realidade, tão eloquentemente avivada pelas declarações de Merkel, são irresistíveis. Aliás, "não é muito inteligente imaginar que numa casa tão apinhada como a Europa, uma comunidade de povos seja capaz de manter diferentes sistemas legais e diferentes conceitos legais durante muito tempo." Quem disse isto foi Adolf Hitler. A pax germânica seria o destino de "um continente em paz, livre das suas barreiras e obstáculos, onde a história e a geografia se encontram, finalmente, reconciliadas " - palavras de Giscard d'Estaing, redactor do projecto de Constituição europeia. É um facto que a Europa aparenta estar em paz. Mas a guerra pode ter já recomeçado.»

Temos que pagar a dívida, acham os governantes cumpridores. Embora os sindicatos recusem, adeptos do regabofe, raposas astuciosas no nosso deserto de cordeirinhos, fingindo o seu amor por estes, guiando-os amoravelmente para a bocarra do lobo ponderoso.
Porque a terceira guerra já começou. Por meio de abraços cínicos.

Um texto com nota vinte

Mais um que me chegou por e-mail, com o seguinte comentário:




«Sabes que Jesus deixou de ensinar? Vê porquê.»

«Naquele tempo, Jesus subiu ao monte seguido pela multidão e, sentado sobre uma grande pedra, deixou que os seus discípulos e seguidores se aproximassem. Depois, tomando a palavra, ensinou-os, dizendo:
Em verdade vos digo,
-Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus. -Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados. -Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles...
Pedro interrompeu: - Temos que aprender isso de cor?
André disse: - Temos que copiá-lo para o papiro?
Simão perguntou: - Vamos ter teste sobre isso?
Tiago, o Menor queixou-se: - O Tiago, o Maior está sentado à minha frente, não vejo nada!
Tiago, o Maior gritou: - Cala-te queixinhas!
Filipe lamentou-se: - Esqueci-me do papiro-diário.
Bartolomeu quis saber: - Temos de tirar apontamentos?
João levantou a mão: - Posso ir à casa de banho?
Judas Iscariotes exclamou: (Judas Iscariotes era mesmo malvado, com retenção repetida e vindo de outro Mestre) - Para que é que serve isto tudo?
Tomé inquietou-se: - Há fórmulas? Vamos resolver problemas?
Judas Tadeu reclamou: - Podemos ao menos usar o ábaco?
Mateus queixou-se: - Eu não entendi nada... ninguém entendeu nada!
Um dos fariseus presentes, que nunca tinha estado diante de uma multidão nem ensinado nada, tomou a palavra e dirigiu-se a Ele, dizendo:
Onde está a tua planificação? Qual é a nomenclatura do teu plano de aula nesta intervenção didáctica mediatizada? E a avaliação diagnóstica? E a avaliação institucional? Quais são as tuas expectativas de sucesso? Tens a abordagem da área em forma globalizada, de modo a permitir o acesso à significação dos contextos, tendo em conta a bipolaridade da transmissão? Quais são as tuas estratégias conducentes à recuperação dos conhecimentos prévios? Respondem estes aos interesses e necessidades do grupo de modo a assegurar a significatividade do processo de ensino-aprendizagem? Incluíste actividades integradoras com fundamento epistemológico produtivo? E os espaços alternativos das problemáticas curriculares gerais? Propiciaste espaços de encontro para a coordenação de acções transversais e longitudinais que fomentem os vínculos operativos e cooperativos das áreas concomitantes? Quais são os conteúdos conceptuais, processuais e atitudinais que respondem aos fundamentos lógico, praxeológico e metodológico constituídos pelos núcleos generativos disciplinares, transdisciplinares, interdisciplinares e metadisciplinares?
Caifás, o pior de todos os fariseus, disse a Jesus:
- Quero ver as avaliações do primeiro, segundo e terceiro períodos e reservo-me o direito de, no final, aumentar as notas dos teus discípulos, para que ao Rei não lhe falhem as previsões de um ensino de qualidade e não se lhe estraguem as estatísticas do sucesso. Serás notificado em devido tempo pela via mais adequada. E vê lá se reprovas alguém! Lembra-te que ainda não és titular e não há quadros de nomeação definitiva!
... E Jesus pediu a reforma antecipada aos trinta e três anos...
A continuação DE BOM ANO LECTIVO»

O texto vale por si, em toda a sua explosão de humor e graça, bem documentado nos discursos bíblicos do Novo Testamento com aplicação ao contexto actual, com os discípulos protestando quais criancinhas desleixadas, os fariseus com a sua carga verbal tão empolada como vazia, bem expressiva da arrogância intimidatória das ocas imposições ministeriais, que sempre julgáramos que um Nuno Crato, perspicaz e tão impaciente contra os absurdos pretensiosismos retóricos como os professores alvo dessas imbecilidades linguísticas de uma falsidade demente, iria imediatamente destruir, a favor do bom senso e da sanidade mental de um país onde, por este texto, se vê que nem todos somos idiotas.
Um texto que apoio, com um Bravo ao professor que o escreveu, aos professores cujos protestos mereceram o engraçado e corajoso texto, a todos esses que, ao rirem da desgraça, no afundamento de propostas de avaliação que implicam nota zero para os forjadores de tais propostas obtusas e do ministério que as impôs, poderão contribuir para, pelo menos, chamar a atenção para tão violenta esquizofrenia nacional de pobreza espiritual irremediável.
Um texto que merece ser difundido em todos os jornais do nosso país, e afixado em todas as escolas, para ser lido por todos os professores e alunos.
No Ministério da Educação igualmente afixado. Em letras maiúsculas, por conta da cegueira.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Quem ensinou quem?

Um e-mail, parece que já não muito recente, significativo de um poderoso retrato de um país a saque.
Resta perguntar: Quem nasceu primeiro: a galinha ou o ovo? Foram os governantes que iniciaram o processo ou aqueles provieram de uma “massa” fraudulenta uniforme que permitiu o seu surgimento, em círculo vicioso para sempre inultrapassável por razões temperamentais específicas?
É certo que o Tribunal de Contas só teve dúvidas e apontou-as, segundo o e-mail, mas será que já foi esclarecido? Será que foram lapsos por malandrice? Será que pertencem à rede da corrupção que nos envolve?
Será que o novo Governo vai deixar no silêncio tais casos gritantes? Será que não vai incitar a magistratura a seguir a via da verdadeira Justiça, que implica isenção, eficiência, honestidade?
Será que é essa a estrada cheia de desvios que desejamos para os nossos sucessores?
Será que o sangue da vergonha já só acode às faces dos embriagados?
Dizem que a esperança é a última coisa a desaparecer em nós.
Assim seja! Amen!

Eis o e-mail recebido:

«Agora com o FMI é que vamos ver os "podres" a aparecer e a exalar mau cheiro...Isto foi tirado do Tribunal de Contas... Será por isso que nos estão a obrigar a apertar o cinto? Fica-se sem palavras!


AQUI ESTÃO ALGUNS EXEMPLOS DE DÚVIDAS QUE O TRIBUNAL DE CONTAS ENCONTROU NAS DESPESAS PÚBLICAS...


1. ADMINISTRAÇÃO REGIONAL DE SAÚDE DO ALENTEJO, I. P.
Aquisição de 1 armário persiana; 2 mesas de computador; 3 cadeiras c/rodízios, braços e costas altas: 97.560,00 €
Eu não sei a quanto está o metro cúbico de material de escritório mas ou estes armários/mesas/cadeiras são de ouro sólido ou então não estou a ver onde é que 6 peças de mobiliário de escritório custam quase 100 000€. Alguém me elucida sobre esta questão?


2. MATOSINHOS HABIT - MH
Reparação de porta de entrada do edifício: 142.320,00 €
Alguém sabe de que é feita esta porta que custa mais do que uma casa?


3. UNIVERSIDADE DO ALGARVE - ESC. SUP. TECNOLOGIA - PROJECTO TEMPUS
Viagem aérea Faro/Zagreb e regresso a Faro, para 1 pessoa no período de 3 a 6 de Dezembro de 2008: 33.745,00 €
Segundo o site da TAP a viagem mais cara que se encontra entre Faro-Zagreb-Faro em classe executiva é de cerca de 1700€. Dá uma pequena diferença de 32 000 €. Como é que é possível???


4. MUNICÍPIO DE LAGOA
6 Kit de mala Piaggio Fly para as motorizadas do sector de águas: 106.596,00 €
Pelo vistos fazer uma "Reforma de Montada" nas motorizadas do Município de Lagoa fica algo para o caro!


5. MUNICÍPIO DE ÍLHAVO
Fornecimento de 3 Computadores, 1 impressora de talões, 9 auscultadores, 2 leitores ópticos: 380.666,00 €
Estes computadores devem ser mesmo especiais para terem custado cerca de 100 000€ cada... Já para não falar nos restantes acessórios.


6. MUNICÍPIO DE LAGOA
Aquisição de fardamento para a fiscalização municipal: 391.970,00 €
Eu não sei o que a Polícia Municipal de Lagoa veste, mas pelos vistos deve ser Alta Costura.


7. CÂMARA MUNICIPAL DE LOURES
VINHO TINTO E BRANCO: 652.300,00 €
Alguém me explica porque é que a Câmara Municipal de Loures precisa de mais de meio milhão de Euros em Vinho Tinto e Branco????


8. MUNICIPIO DE VALE DE CAMBRA
AQUISIÇÃO DE VIATURA LIGEIRO DE MERCADORIAS: 1.236.000,00 €
Neste contrato ficamos a saber que uma viatura ligeira de mercadorias da Renault custa cerca de 1 milhão de Euros. Impressionante...


9. CÂMARA MUNICIPAL DE SINES
Aluguer de tenda para inauguração do Museu do Castelo de Sines: 1.236.500,00 €
É interessante perceber que uma tenda custa mais ou menos o mesmo que um ligeiro de mercadorias da Renault e muito mais que uma boa casa...
E eu que estava a ser tão injusto com o município de Vale de Cambra...


10. MUNICÍPIO DE VALE DE CAMBRA
AQUISIÇÃO DE VIATURA DE 16 LUGARES PARA TRANSPORTE DE CRIANÇAS: 2.922.000,00 €
E mais uma pérola do Município de Vale de Cambra: uma viatura de 16 lugares para transportar crianças custa cerca de 3 milhões de Euros. Upsss, outra vez o município de Vale de Cambra...


11. MUNICÍPIO DE BEJA
Fornecimento de 1 fotocopiadora, "Multifuncional do tipo IRC3080I", para a Divisão de Obras Municipais: 6.572.983,00 €
Este contrato público é um dos mais vergonhosos que se encontra neste site. Uma fotocopiadora que custa normalmente 7,698.42€ foi comprada por mais de 6,5 milhões de Euros. E ninguém vai preso por porcarias como esta?

COMO É POSSÍVEL NÃO ESTARMOS EM CRISE? COMO DIZ PASSOS COELHO, É DIFÍCIL CORTAR NAS DESPESAS PÚBLICAS... NOTA-SE... ACABÁMOS DE VER ALGUNS EXEMPLOS...»

As parvoiçadas da nossa deseducação

Os dois artigos que seguem, de dois professores, chegaram-me por e-mail. Traduzem experiências vividas, gritos de alma de quem se afunda e vê afundar-se toda uma nação, com as deficientes e mal esclarecidas políticas de Educação que, acrescentadas de uma há muito acentuada deficiência de educação familiar, tornam o ensino português uma pobre forja de indisciplina, desatenção, desvairamento na inadaptação a princípios de exigência e responsabilização, desinteresse pelo saber, apesar dos meios que as tecnologias poderiam proporcionar com o mundo de informação de que dispõem, mas que são causa, a maior parte das vezes, da fuga, pelo excesso de lúdico que proporcionam, à concentração do espírito, à inapetência pelo trabalho mental, à dispersão por campos de futilidade, quando não de desvio, de violência, de desregramento de que as nossas escolas são palco.
Escolas que já não são escolas mas agrupamentos escolares, mistura desordenada de criaturas de idade vária, espaços de ruído, de violência, de agressão, onde, definitivamente, não é possível um ensino eficaz, em “contentores”, forjados à pressa, a fazer de salas, onde a água da chuva obriga ao afastamento das mesas e cadeiras e o frio do inverno vai penetrar em tradição do nosso envilecimento.
O Governo fecha os olhos, incapaz de soluções, num ensino cada vez mais farfalhudo de monstruosas reuniões e burocracias forjadas no governo anterior, destruidor de energias, protelando as esperadas regras de imposição de disciplina, fundamentais dentro de honestos princípios de trabalho eficaz.
O artigo de Manuel António Pina – «O “essencial” e é um pau» - não me parece, todavia, tão fidedigno assim, quando ouço, por exemplo, que o estudo da gramática se faz por um chorrilho monstruoso de designações lembrando a velha escolástica com os seus silogismos ostentatórios de um rebuscamento mental parolo, a exigir consulta psiquiátrica. Aí, sim, vejo a pretensão idiota de transformar os alunos e os professores em cobaias de experiências governativas ditadas pelo pretensiosismo desses “bichos-caretas” fazedores de vaidosos programas só “para inglês ver”. Com tais preciosismos, dificilmente os alunos passarão da fase do “ler, escrever e contar”, nisso estou de acordo com Manuel Pina.
O artigo de Luís Moura traduz os problemas económicos causados pela difusão dos tais Magalhães do nosso ensino de sucata, com repercussões sobre as carreiras docentes “congeladas” na sua progressão. Vê-se que a mágoa é grande, mas o efeito sobre os nossos jovens, de embrutecimento e inércia, pela obsessão lúdica e desmotivação pela aprendizagem, é superior em perversão, quanto a mim, à “paragem” temporária na carreira docente, porque com reflexos sociais de vastíssima amplitude.
Mas a não haver rápida reforma que ponha definitivamente cobro a tanta “parvoiçada”, como já diria Verney, não sairemos desta cepa torta da nossa mediocridade cada vez mais triste.

Os textos de “Opinião”:

O "essencial" e é um pau -Artigo de Manuel António Pina
«A afirmação do actual ministro da Educação de que o "princípio geral" que presidirá à "sua" reforma curricular do ensino básico e secundário é o de que "é necessário concentrar nas disciplinas essenciais" constitui todo um programa ideológico.
Deixando de lado o obsessão de todo o bicho-careta que chega a ministro da Educação em Portugal em "reformar" mais uma vez os curricula escolares, tornando o ensino num laboratório de experiências educativas e os alunos em cobaias que se usam e deitam fora na próxima "reforma", tudo com os resultados que se conhecem, a opção por um ensino público limitado a "disciplinas essenciais" segue fielmente a rota ideológica do "saber ler, escrever e contar" de Salazar.
Falta apurar o que o ministro entenderá por "essencial", mas outras medidas que tem tomado, como triplicar o valor dos cortes na Educação pública previsto no acordo com a "troika" enquanto financiava generosamente os colégios privados, levam a crer que o programa de empobrecimento anunciado por Passos Coelho é mais vasto do que parece. E que, além do empobrecimento económico das classes médias e mais desfavorecidas, está simultaneamente em curso o seu empobrecimento educativo.
Para a imensa maioria que não tem meios para pôr os filhos em colégios privados (que, no entanto, financia com os seus impostos), o "essencial" basta. Mão-de-obra menos instruída é mão-de-obra mais barata. E menos problemática.»

«E é só a Parque Escolar?» - Artigo de Luís Moura
«No consulado de Maria de Lurdes Rodrigues adjudicaram-se centenas de milhares de computadores portáteis em mais um negócio ruinoso para o estado e milionário para os operadores de telecomunicações móveis com os programas “e-escolas” e “e-escolinhas”, vulgo Magalhães. Quem pagou a factura? Coincidência ou não, imediatamente antes, os professores viram congeladas as suas progressões. Não é lícito perguntar se o dinheiro poupado em remunerações foi desviado para os Magalhães?
Garantido o direito a um computador portátil grátis, ou a preço simbólico, a cada aluno e professor, era a vez das escolas. De norte a sul, os estabelecimentos de ensino de todo o país ficaram, de repente, a abarrotar com material informático e periféricos novinhos em folha com dezenas, se não centenas de milhar de computadores, milhares de quadros interactivos e projectores de vídeo, muitos dos quais nunca foram usados e alguns nem sequer instalados até hoje. Tudo isto, mais uma parafernália de routers, cabos, ligações sem fios e quejandos.
Mau grado a torrente tecnológica, os professores tentam aceder à internet na sala de aula e a maior parte das vezes não conseguem porque o acesso é ‘wireless’ e funciona muito mal. Sabendo nós que o material informático fica obsoleto rapidamente, bem podemos concluir que, em muitos casos, o último grito da tecnologia não passa de tralha que vai acabar na sucata sem nunca ter sido usada.
Na escola onde presto serviço, uma secundária, só as casas de banho não têm projector de vídeo, tal a quantidade fornecida pelo ME. Mesmo assim, há uns quantos de reserva, uma vez que já não há salas disponíveis para os aplicar. Não sei se o mesmo se passa nas outras escolas, mas imagino.
Se em média o custo de cada computador de secretária for de 250 €, o de cada monitor 100 €, o de cada projector de vídeo for de 250 € e o de cada quadro interactivo for de 500 €, é só fazer as contas, como dizia o primeiro ministro Guterres. Este foi o (não resisto a usar um vocábulo todo modernaço) paradigma do governo ps, e não só para a educação. Onde é que poderíamos estar agora se não na bancarrota?
Por fim, cito uma frase da Ilíada de Homero, que se aplica ao primeiro ministro Passos Coelho a propósito do que ele tem dito e do que ele tem feito: «…assim falou Aquiles de pés velozes: “(…) Como os portões do Hades me é odioso aquele homem que esconde uma coisa na mente, mas diz outra.” (...)». São precisos sacrifícios para sair deste chiqueiro? Façamo-los. Mas que se diga a verdade e que ninguém fique de fora.»

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Uma página de “O Barbeiro de Sevilha”

O Conde Almaviva está postado numa rua de Sevilha, à espreita de uma rapariga – Rosina - que costuma aparecer não à janela como a nossa carochinha mas atrás da gelosia daqueles discretos tempos de predomínio masculino. Encontra Fígaro, seu antigo criado, e interroga-o sobre a sua vida, ao que Fígaro responde sobre as suas experiências de letrado, num mundo fértil em intriga – Madrid no século XVIII – em nada diferente dos espaços de intriga destes tempos, diz-se que até por cá, entre os nossos, mesmo sem corte:
Fígaro: «- Vendo em Madrid que a república das letras era a dos lobos, sempre armados uns contra os outros, e que, entregues ao desprezo aonde este risível encarniçamento os conduz, todos os insectos, os mosquitos, os primos, os críticos, os “maringouins”, os invejosos, os jornalistas, os livreiros, os censores, e tudo o que se atira à pele dos infelizes homens de letras, acabavam de destroçar e de sugar a pouca substância que lhes restava; cansado de escrever, aborrecido comigo, desgostoso dos homens, cravado de dívidas e com pouco dinheiro; por fim convencido de que o útil provento colhido na barbearia é preferível às honras vãs da caneta, deixei Madrid; e, com a minha bagagem a tiracolo, percorrendo filosoficamente as duas Castelas, a Mancha, a Estremadura, a Serra Morena, a Andaluzia; acolhido numa cidade, prisioneiro noutra, e em toda a parte superior aos acontecimentos; louvado por estes, criticado por aqueles; optimista na maré boa, suportando a maré baixa; troçando dos parvos, arrostando os maus; rindo da minha miséria e fazendo a barba a toda a gente; vedes-me enfim estabelecido em Sevilha, e prestes a servir de novo Vossa Excelência em tudo o que for do seu agrado ordenar-me.
O Conde: Quem te deu uma filosofia tão alegre?
Fígaro: O hábito da desgraça. Apresso-me a rir de tudo, com medo de ser forçado a chorar.»


Vem o texto mal a propósito de um texto de Vasco Graça Moura – “Andrajosamente Sós”, colhido no DN deste Dia dos Mortos, apelidados de Fiéis Defuntos, provavelmente os únicos a guardarem fidelidade nesta época de hipocrisias – como sugestão para um maior optimismo que cubra a visão quase direi obscena que VGM se encarrega de nos transpor, indiferente aos que vão lutando por quebrar tal malefício, aliás, de longa data previsto, até mesmo pela minha amiga e por mim que a vou carinhosamente acompanhando nas discussões sobre as desgraças nacionais, embora ultimamente nos abstenhamos mais disso, por mero derrotismo.
Alguns passos desse decisivo texto de VGM:


«Portugal deixou de ter condições morais, sociais, culturais, económicas e políticas para ser independente. É compelido a ir a reboque, a acatar o que lhe é imposto de fora, a dar o corpo ao manifesto, a arquejar sob a carga fiscal.
A população vai ficar agrupada em magotes de macambúzias criaturas à deriva. É uma gente desgovernada que perdeu toda e qualquer noção dos valores e da sua própria história, cuja ligação à língua que fala e à sua própria tradição cultural se tornou um desconchavo inqualificável, cujas qualificações não prestam para nada, cuja economia está destruída, cuja qualidade de vida, já de si escassa, se foi para não voltar. O Estado sustentava-lhe a maior parte dos vícios e agora deixa de poder fazê-lo.
« … Se as coisas chegarem a um certo extremo, o Governo não terá força para fazer acatar as medidas que anuncia.»



E depois de pontuar a falta de convicção governativa na actuação contra as forças armadas e as policiais, conclui:
«…E se houver muitas fitas nestas áreas, que ninguém tenha dúvidas: A Europa fechará a torneira de vez.»



Aponta seguidamente a pantominice de um PS dividido entre enjeitar as suas responsabilidades na crise e o seu dever de cooperação com o Governo no cumprimento das responsabilidades que partilhou relativamente às imposições da troika.



«… Os partidos radicais vociferam a torto e a direito….»


Não se lhes dá a destruição do país, nunca se lhes deu, por isso propõem greves. Com autoridade e seriedade hipócrita.



«… Entretanto, na Europa prepara-se um escanzelado federalismo financeiro da zona euro, comandado pela Alemanha, sem atender aos outros aspectos estruturantes de um sistema federal…»



Estes têm a ver com as divergências culturais, económicas, sociais, muitas vezes conflituais entre os Estados vizinhos, e, apesar da matriz cristã comum, tal não impedirá o desastre final da zona euro:
«… Será a alavanca alemã a comandar as operações, a ditar a política financeira, a política económica e a política externa, a sobrepor-se às veleidades nacionais dos Estados membros. A França voltará a encolher-se. A Inglaterra assobia para o lado. A Espanha e a Itália ficam a olhar. Até a Grécia dirá que não é… a Grécia. A história repete-se. Ficaremos andrajosamente sós. Quando a Europa puxa o autoclismo, a independência e a soberania de Portugal vão pelo cano abaixo.»



Lembrei-me do texto d’ «O Barbeiro de Sevilha» para aconselhar alegremente a todos os que atravessam crises económicas, como o Fígaro atravessou, a tornarem-se barbeiros como ele, mesmo nas nossas terras portuguesas, para colherem alguns proventos.


Mas como as navalhas de barba já não são tão necessárias hoje, ultrapassadas pelas giletes de uso individual, adopto, todavia, idêntica filosofia do Fígaro, que é talvez, a filosofia da nobre Alemanha, mandando-nos a todos, antes, cavar batatas.