quinta-feira, 28 de junho de 2012

Cabeceiras de Basto


Falei excitada na notícia que lera no DN sobre uns médicos e companhia que ganharam milhões à custa de receitas médicas de falcatrua, e logo a minha amiga atirou com ímpeto: “Cabeceiras de Basto”.

Julguei que se referia à carta que começa assim “Como eu vi correr pardaus / Por Cabeceiras de Basto”. que o nosso sisudo Sá de Miranda enviara a “António Pereira, Senhor de Basto, quando se partiu para a Corte co’a casa toda”, - o que é muito curioso pela referência toponímica, tal como a “Rua do Alecrim”, subida “a trote”, pelos negros cavalos que “a espuma veste” e incongruentemente “velozes como a peste” do nosso brincalhão Cesário Verde.

Mas a minha amiga nem se deteve a pensar na minha interrupção, de uma erudição debruçada sobre as nossas toponímias livrescas, porque retomou, após a localização no espaço minhoto:

-“Não faço ideia como se faz uma coisa desse tamanho – 50 milhões de euros de burla ao Estado! Então ninguém sabia, ninguém deu por isso? Os doentes nem sabiam que o seu nome andava lá… Acho incrível!

- Parece que também utilizaram receitas para falecidos… - disse eu, não muito segura de tal enormidade, mas admitindo que eles poderiam justificar sempre as receitas póstumas com o grau elevado de afeição por aqueles, em extremos de luta assanhada contra o infausto fim.

- A família desta gente – e é uma rede que vai de Cabeceiras de Basto a Pombal, com um décimo indivíduo como elemento de ligação entre médicos, laboratórios, armazenistas de medicamentos e não sei que mais… - que não deve saber disto, a vergonha por que têm de passar! – considerou a minha amiga, sempre preocupada com a reputação das famílias inocentes dos prevaricadores, o que atesta a sua boa formação moral, de crença nos bons costumes das famílias em geral, presa em parte ao ponto de vista do Rousseau com a sua teoria mais que batida do “Bom Selvagem” inocente, corrompido pela sociedade dos maus costumes.

Mas eu respondi que essa era mais uma das trafulhices em que somos useiros e vezeiros, e não são só aqueles que gostamos de atacar, porque mais bem sucedidos em termos quantitativos. O país dos brandos costumes não era mais do que um país de branda formação moral e espiritual, e um exemplo significativo dessa característica comportamental de embrutecimento ambicioso, podê-lo-íamos localizar no talentoso falsário Alves dos Reis, que larga escola criaria, de elementos de maior ou menor alcance, mas igualmente escapando às malhas da justiça.

Aliás, tudo isso começou com a ambição desenfreada, surgida com os Descobrimentos, que por cá espalhavam os “pardaus” de Goa, e a fuga para a cidade e para o Oriente, na mira da tal canela, como explica Sá de Miranda no breve excerto da sua Carta ao Senhor de Basto, no sentimento passadista de desilusão pela corrupção dos costumes e pelo êxodo dos campos:

«Como eu vi correr pardaus
Por Cabeceiras de Basto,
Crescerem cercas e o gasto,
Vi, por caminhos tão maus,
Tal trilha e tamanho rasto,
Logo os meus olhos ergui
À casa antiga e à torre,
E disse comigo assi:
Se Deus nos não vale aqui,
Perigoso imigo corre.
Não me temo de Castela,
Donde inda guerra não soa,
Mas temo-me de Lisboa
Que, ao cheiro desta canela,
O Reino nos despovoa.
E que algum embique e caia
(Afora vá mau agouro!)
Falar por aquela praia
Da grandeza de Cambaia,
Narsinga das torres d’ouro.
Ouves, Viriato, o estrago,
Que vai dos teus costumes?
Os leitos, mesas e os lumes,
Tudo cheira: eu óleos trago;
Vêm outros, trazem perfumes.
E ao bom trajo dos pastores
Com que saíste à peleja
Dos Romãos tão vencedores,
São mudados os louvores:
Não há quem t’haja enveja.
Entrou, há dias, peçonha
Clara pelos nossos portos,
Sem que remédio se ponha:
Uns dormentes, outros mortos,
Alguém polas ruas sonha.
Fez no começo a pobreza
Vencer os ventos e o mar,
Vencer quase a natureza:
Medo hei de novo à riqueza
Que nos venha a cativar…..»

          Pude assim provar à minha amiga que a nossa pecha de tentação pelos pardaus e afins é antiga, merecendo os reparos de um ilustre doutor em leis e poeta de talento, que iniciaria o Renascimento em Portugal, com as “riquezas literárias” que importou de Itália, de modo nenhum nisso se irmanando com o pastor Viriato da sua preferência moral, pela valentia e modéstia de primeiro lusíada que esse fora.

          Mas a minha amiga também não se dá com os jeitos dos Viriatos de surrão e cajado, além de que aprecia devidamente o caril e a canela preenchedores dos gozos gustativos de qualquer ser civilizado, o qual já nem se lembra de quem foram os primeiros importadores dessas especiarias e outras que ocupam posições privilegiadas nos supermercados do nosso progresso.

          E retomámos o tema do desfalque ao Estado por conta da burla de uns vigaristas que se utilizavam de receitas desnecessárias para obter as altas comparticipações dos Serviços Estatais de Protecção Social.

          E a minha amiga concluiu que talvez esses fossem responsáveis pela falta, nos laboratórios portugueses, de um determinado medicamento para as supra-renais do seu marido, medicamento que até já se viu obrigada a mandar vir de Espanha.

          Mas eu respondi que esse medicamento nem era dos mais rentáveis para a trupe, também não devíamos acusar tão indiscriminadamente assim. Sem provas confortáveis.


segunda-feira, 25 de junho de 2012

A coisa mais certa


Do Livro VI das Fábulas
De La Fontaine
Com o número dezanove,
Da Primeira e Segunda Partes,
Retiro uma muito conhecida,
Em verso,
Mas entre nós só em prosa
Reconhecida.
É sobre o charlatanismo
Dos pagadores de promessas
Ou mesmo, se o preferirmos,
Dos construtores de tretas,
Que, em todo o sempre,
Mostraram obra
A vender banha de cobra.
Eis, pois, em tradução,
A fábula “O Charlatão”:

«O mundo nunca teve falta de charlatães:
Esta ciência foi, em todos os tempos,
Bastante fértil em prestações,
Ora um, em teatro, o Aqueronte afrontando,
Ora outro, pela cidade espalhando
Que ultrapassa Cícero em eloquência,
Arrebatando as multidões
Com expressiva saliência,”

(Em breve aparte, eu diria,
Que, se fosse hoje em dia,
A eloquência seria
Demonstrativa do seu zelo e arte
Para uma autoprovidência
De grande importância
Para sua realização e sobrevivência.)

«Um destes últimos, digo, charlatães,
Gabava-se de ser tão bom educador
Que tornaria  qualquer palerma um doutor,
Fosse ele lapuz, rústico, ou parolo;
“Sim, senhores, um parolo, um animal, um burro:
Tragam-me um burro, um burro em duplicado,
Torná-lo-ei mestre refinado,
Portador de sotaina sem pecado.»
O Príncipe soube do assunto; mandou chamar o Declamador.
“Eu tenho – disse ele – na minha estrebaria
Um belíssimo exemplar de Rocim:
Gostaria
Que fizesses dele um orador.
-  Senhor, vós tudo podeis e tereis assim,
– logo o nosso homem respondeu com galhardia.
Deram-lhe uma certa quantia
Para, ao fim de dez anos,
Sentar o animal nos bancos
Da Assembleia ou do Tribunal;
Sem o que, ele seria
Na praça pública exposto,
Com o baraço ao pescoço,
Enforcado com limpeza
Com a retórica no dorso
E as orelhas dum asno,
Em beleza!
Um dos cortesãos lhe afirmou que, na forca,
Ele teria muito gosto em o ir ver,
Se, para enforcado,
Ele mostrasse
Um ar gracioso e uma boa presença,
E, sobretudo,
Se se lembrasse
De pregar à assistência
Um discurso onde a sua arte
Fosse revelada com pertinência
Num discurso patético, e cujo formulário,
Retórico e vário,
Servisse a certos Cíceros, vulgarmente
De ladrões apelidados.
E o outro com presteza respondeu:
“Antes do evento tão pouco decente,
Morreremos, sem falhar,
O Rei, o Burro ou eu.»

Tinha razão. Que é loucura, sem dúvida,
Contar sobre dez anos de vida.
Basta sermos uns bons copos, uns bons garfos,
Para qualquer um,
Para, como natural oferta
Da Parca,
Se poder ter como certa,
De três indivíduos, em dez anos,
Pelo menos
A morte de um.»

Eis uma fábula que nos alerta
Para o excesso de patuscada
Que o caldo verde e a sardinha
Podem representar a um ou outro governante
De compleição magrinha,
Mas que vai em frente, a falar em comer,
Por não ter mais que dizer,
E sem recear rebentar,
Se calhar por não querer retirar
O rosto do seu posto.
Outros, os mais oradores,
Charlatães, segundo a fábula,
Têm patuscadas maiores,
Comidas superiores,
Para poderem com mais força singrar
E levar sem recuar
Apesar da feroz oposição,
O navio da nação
Ora aos tombos, ora não,
Com o povo sempre à mão
Para melhor prestação,
Enquanto dura a patuscada,
Na continuação da alvorada
De Abril e mais nada.
Em dez anos ou até menos
Não teremos de cumprir
Completamente as promessas
Para o porvir.


Que a morte é coisa certa,
Nesta nossa estrada aberta




sábado, 23 de junho de 2012

Almas em festa


A minha amiga hoje só soube tecer elogios. Ainda tentei um sussurro de ralação, vistos os desaires em que somos tão peritos, mas não deu atenção, esfusiante que estava de alegria pelos casos positivos da sua recolha do dia. Só comigo é que foi parca, embora me tenha visto arrumar o carro com uma competência que a mim própria, confesso, me maravilhou, e até fiquei sentida com omissão. “Mulier sum, feminini nihil a me alienum puto”, daí que inicialmente até me mostrei um pouco enxofrada, coisa, aliás, de menor monta para uma amizade superior a questiúnculas ínfimas de pontos de vista díspares ou apelativos de mudança, na comédia habitual da vida: “ridendum castigat mores”.

Os elogios que ela teceu foram a uma tal Joana Vasconcelos que vai montar uma exposição com as suas criações feitas dos mais esquisitos materiais “em Versalhes, imagine-se! A engrenagem já é tão grande que tem uma grande quantidade de gente a trabalhar para ela. Uma exposição com um helicóptero feito de plumas!” Fiquei a saber também que ela tem um par de sapatos da Marylin Monroe e eu só me perguntei “para quê?” mas apenas intimamente, pois até não se me daria possuir os sapatinhos encarnados que a fada deu à Judy Garland/Dorothy no “Feiticeiro de Oz” para também ajudar a transformar o mundo e um bocadinho a nós próprias, tal como ela, que tinha aspirações de fuga de casa para um mundo diferente, num arco-íris que fosse, embora eu já não tenha nada a ver com isso, que o mundo é mesmo assim, e uns ou outros sapatos pouco alterem, com repercussão apenas sobre o bem-estar ou o mal-estar dos pés.
Outra portuguesa de quem a minha amiga falou foi da Carminho:
-“Está cá o José Carreras e quem canta uma das cantigas com ele, no Pavilhão Atlântico, é a Carminho, que está a cantar que é uma maravilha. Cantou fado com um cantor espanhol muito conhecido - Pablo Alborán – e está nos tops de vendas em Espanha.
Falou-se também na Yolanda, que o Herman entrevistou no sábado e que cantou a “Lágrima” da Amália e mais uns trechos de ópera, com uma voz que me maravilhou, e a minha amiga logo informou que ela poderia ir longe:
- Deu um espectáculo fabuloso no Porto, com uns acompanhantes que são um espanto, mas quando o Herman lhe perguntou como era em termos de percurso no estrangeiro, logo ela mostrou que seria difícil, para já, por não poder levar os acompanhantes com ela. Mas a mistura de fado e música clássica é uma maravilha!
Considerámos o fado como algo de muito especial e eu achei que o de Coimbra também merecia ser integrado no património cultural mundial, apesar das transformações que tomou, ou talvez por isso. Valia a pena tentar divulgá-lo no mundo.
A seguir foi a Luciana Abreu que mereceu a nossa atenção, mas a minha amiga achou que o prémio do “A sua cara não me é estranha” devia ser repartido por ela e o FF e eu concordei, adepta do “ex aequo et bono”, como no Prémio Nobel, mas concordámos na variedade de opiniões e sentenças a comandar o mundo e aceitámos a decisão com simpatia.
E assim, com tal fartote de casos de sucesso entre nós, com muitos outros que ambas conhecemos, embora mais discretos, o que não importa muito, fui arrastada para uma onda de optimismo, mesmo sem o tal arco-íris da “Dorothy”, aliás até pouco favorável à Judy Garland, coitada!

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Sem trova que preste


Murchas, foi como nos cumprimentámos ontem, a minha amiga a lembrar que lembrava o mesmo de sempre e que não tinha emenda, e eu a referir o susto provocado nessa manhã de domingo, com os dizeres da arrogância sapiente do “Eixo do Mal” a respeito da Grécia e da vitória da Syriza, a Esquerda Radical Grega, tão apoiada pelos nossos partidos da Esquerda, com o intelectual Louçã à cabeça, tão certos da sua vitória contra a “paz podre” dos partidos da “austeridade”, que já retiravam a Grécia das patas da Europa troikista, da Europa “tout court” de que ela foi cabeça – ou ventre - para a fazerem sucumbir, com os seus dracmas, sob as patas da Turquia, da Rússia, até mesmo, salvo erro, da China. Creio que foi a Clara Alves que evocou esse cenário que, confesso, me aterrorizou, na minha credulidade ignorante, que já passou por outros cenários, dos que falavam em “paz podre” referindo o salazarismo também austero, e desejando alterá-la para “guerra sã”, ou “guerra santa”, nem sei bem, porque a favor dos pobrezinhos, como se tem visto, que enriqueceram à custa da mudança.

Felizmente que eles não acertaram nas suas esclarecidas previsões e a Syriza perdeu a favor da chamada Nova Democracia que volta a pegar nas propostas troikistas da tal paz podre actual, que faz espumar de raiva os que afirmam que estamos a saque, nós, os pequenos. Eu nisso concordo, mas desejo que o nosso país consiga vencer o impasse, e a Grécia também.

Mas a minha amiga não acredita que consigamos, e eu então lembrei-lhe umas trovas antigas, embora sem “saudade louca”, nem “cantigas a bailar de boca em boca”, nem mesmo “guitarras a gemer de mão em mão”, como lhes chamaria o nosso Carlos do Carmo, que é um fadista também muito erudito e crente, ao contrário de nós, cépticas por experiência própria, tal como o Velho do Restelo.

São elas de Duarte da Gama, poeta do Cancioneiro Geral e chamam-se “Trovas às desordens que agora se costumam em Portugal”, de um conservadorismo tacanho e reaccionário, tal como o nosso, embora não tão passadista como o dele, valha a verdade, que se enraivece contra o novo-riquismo ambicioso trazido pelos descobrimentos marítimos e o envilecimento dos costumes, como agora também sentimos, sem tanta raiva contudo, por muito que o enriquecimento actual tenha provindo também de esforços, mas, apesar de tudo, menos trabalhosos do que os daquele tempo de navegações e naufrágios, o que é sempre um factor prestigiante e de modernidade, por estar assente no conceito hedonista da existência, o prazer sendo o que se leva desta vida.

Vejamos então algumas dessas 32 trovas, de uma dimensão temporal à prova de fogo:
1-“Não sei quem possa viver
Neste reino já contente,
Pois a desordem, na gente
Não quer deixar de crescer;
A qual vai tão sem medida
que se não pode sofrer:
Não há aí quem possa ter
Boa vida.

2- Uns vejo casas fazer
E falar por entre-solos (=a ocultas, ruminando os seus projectos de grandeza?)
Que creio que têm mais dolos (=apoquentações)
Do que eu tenho de comer;
Outros, guarda-roupa, quartos
Também vejo nomear,
Que já deviam d’estar
Disso fartos.

3- Outros vejo ter cadeiras
De justo e de cruzado
E chamarem-lhes de estado:
Não entendo tais maneiras.
Outros vendem a herdade
Por comprar tapeçaria,
Dos quais eu ser não queria
Na verdade
…………………………………………

13- Outros não querem verdade
Falar, com ribaldaria (=desvergonha)
Falando por senhoria
A homens sem dignidade.
Ó usura conhecida,
Tratada por tanta gente,
Porque és no mundo presente
Tão crescida?

14 - Na cobiça dos prelados
Não é já para falar,
Que em vender mais que rezar
E em comprar são ocupados.
…………………………………………..

18 – A maneira de escrever,
Que costumam nos ditados,
É chamarem já preçados (= distintos, notáveis)
A mil homens sem o ser.
E quando na baixa gente
O costume for geral,
Há-de vir a principal,
A excelente.
………………………………..

21 – O cavalo desbocado
Nunca se pode parar
Sem primeiro se cansar:
Então logo é parado.
Assim creio que faremos
Nos gastos demasiados,
E depois de bem cansados,
Pararemos.
…………………………………………..

24 – A cidade de Cartago,
Depois de ser destruída,
Fez em Roma mor estrago
Que antes de ser perdida.
Os “Romãos” desde que venceram
Foram dos vícios vencidos,
E seus louvores crescidos
Pereceram.

25 – Assim, para não perecerem
Os tão antigos louvores
Dos nossos predecessores,
Convém que nos “reprenderem”
Dos vícios e da torpeza
Em que queremos viver,
Antes de se converter
Em natureza. …………….

Não, a nossa conversa murcha, sempre “à roda”, embora antiga, não tem hoje trova que preste, de tão repetida, impecavelmente à moda.

terça-feira, 12 de junho de 2012

Bzz… Bzz…Coro das Erínias


Tempo de reler “Les Mouches”. Uma peça de teatro empolgante de Sartre, a sua primeira, aliás, escrita em 1943. Na riqueza dos referentes míticos e sua adaptação ao contexto da altura, de resistência ou de submissão à ocupação nazi, nos simbolismos dos gestos, na filosofia de responsabilização e assunção dos actos próprios – Orestes - livremente, sem necessidade de um deus omnipotente e manipulador, ou, pelo contrário, de submissão à regra imposta pela convenção - Electra.

A regra – o remorso - fora imposta em Argos pela rainha – Clitemnestra, viúva de Agamémnon, que ela assassinara, no seu regresso de Tróia, juntamente com Egisto, seu amante, como vingança por aquele ter sacrificado a filha de ambos –Ifigénia – para obter ventos favoráveis no embarque das naus para Tróia.
Uma intriga em torno, pois, de uma vingança – a de Orestes assassinando a mãe – Clitemnestra – e o padrasto Egisto, responsáveis pela morte de seu pai Agamémnon, e o entregaram com três anos a uns mercenários, e reduziram a irmã Electra a uma infeliz Gata Borralheira rancorosa. Tais crimes de assassinatos de parentes constituiriam a “maldição dos Átridas”, nome proveniente do primeiro dos seus assassinos – Atreu, pai de Agamémnon e de Menelau (este, marido da bela Helena, irmã de Clitemnestra, raptada por Páris…). O nosso Camões o cita, no episódio de Inês de Castro, LUS., III, 133:
«Bem puderas, ó Sol, da vista destes,
Teus raios apartar aquele dia,
Como da seva mesa de Tiestes
Quando os filhos por mão de Atreu comia.»

Um I Acto de 6 Cenas, constituindo uma espécie de Exposição, com pistas indiciando o Conflito - o II Acto com um Primeiro Quadro com 4 Cenas, um Segundo Quadro com 8 Cenas – o III Acto, o Desenlace, com 6 cenas, numa estruturação equilibrada.

Um I Acto com Orestes procurando o palácio da rainha, acompanhado do Pedagogo, um Júpiter que os segue e com eles trava diálogo, tentando induzir Orestes/(Filebo) a voltar atrás nas suas intenções de descoberta e provável vingança, nesse dia da festa dos mortos, com estes empestando a cidade e perseguindo, por meio das moscas –Erínias – os habitantes de Argos, como retaliação pelos seus crimes – (o primeiro dos quais, o de Clitemnestra e Egisto, praticado quinze anos antes, e forçando os habitantes a um programa de expiação e remorso generalizado), representados pelas velhas de negro fazendo oferendas e libações à estátua de Júpiter, sendo uma delas interceptada por Júpiter, durante a conversa deste com Orestes e o Pedagogo, a qual justificará esse viver de expiação e remorso imposto desde o crime cometido pelos reis de Argos, num seguidismo de rebanho dócil, conveniente a Júpiter, avesso à liberdade humana.
 Este tentará induzir Orestes a retirar-se de Argos, sugerindo o crime possível de assassínio vingativo da rainha Clitemnestra, caso ele fosse o jovem expulso por Egisto, quinze anos antes, revelando assim, a pista de que é alguém que sabe e não se deixa enganar. O encontro de Orestes, sob o disfarce de Filebo, com a revoltada Electra, que espera o milagre do regresso do irmão, para repor a ordem, e seguidamente com Clitemnestra, rainha amarga perseguida pelo remorso que impôs na cidade, decidem-no a ficar, contrariamente às tentativas do Pedagogo para o afastar das ambições, retomando as viagens e os estudos libertadores do homem.
O Acto II, num Primeiro Quadro em torno da expiação, com cenas caricatas da multidão nos seus preparativos para a festa, o Grande Sacerdote diante da caverna apelando aos mortos para se erguerem, no meio da putrefacção, para virem atormentar os vivos e roê-los até aos ossos, Orestes horrorizado pensando intervir, contrariado por Júpiter, Egisto pedindo perdão e piedade ao lembrar o seu crime, tal como a multidão que expõe os seus crimes, Electra que aparece provocatória, vestida de branco , lembrando as cidades onde há alegria, apelando para seu pai Agamémnon e sua irmã Ifigénia, para que fiquem silenciosos, ao contrário dos outros mortos, provando que estão com ela, em dança sacrílega que vai provocar, a par do entusiasmo das mulheres jovens, a raiva das velhas e a ira castigadora de Egisto. A Cena IV, nos degraus do Templo, é a cena do reconhecimento (anagnórise), após uma primeira recusa de Electra, convencida de que fala com o jovem Filebo, Electra confiando finalmente no irmão, disposta a colaborar com ele, como salvador do povo e vingador do crime.
O Segundo Quadro, em torno de Egisto e do seu cansaço de viver, do seu assassínio por Orestes, ante a alegria de vingativa Electra, o recuo desta perante a decisão de Orestes de matar a Mãe, o começo do arrependimento de Electra, o seu repúdio pelo irmão, que assume o seu acto em liberdade, ao contrário de Electra, que se deixa perseguir pelas moscas, as Erínias, as deusas do remorso.
No III Acto, no Templo protector de Apolo, os dois irmãos dormem rodeados pelas Erínias ameaçadoras, representantes do destino (anánkê). Um Júpiter chantagista pretende atrair para si a devoção do irmão e da irmã, mas enquanto esta cede ao remorso, repudiando o irmão, integrada no rebanho, este responde com a altivez do ser livre, mas definitivamente só – “só como um leproso” – dirá Júpiter.
Como o “tocador de flauta”, dirá ele à multidão de Argos, que conduziu os ratos para o mar, para limpar a cidade, e com eles se afogou, ele conduzirá para o mar as Erínias que o espreitam à beira do templo de Apolo para o perseguirem, assumindo desse modo, com a sua morte, a sua liberdade de salvar o povo de Argos da maldição do remorso, e de os conduzir à consciência da responsabilidade dos actos próprios, sem fatalismo, qual Cristo deixando-se imolar para Redenção dos pecados dos homens, imagem, em todo o caso, estranhamente contrária ao pensamento ateu sartriano.
É tempo, pois de relermos “Les Mouches”. Pela consciência de se ser livre em responsabilidade. E afinal, homens livres sempre os houve, Cristo foi um deles. Assumiu e pagou. Como Orestes. Como Pigmalião.

Mas esses pertencem ao mito, não é deles que reza a história. Qualquer Napoleão se julga livre, qualquer Hitler, qualquer Mao, e mais modernamente, qualquer… São os que fazem pagar. E nunca assumem. Menos ainda se arrependem, eles próprios Erínias vorazes que reduzem a cidade a um coro de gritos e de maldições contra o seu bzz bzz ensurdecedor de explicações ou justificações de embalar.






sábado, 9 de junho de 2012

«Livre-nos Deus do facalhão»


Trocámos opiniões
Sobre uns casos de animais
Salvos pelas nossas intervenções,
Distanciadas no tempo, é certo,
Mas reveladoras de uma extrema sensibilidade
E acerto.
Contou-me o Dr. Salles andar envolvido
Numa chocante história de coudelaria
Que o trazia
Nervoso, e mesmo atazanado
Pois o caso é de atrocidade...
Sucedeu que a égua, mãe do seu cavalo,
- Que não sei se é ruço,
Como o Gingão
De Nuno da Câmara Pereira,
Que foi morto por um toiro repontão
E deixou por isso o fadista
Mergulhado em negra saudade -
Dizia eu, pois, que a mãe do seu cavalo,
Sua “comadre” “Marquesa”
Fora destinada para o talho
Para ser vendida a retalho,
O que lhe causara grande engulho
E enorme tristeza.
Pois tanto disse e fez,
Que os talhantes de faca e alguidar
Que já afiavam o beiço para o prazer
De estraçalhar para vender,
Ou mesmo só de ingerir,
Tiveram que desistir
De a comprar e em postas fazer
Porque, como diz o Dr. Salles,
Muito egoisticamente jovem,
Nem só de pão
Ou de postas vive o homem.
Como conseguiu impedir
Tal atrocidade,
Anda já mais animado,
Porque teve suficiente tenacidade
Para impedir que a “Marquesa” sua “comadre”,
Mãe do seu cavalo amado,
Fosse parar à barriga de uma qualquer insaciedade.
Contei-lhe, então, a história de um galaró
A quem logo de manhã
O meu pai ordenava
Que cantasse e ele cantava
E cuja morte para a carilada
Eu consegui um dia impedir, bem transtornada,
Agarrando-me com força a ele,
Cujo coração palpitava, palpitava.
Mas, afinal,
Ele pôde prosseguir
No seu cocorocó matinal
Porque o salvei por então
Da sua triste fatalidade.
Quando a fatalidade chegou eu não estava,
Não vi, não soube, acabara.
Em conclusão,
Os animais aqui não são a fábula,
Mas o Dr. Salles e eu mesma
Podemos na rábula significar a fábula,
Dando provas de uma sensibilidade
Risível, talvez, para a comunidade,
Resumida, enfim, na proposta de moralidade:
“Livre-nos Deus do facalhão”,
Que o Dr. Salles, enfastiado, propôs para conclusão.

Mas o que é certo é que sempre o facalhão do nosso enguiço
Nos pende sobre o toutiço.
Mais tenebroso e eminente
Que a espada que sobre Dâmocles foi pendente.
E sempre por culpa nossa,
Nossa!

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Tempo de irmã, tempo de pai


Faz hoje anos, a minha irmã, e recordo-a no meu blogue, para recordar igualmente o meu pai, que um dia lhe mandou, pelos seus oito anos, uns versos, como a mim me mandaria posteriormente pelos meus sete, versos que transcrevi no texto sobre os sete anos da minha neta Mafalda. Em tempos fiz um livro que a Sinapses colocou na Internet, mas há muito que o não encontro, não sei se foi retirado. Nele punha em destaque a figura do meu pai, como pessoa invulgar na sua elegância moral, na sua capacidade intelectual e no seu amor pela família. Durante seis anos viveu em Moçambique longe de nós, a quem, numas férias à Metrópole, deixou, numa aldeia da  Beira, com receio da guerra que entretanto eclodira no mundo. De Moçambique nos escrevia, e ia acompanhando a nossa formação escolar com os belos livros enviados por barco, de vistosas imagens que nos iam marcando o espírito. Por vezes eram em verso as cartas, uma delas escrita em Ressano Garcia, em 7 de Dezembro de 1941. O seu conteúdo pedagógico, de uma seriedade orientadora démodée, faria rir hoje a maioria dos pais, a totalidade dos filhos. Mas são marca de uma época, em que o respeito pela disciplina não significava ainda o boicote à criatividade e ao desenvolvimento livre da personalidade:


«Minha querida Fernanda:
Como passas, filha minha?
A Mamã e a Bertinha?
E a Avozinha como anda?

Recebi a tua carta
E tão contente fiquei,
Tantos beijinhos lhe dei
Que nem tos posso contar.
Chegou-me pelo “Angola”
E, em paga destas notícias,
Vou-te mandar mil carícias,
Mil beijos te vou mandar.

Teu Papá está de saúde
Cada vez mais teu amigo;
Pois se até sonha contigo…
Queres ouvir um lindo sonho?
Sonhei… ou pensei que via
Num jardim entre flores,
Lindas, de todas as cores,
Teu rosto meigo e risonho.

E que brincava contigo
E que ao peito te apertava
Como no tempo antigo
E contigo assim falava:

- Gostas muito da mamã?
Gostas de a ver contente?
- Gosto sim, pois, não sabias?
- Sei que logo de manhã
Vais alegre e sorridente
Beijá-la, dar-lhe os bons dias.

-E depois? – Vou preparar-me
P’ra chegar cedo à escola
Com as lições bem sabidas.
Já sei vestir-me e lavar-me
E arrumar o meu quarto
Como as meninas crescidas.

- Gostas muito de estudar?
- Muito, pois quero aprender
A ler, escrever, contar…
Quero ser uma Mulher!

- E quando voltas da escola
Que fazes?  - Os meus deveres.
Não quero meus afazeres
Deixar nunca p’r’amanhã
Quando posso hoje fazê-los.
Depois é que vou brincar.
Também gosto de ajudar
A avozinha e a  mamã.

- Os teus livros e cadernos
Trata-los bem, não é assim
- Penso que, quanto a mim,
Não há muito que dizer.
Sempre limpos, sem borrões…
Só às vezes, quando escrevo,
Carrego mais do que devo
Na pena… mas é sem querer.

- Muito bem, gostei de ouvir-te;
Estou contente contigo
E a Mamã pensa comigo;
Mas sempre te digo mais:
O trabalho, minha filha,
Traz consigo a recompensa.
Sê boa, trabalha e pensa
Dar alegria a teus pais.

Aqui tens meu lindo sonho
Que nunca, nunca tem fim.
Se é lindo sonhar assim,
Mais lindo assim é viver.
Ele será verdadeiro
Conforme a tua vontade.
Mil beijos, muita saudade
De alguém que muito te quer.»


Mas foi no ano seguinte – 8 de Junho de 1942 - que a carta de parabéns chegou, na sua letra impecável, em papel branco, contrariamente ao papel azul das cartas normais:


«À Maria Fernanda
 (no dia dos seus anos)

            Já oito anos, Miúda?!!!
Um anjo quase mulher!
Voa o tempo, tudo muda…
Fazes-me velho a valer.

Mas que importa? Ao sorriso
Da tua formosa idade
Formou Deus o Paraíso
Da minha felicidade.

Que me importa se até quando
Da vida é triste a lembrança,
Vejo um sorriso brincando
Nos teus lábios de criança?

Saudando a risonha aurora
Que teu futuro anuncia
Longe de ti, muito embora,
Vou festejar o teu dia.

De minh’alma as flores mais belas
P’ra ti as tenho guardado;
Cobrir quero hoje com elas
O teu retrato adorado.

Lindas flores quem me dera
Mandar-tas com estas linhas,
Na brisa da primavera
No voo das andorinhas.

Não posso. Aos meus desejos
Que é dela, a realidade?
P’ra ti só tenho mil beijos
Mil beijos, muita saudade.

Todo o amor, todo o carinho
Que te dedico aqui vai;
Aqui tens todo inteirinho
O meu coração de pai.

Guardando afectos divinos,
Dentro dele hás-de encontrar
Dois corações pequeninos
Muito juntinhos, a par.»


Ficou-se pelo caminho, o meu pai, éramos nós bem mais novas, deixou-nos, como legado, a minha mãe, que vai rodando com o tempo, entregue aos nossos cuidados de filhas, agora na idade com que ele partiu.

E aquela filha modelo, ajudada a modelar por um pai orientador e por uma mãe sempre cumpridora, na coesão familiar que foi a vida na nossa infância e adolescência, é a mesma pessoa que modelou o seu próprio mundo na elegância que criou, é a mesma filha modelo hoje, companheira habitual da mãe, nas referências aos seus movimentos diários, nas conversas repetidas, nos cuidados permanentes. Formamos uma boa equipe -  com o auxílio do genro Vitorino - em volta do legado paterno. Mas eu sou mais rebelde nas boas maneiras, a responsabilidade maior pesa nos ombros da minha irmã, segundo a orientação paterna responsabilizante de décadas. Aliás, sempre a minha irmã foi oráculo na nossa casa, os seus olhos azuis sempre se impondo, no jeito sereno de uma atitude espiritual que a isolou na superioridade da sua loira presença.

Longa vida, Nandita, para nós ambas. Para todos os efeitos, uma mãe de 105 anos e sempre a caminho, é um deslumbramento. Os docemente crentes dirão - uma bênção. Ainda quando se exibe nas histórias que conta repetidamente ou nos versos que canta, em frequentes novas versões. Se nos anteceder na partida, como esperamos, aterradas com a outra eventualidade que a tornaria totalmente infeliz, a saudade de uma presença tão viva e atenta custará a ultrapassar.

Precisamos, apenas, de bons ossos e de bons músculos.  De alguma paciência também.

Muitos parabéns para ti. Para ti também as flores que não deixarás de evocar, vindas da bênção mágica desse pai cuja campa todas as semanas enfeitas, a harmonia e a elegância como parâmetro essencial do teu viver, os mortos na sua casa florida, como a dos vivos, a tua:

“De minh’alma as flores mais belas

P’ra ti as tenho guardado;

Cobrir quero hoje com elas

O teu retrato adorado.”