sexta-feira, 31 de maio de 2013

Coloração


«O fato de Arlequim»
«Conheceis o cais do ferro-velho
Onde se vendem pássaros, homens e flores:
É aí que eu por vezes trabalho,
Nos meus amores,
As minhas fábulas;
Lá, vejo animais e observo, com atenção,
Os jeitos deles,
Para uma segura opinião.
Numa terça feira gorda, estava eu à janela
Dum vendedor de pássaros meu amigo,
Quando no cais vi assomar
Um pequeno Arlequim todo lesto e bem vestido,
Que com o seu sabre de madeira,
E uma graça ligeira,
Atrás de uma máscara corria -
- A sua Colombina
Em traje de pastora fina.
Com risos e gritaria o povo aplaudia.
Perto de mim, numa gaiola,
Três pássaros de plumagem diferente,
Periquito, canário, cardeal,
Reparavam também no arlequim.
O periquito exclamava: “Gosto pouco da sua tola:
Mas o fato, acho-o ideal,
De um verde tão marcado,
Nunca teve outro igual.”
“Verde! retorquiu o cardeal,
Você não vê, meu caro, que é um fato encarnado?
É isso que o faz tão sedutor!”
“Oh! Quanto a isso, meu compadre,
Responde o canário, não tendes razão,
Porque o fato é amarelo limão.
E é esse amarelo que o torna encantador.”
-“É verde! – É amarelo! - É encarnado, ora então!”
Interrompe cada um, acalorado,
Do trio já irritado.
“Amigos, acalmai-vos! Grita-lhes um picanço
Sábio e manso.
O fato é amarelo, vermelho e verde.
Isso surpreende-vos bastante,
Mas o mistério não é surpreendente:
Tal como muitas pessoas de espírito e de saber
Mas que dum único lado vêem uma questão,
Cada um de vós não quer ver senão
A cor que lhe dá prazer".»

 Pois o picanço manso
Da fábula de Florian
Tinha razão nessa questão
Da preferência por determinada cor
A justificar a aversão
Por outra cor qualquer,
Sobretudo se ela simbolizar
Clubes ou partidos do nosso gostar
Ou do nosso achincalhar.
Partidos, então
É um ver se te avias de murmuração!
Mais, todavia,
Se são os do governo responsável
Por tanta coisa intragável
Que vivemos hoje em dia,
Esquecendo que a nossa cor,
Também estragos causou
- Já que ninguém se safou
Em termos de responsabilidade,
Para o estado a que se chegou.
Muito melhor seria
Uma “branca” união
Para salvar a nação
Para a questão do pão!
Que o “branco” é, afinal,
A soma das várias cores
Do espectro solar.
O pensamento na nacionalidade
É suposto que deveria ser
A razão fundamental
Do nosso estar.
Mas o grupelho sindical
Não descansará enquanto não
Reduzir as cores do nosso mundo
Ao "preto" do buraco fundo.
 

 

quarta-feira, 29 de maio de 2013

O “inferno” do nosso “discontent”


Mais uma achega reveladora de saber e coragem na defesa de um ponto de vista geralmente menosprezado neste país, definido, por João César das Neves, como tendo vivido uma realidade de bem-estar artificial, para a qual chegou a hora do ajustamento tenebroso, em que chafurdamos, umas forças da sombra fazendo por se impor e opor os seus desígnios maliciosos a quaisquer tentativas de conserto, as forças da zona sol tendo embarcado para paragens de maior eficácia e êxito pessoal, todos colaborando energicamente, por acções directas de ataques ou meandros sinuosos, ou indirectas de troça desprestigiante em skatches do nosso humorismo incisivo, no esfrangalhar do país, aceitando, como ponto de honra, uma segunda mentira – a da viabilidade de consertação por quaisquer outros partidos – os da solidariedade que, pelo que se sabe, tanto fizeram e fazem para a sua destruição.

«A SEGUNDA MENTIRA»

«Portugal viveu durante muitos anos uma ilusão de facilidade artificial, paga com dinheiro externo. Como em todas as mentiras, um dia a realidade bateu à porta. Seguem-se anos de brutal ajustamento, para eliminar as tolices insustentáveis e colocar a sociedade numa trajectória robusta. Trata-se de um caso clássico na história económica, muito frequente, muito estudado, sempre doloroso.

Confrontada com a tarefa hercúlea, a sociedade divide-se em duas partes bem distintas. Como nas praças de touros, existe uma zona de sol e outra de sombra. A distinção não tem nada a ver ricos e pobres, mas com o nível de segurança económica. O rendimento social de inserção ou a pensão mínima faz sombra, enquanto os fundos de investimento milionários estão ao sol. Ora quando começa a trovoada, a diferença entre as duas áreas é nítida.

Os sectores que estão ao sol (neste caso à chuva) têm de ajustar rapidamente. As empresas vão à falência, os trabalhadores perdem o emprego e são forçados a mudar de vida. Convertem a actividade, emigram, encontram alternativas. Como esta crise bateu em 2008, há muito que a zona sol ajustou. Aquilo que se arrasta longa e demoradamente é a adaptação da zona à sombra. Aí regista-se uma luta terrível à volta dos poucos lugares protegidos, e que aliás se vão reduzindo à medida que a tempestade desgasta as coberturas.

A consequência disto é a criação de uma segunda mentira, tão ou mais dramática que a primeira. O fragor desta luta enche totalmente o debate mediático, fingindo que o bem público e o futuro do País dependem crucialmente do que não passa do interesse particular de um grupo. Basta abrir a televisão ou os jornais para encontrar alguém a gemer ruidosamente, afirmando que a dignidade nacional e o progresso lusitano só sobrevivem se for mantido o subsídio, assegurado o apoio, defendida a despesa. Os propósitos são muito variados; o único elemento comum é a fúria avassaladora contra o Governo do momento, acusado da incompetência mais gritante ou dos propósitos mais sinistros, simplesmente porque lhes tira o guarda-chuva.

Está a ser muito interessante ver a vastidão do poder das forças instaladas em Portugal, e a capacidade de manipulação da realidade a seu favor. Os serviços colectivos, dos ministérios às câmaras municipais, da electricidade às estradas, dos juízes aos diplomatas, por se localizarem bem dentro da zona sombra, conseguem prosseguir como se nada fosse, mantendo hábitos ruinosos. Vêm depois os sectores protegidos, da construção aos advogados, grandes grupos e elites sociais, mais próximos da margem, que manobram nos bastidores. Os bancos, que andaram décadas a financiar projectos tolos, ocultam os esqueletos no armário e asseguram ser indispensáveis ao futuro nacional, precisamente na altura em que o prejudicam. Finalmente, a região entre a sombra e o sol faz manifestações e gritaria. Estes são os sindicatos, funcionários, profissões liberais e empresas subsidiadas.

O resultado de tudo isto é ir-se adiando o ajustamento, que sempre foi inevitável, e que a economia real há muito fez. Desta luta depende a crise demorar cinco ou trinta anos. Ou até, como se vê na Grécia e no Japão, acabar por quebrar o sistema, que nunca volta a ser o mesmo. Neste campo pode dizer-se que Portugal até se tem comportado muito bem, mantendo a paz social, enquanto avança com algumas reformas.

O mais importante nesta fase é desmistificar o essencial da segunda mentira, a ideia de que há um caminho mais fácil e existe alternativa à austeridade. Este é o embuste alimentado pelas partes ameaçadas da zona sombra, tentando desesperadamente manter as benesses em risco. Mas a única opção real ao ajustamento é o caos, porque a tempestade é inelutável e o tecto tem limites. Urgente é mudar corajosamente os hábitos e abandonar regalias injustificadas, usando os poucos recursos, não para protecção a privilegiados mas para defender os pobres e sobretudo investir em actividades realmente produtivas, abandonando as ilusões que nos enfiaram na crise.»


 

 

O pretensiosismo da nossa vacuidade


Mais um texto de Isaías Afonso que, pela análise circunstanciada do nosso estar no mundo hoje e ontem, com a seriedade de quem se regula por normas de correcção educada segundo valores que, antes da Revolução libertadora, defendiam o “savoir être” nacional – é certo que com os valores contestatários rosnando em surdina, lamiré propício às cantorias pós-revolucionárias geradoras da actual destruição pátria - aponta o estado de sítio de uma sociedade toda ela votada à deposição do governo, único ao longo destes anos do pós-abril que pretendeu zelar pelo bom nome da nação.

Alguns desses que bramam críticas, até fizeram parte de governos anteriores, todos eles apostados num engrandecimento ilusório e sem tréguas, distribuindo benesses que lhes permitiam a eles singrar melhor, embora soubessem que as regalias eram fiasco empenhador da nação futura.

Da esquerda à direita todos se esmeram agora em pôr a ridículo ou em desfazer nas aparentes conquistas de um governo que as obteve querendo ser honrado, embora de forma drástica, pela redução dos bolos e outras medidas brutais definhadoras de um povo que se habituou a considerar como direitos as suas conquistas anteriores, que as greves favoreceram segundo absurda manipulação sindical, mas conquistas não obtidas por produção própria, nacional, e sim provenientes de empréstimos sucessivos de um país desnorteado, comendo e gozando à tripa-forra e sem vergonha das regalias que não conquistara com o seu trabalho.

O texto de Isaías Afonso é suficientemente explícito, para que seja preciso insistir. Mas todas essas greves que continuam a fazer-se e a anunciar-se num despenhadeiro de arrasar, mostram bem a massa infame em que somos moldados, no nosso soez contributo generalizado para a destruição pátria, dando voz aos instintos da nossa animalidade camuflada de intenção generosa e não querendo escutar as vozes do optimismo conquistador de benesses que o governo, secundado por alguns investigadores europeus, se permite fazer.

«O QUE PRETENDEMOS NÓS?»

«Ao analisar-se um acontecimento histórico temos de ter em conta as causas remotas e as causas próximas para podermos compreender as consequências, nomeadamente aquelas a que assistimos hoje e ligadas à nossa situação económico-financeira.

Desde a direita à esquerda passando pelo centro, toda a gente se colocou na praça pública a desancar o actual governo pelo empobrecimento a que se vê obrigado.

A comunicação social, em nome da liberdade de expressão, também veio engrossar na ágora esse fenómeno, fazendo coro com o descontentamento porque os seus jornalistas também fazem parte dos contestatários pois sofrem as consequências de tal desiderato.

Os povos apenas querem ser figurantes do tempo presente e pouco querem saber do passado, embora perspectivem o futuro apenas em função do seu presente.

O 25 de Abril, movimento aplaudido por grande parte da população de Portugal, gerou uma desmedida esperança no futuro uma vez que o presente foi de riqueza virtual que esteve ao alcance duma grande parte da sua população.

Os portugueses não quiseram saber se o país em 24 de Abril crescia ao ritmo de 7% ao ano, se possuía mais de 700 toneladas de ouro no Banco de Portugal como reserva de suporte do Escudo, se havia quase o pleno emprego e se tinha um império que ia do Minho a Timor, etc. etc.

O que esteve defronte dos seus olhos?

Que não tinha liberdade, que era vigiado por uma policia politica, que ganhava pouco e que os jovens morriam numa guerra que consideravam inútil.

O 25 de Abril forneceu-lhe a liberdade, deixou de ser vigiado, passou a ganhar mais e que a guerra acabara.

Veio depois a felicidade da facilidade de acesso ao crédito.

Gastar, gastar, consumir, consumir.

A produtividade não acompanhou esta febre despesista e os espertos enriqueceram no âmbito da corrupção quase generalizada, sobretudo em obras de derrapagens orçamentais ou em engenharias financeiras pouco ou nada transparentes.

Os partidos do regime para ganhar eleições prometiam ainda mais riqueza e os portugueses habituaram-se ao bem-estar com pouco esforço para a manutenção desse bem-estar.

O ambiente virtual acabou e o dinheiro desapareceu como havia aparecido. O abismo da irresponsabilidade politica surgiu e os portugueses não queriam crer. O presente é de pobreza acelerada e o futuro surge sombrio.

A irresponsabilidade do passado deixou de existir e quem governa no presente é o culpado de todas as agruras vividas e sentidas.Alguém está preocupado com as causas remotas? Ninguém!

Alguém está preocupado com as causas próximas? Ninguém!

A preocupação reside nas consequências que estão no tempo presente.

A direita que hoje governa é apontada como o conjunto dos criminosos que fazem sofrer o bom Povo Português.

A sinistra, padecendo de amnésia, aponta o dedo acusatório aos últimos responsáveis, porque, tendo ingerido as águas do Letes, apresenta-se como inocente e pura, sem quaisquer máculas, prometendo o conforto do passado para o futuro.

A sinistra mais sinistra (esta deliciosa palavra muito usada pelos italianos) faz crescer o punho erguido e fechado, como se tal símbolo fosse o da salvação dos indigentes, canção que difundia aos ignorantes, antes de 9 de Novembro de 1989.
O gato escondido com rabo de fora ainda acena com as "grandoladas", quais sereias que tentaram o conhecido Ulisses mas o qual não se deixou seduzir porque a sua Penélope e o seu Telémaco eram verdadeiramente o seu futuro.

Quem não aceita os sacrifícios que se pedem no presente?

Ninguém quer aceitar e o desânimo invade as consciências.

Quereremos nós olhar para as causas remotas e para as causas próximas dos acontecimentos para compreendermos as consequências do presente e projectarmos um novo futuro ou pretendemos apenas a guerra civil e o terrorismo para nos vingarmos uns dos outros?

EIS O DILEMA DA NOSSA ACTUALIDADE»

 

segunda-feira, 27 de maio de 2013

«Mas até nem parvo sou!»


Eis uma análise que me parece excelente, a do texto publicado no blog “A bem da Nação” - SER DE ESQUERDA EM PAISES DE REGIME CAPITALISTA - de Isaías Afonso, sobre a tendência portuguesa para a emigração, por na pátria se não encontrarem condições propícias a um desenvolvimento apanágio de outros países mais expeditos, culturalmente falando, e por esse motivo criando as condições para uma sobrevivência feita de inteligência na organização das estruturações necessárias para esse efeito. Como escrevi num artigo “Ten years after” (Anuário, 1999), “Lá, na delicada Europa, só é preciso trabalhar bem nas tarefas duras que sempre foram imputadas aos escravos e que sempre os senhores desprezaram. Já, de resto, aí, tudo está organizado, os serviços dos senhores, os serviços dos escravos, tudo pago em condições, no respeito pelos direitos de cada um – dentro das naturais discrepâncias sócio-culturais, é bem de ver – os emigrantes escravos desempenhando as tarefas duras não remuneradas condignamente no país natal e que, no estrangeiro, mau grado os ritmos poéticos atrabiliários dos escritores sensíveis à saudade na servidão, lhes fornecem os cabedais suficientes dignificadores da condição humana.”

Outros passos no mesmo artigo vêm no apoio da tese de Isaías Afonso justificativos do surto de emigração no tempo da guerra colonial, como fuga à guerra colonial – embora o receio da guerra, em outras guerras posteriores, mais bem remuneradas, em território estrangeiro, não tenha impedido a deslocação das nossas corajosas forças bélicas, com direito a ternas cenas de despedida televisiva no aeroporto, entre as mesmas e os seus familiares destroçados.

Assim, “No Ultramar, apesar das restrições à emigração no tempo do velho Salazar, fez-se obra vasta, igualmente com escravos e senhores, tal como no estrangeiro, como técnica segregativa em toda a parte imperante, excluídas as camuflagens do “savoir faire” oportunista.

“Todavia, poucos portugueses conheciam tal obra. Ergueram-se cidades, descobriram-se minérios, rasgaram-se caminhos, fomentaram-se indústrias e riquezas para ajudar a nação-mãe. Mas assim que surgiu a guerra, a aversão anterior dos portugueses pelas distantes “terras dos pretos” aumentou, já fruto de indiferença destruidora do mito respeitador da História e dos heróis nacionais que as descobriram e defenderam, já fruto da ignorância real ou fingida do valor económico dessas terras como principal agente da economia metropolitana, realidade que, por ignominiosa, se escamoteava, de um pequeno país amamentado pelos filhos dispersos, por incapacidade de se alimentar por si.”

A guerra do Ultramar, posta em causa pelos países da generosidade doutrinária, esquecidos alguns deles de que também ocupavam territórios de usurpação, foi ponto de partida para o desenvolvimento doutrinário, entre nós, dos doutrinários de esquerda, já bastamente sensíveis – com muita razão, de resto – às condições definhantes em que vivia o povo português – embora certamente que superiores às do tempo em que CesárioVerde lhes descrevia as mazelas, um século antes, mau grado o cinzentismo com que os actuais historiadores da época de Salazar lhe traçam o perfil nos seus descritivos tendenciosos.

Mas a ligação da nossa esquerda aos partidos socialista e comunista, se nos tempos actuais serve sobretudo para destruir o governo com tendências de direita irmanada com o capitalismo segundo a sua visão facciosa, e no tempo da guerra colonial serviu para justificar a emigração, a coberto dos bons sentimentos por parte das classes intelectualmente mais favorecidas, na realidade tal emigração era escoada para os países do ocidente europeu que o capitalismo favorecia, e não para os países de Leste, como explica o texto de  Isaías Afonso:


«SER DE ESQUERDA EM PAISES DE REGIME CAPITALISTA»

«Fala-se hoje de novo em "rush migratório"como se, no passado, tal movimentação populacional não fizesse parte da estrutura económico-social portuguesa.

Lendo a tese de AS DUAS POLITICAS NACIONAIS, de António Sérgio, logo nos apercebemos desse fenómeno, pois o autor cita Duarte Ribeiro de Macedo, na sua obra Da Introdução das Artes Neste Reino, de 1647, em que sobre a Politica de Fixação afirma que "Nemo nos Conducit", isto é, ninguém nos conduz, ninguém emprega os nossos braços e daí a mórbida Emigração.

Compreende-se perfeitamente a razão pela qual prevaleceu a Politica de Circulação ou Transporte que nos levou à Epopeia dos Descobrimentos, que veio a constituir o nosso espaço económico-geográfico durante cerca de 500 anos.

O sacrifício para o manter foi obra dos portugueses do passado, mas o presente não sentiu essa vontade indómita e levado pelos apelidados "Ventos da História" cedeu essa nossa força no mundo, que metia inveja.

Quando o presente foi chamado a defender o sacrifício do passado, respondeu quase um milhão de jovens, enquanto outros preferiram a fuga ao compromisso e outros ainda quiseram engrossar o fenómeno do "rush" saindo do país para encontrar melhores meios de sobrevivência.

A década de sessenta do século passado marca mais uma vez que não era possível uma Politica de Fixação da nossa população e os dólares americanos para a ajuda à Europa aceleraram a partida para outras paragens.

A luta contra o regime de Salazar é assumido por aquilo a que se pode chamar a esquerda ideológica com ligações aos partidos socialista e comunista. Conquistadas melhores condições de vida, tal facto não invalida a preferência da simpatia pela esquerda.

Depois da Revolução Russa de 1917 poder-se-ia pensar que as diversas movimentações populacionais se dirigissem para o denominado "paraíso das amplas liberdades".

Mesmo no inicio do século e depois do primeiro conflito mundial, a nossa emigração nunca se fez em direcção aos países ditos socialistas, os quais apregoavam o pleno emprego e um nível de vida compatível com a dignidade humana.

O "rush migratório" mais curioso é o das décadas de sessenta e setenta e o actual, desde há uns dez anos a esta parte.

A propaganda em voga era a do comunismo e em menor escala a do socialismo democrático contra o regime autoritário e contra a Guerra dita Colonial, segundo a sua denominação, para impressionar os incautos e como forma de pressão que levaria a denegrir o conflito, mesmo se ele se apresentasse como defesa do património histórico.

Poderia então supor-se que os países sob regime comunista fossem o destino de preferência para o exercício do "métier" pois, assumindo-se os emigrantes como maioritariamente de esquerda, todos eles recusaram estabelecer-se nos países da sua ideologia preferencial.

A preferência foi, é e será os países de regime capitalista, como hoje se comprova.

Por isso, fazem-me rir aquelas e aqueles emigrantes que, nos países capitalistas, apelam a favor dum PCP estalinista ou do BE trotsquista, para que eles atinjam o poder em Portugal quando, em tempos, mau grado as dificuldades, quiseram permanecer nos países cujo regime combatiam.

Também é bem verdade que as cenas vistas durante a queda da ex-URSS e seus satélites, com as populações em manifestações de alegria saltando arames farpados e derrubando muros vergonhosos, serviu de vacina e de exemplo para evitar loucuras ou entusiasmos pela propaganda.

Mas é bom, é saudável, é moderno, é de bom-tom, ser de esquerda em países de regime capitalista.»

20 de Maio de 2013

Isaías Afonso

Vale a pena recordar Álvaro de Campos, como justificação dessas anomalias dos lúcidos generosos que dão ao pedinte tudo quanto têm na algibeira onde trazem menos dinheiro. São lúcidos - embora de uma lucidez diferente da de ´Campos. Defendem as doutrinas dos doutrinários mas não lhes querem saborear os efeitos nas terras da sua difusão:

«Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa
Aquele homem, pedinte por profissão que se lhe vê na cara,
Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;
E reciprocamente, num gesto largo, transbordante, dei-lhe tudo quanto tinha
(Excepto, naturalmente, o que estava na algibeira onde trago mais dinheiro :
Não sou parvo nem romancista russo, aplicado,
E romantismo, sim, mas devagar...)
Sinto uma simpatia por essa gente toda,
Sobretudo quando não merece simpatia.
……………………………………
Coitado do Álvaro de Campos!
Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!
Coitado dele, enfiado na poltrona na sua melancolia!
Coitado dele, que com lágrimas (autênticas) nos olhos,
Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita
Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha pouco,

Àquele pobre que não era pobre, que tinha olhos tristes por profissão.
………..
Que bom poder-me revoltar num comício dentro da minha alma!
Mas até nem parvo sou!
Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.
Não tenho, mesmo, defesa nenhuma; sou lúcido.

Já disse: sou lúcido.
Nada de estéticas com coração: sou lúcido.
Merda! Sou lúcido.»

domingo, 26 de maio de 2013

«Há ou não há déficit de atenção?»


Foi com este título que me chegou por email o artigo seguinte, sobre diferentes conceitos de educação – na França e nos Estados Unidos - que originam diferentes procedimentos - pedagógicos ou medicinais - nos dois países, relativamente ao comportamento das respectivas crianças em idade escolar.

Já aqui tinha utilizado dois outros artigos alarmantes sobre os efeitos perversos da ritalina e outros fármacos que os pais portugueses com problemas educacionais dão aos filhos com déficit de atenção. Este artigo vem confirmar o que pensei sempre, seguindo, apenas, a norma do bom senso cobrindo um superávit de terror pessoal em face da manipulação da nossa educação, em muitos casos, por efeito de drogas, por incapacidade nossa de orientação dentro de parâmetros responsabilização e seriedade requeridos.

«Porque é que as crianças francesas não têm Déficit de Atenção?»  

Marilyn Wedge, Ph.D 

«Nos Estados Unidos, pelo menos 9% das crianças em idade escolar foram diagnosticadas com TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade), e estão sendo tratadas com medicamentos. Na França, a percentagem de crianças diagnosticadas e medicadas para o TDAH é inferior a 0,5%. Como é que a epidemia de TDAH, que se tornou firmemente estabelecida nos Estados Unidos, foi quase completamente desconsiderada com relação a crianças na França?

TDAH é um transtorno biológico-neurológico? Surpreendentemente, a resposta a esta pergunta depende do facto de você morar na França ou nos Estados Unidos. Nos Estados Unidos, os psiquiatras pediátricos consideram o TDAH como um distúrbio biológico, com causas biológicas. O tratamento de escolha também é biológico – medicamentos estimulantes psíquicos, tais como Ritalina e Adderall.

Os psiquiatras infantis franceses, por outro lado, vêem o TDAH como uma condição médica que tem causas psico-sociais e situacionais. Em vez de tratar os problemas de concentração e de comportamento com drogas, os médicos franceses preferem avaliar o problema subjacente que está causando o sofrimento da criança; não o cérebro da criança, mas o contexto social da criança. Eles, então, optam por tratar o problema do contexto social subjacente com psicoterapia ou aconselhamento familiar. Esta é uma maneira muito diferente de ver as coisas, comparada à tendência americana de atribuir todos os sintomas de uma disfunção biológica a um desequilíbrio químico no cérebro da criança.

Os psiquiatras infantis franceses não usam o mesmo sistema de classificação de problemas emocionais infantis utilizado pelos psiquiatras americanos. Eles não usam o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders ou DSM. De acordo com o sociólogo Manuel Vallee, a Federação Francesa de Psiquiatria desenvolveu um sistema de classificação alternativa, como uma resistência à influência do DSM-3. Esta alternativa foi a CFTMEA (Classification Française des Troubles Mentaux de L’Enfant et de L’Adolescent), lançado pela primeira vez em 1983, e atualizado em 1988 e 2000. O foco do CFTMEA está em identificar e tratar as causas psicossociais subjacentes aos sintomas das crianças, e não em encontrar os melhores bandaids farmacológicos para mascarar os sintomas.

Na medida em que os médicos franceses são bem sucedidos em encontrar e reparar o que estava errado no contexto social da criança, menos crianças se enquadram no diagnóstico de TDAH. Além disso, a definição de TDAH não é tão ampla quanto no sistema americano, que na minha opinião, tende a “patologizar” muito do que seria um comportamento normal da infância. O DSM não considera causas subjacentes. Dessa forma, leva os médicos a diagnosticarem como TDAH um número muito maior de crianças sintomáticas, e também os incentiva a tratar as crianças com produtos farmacêuticos.

A abordagem psico-social holística francesa também permite considerar causas nutricionais para sintomas do TDAH, especificamente o facto de o comportamento de algumas crianças se agravar após a ingestão de alimentos com corantes, certos conservantes, e / ou alérgenos. Os médicos que trabalham com crianças com problemas, para não mencionar os pais de muitas crianças com TDAH, estão bem conscientes de que as intervenções dietéticas às vezes podem ajudar. Nos Estados Unidos, o foco estrito no tratamento farmacológico do TDAH, no entanto, incentiva os médicos a ignorarem a influência dos factores dietéticos sobre o comportamento das crianças.

E depois, claro, há muitas diferentes filosofias de educação infantil nos Estados Unidos e na França. Estas filosofias divergentes poderiam explicar por que as crianças francesas são geralmente mais bem comportadas do que as americanas. Pamela Druckerman destaca os estilos parentais divergentes em seu recente livro, Bringing up Bébé. Acredito que suas ideias são relevantes para a discussão, por que o número de crianças francesas diagnosticadas com TDAH, em nada se parece com os números que estamos vendo nos Estados Unidos.

\           A partir do momento em que seus filhos nascem, os pais franceses oferecem um firme cadre – que significa “matriz” ou “estrutura”. Não é permitido, por exemplo, que as crianças tomem um lanche quando quiserem. As refeições são em quatro momentos específicos do dia. Crianças francesas aprendem a esperar pacientemente pelas refeições, em vez de comer salgadinhos, sempre que lhes apetecer. Os bebés franceses também se adequam aos limites estabelecidos pelos pais. Pais franceses deixam os seus bebés chorando se não dormirem durante a noite, com a idade de quatro meses.

Os pais franceses, destaca Druckerman, amam os seus filhos tanto quanto os pais americanos. Levam-nos às aulas de piano, à prática desportiva, e incentivam-nos a tirar o máximo dos seus talentos. Mas os pais franceses têm uma filosofia diferente de disciplina. Limites aplicados de forma coerente, na visão francesa, fazem as crianças sentirem-se seguras e protegidas. Limites claros, acreditam eles, fazem a criança sentir-se mais feliz e mais segura, algo que é congruente com a minha própria experiência, como terapeuta e como mãe. Finalmente, os pais franceses acreditam que ouvir a palavra “não” resgata as crianças da “tirania de seus próprios desejos”. E a palmada, quando usada criteriosamente, não é considerada abuso na França.

Como terapeuta que trabalha com as crianças, faz todo o sentido para mim que as crianças francesas não precisem de medicamentos para controlar o seu comportamento, porque aprendem o auto-controle no início das suas vidas. As crianças crescem em famílias em que as regras são bem compreendidas, e a hierarquia familiar é clara e firme. Em famílias francesas, como descreve Druckerman, os pais estão firmemente no comando de seus filhos, enquanto que no estilo de família americana, a situação é muitas vezes o inverso.»

«Texto original em Psychology Today»

            Naturalmente, defendo o ponto de vista da pedagogia francesa, certamente que não destituída dos afectos comuns às demais, mas centrada numa orientação com objectivos formativos que passam pela responsabilização e autonomia sem o excesso de pieguice deles desviante.

Não resisto a transcrever alguns passos de textos já antigos, como este, escrito em 1988, do livro “Anuário – Memórias Soltas”, publicado em 1999, pela Editora Minerva:

“Reflexão sobre Sistema de Ensino”: «…. Que o aluno hoje em dia dialoga mais facilmente com o professor, não ponho em dúvida, como também que o diálogo ultrapassa o mero circunstancialismo da matéria disciplinar para se circunscrever tantas vezes a um protesto oco perante a deficiência das notas ou a um falazar banal ou provocatório, originando a frequente intervenção do professor cônscio dos seus objectivos e das deficientes condições em que actua, perante uma indisciplina generalizada e insana.

Ideal seria, com efeito, que o ensino, centrado no aluno, funcionasse com a activa e real participação deste, mas ao pretender-se abolir a  técnica expositiva das metodologias centradas no professor ou na disciplina, está a falsear-se toda uma missão pedagógica de transmissão de conhecimento que não invalidaria a participação inteligente do aluno e que, pelo contrário, resultaria muito mais consistente e positiva.

Mas as novas metodologias, os novos conceitos de educação, como meio, esta, de descoberta do homem, acima de tudo valorizam, na esteira do disposto na Carta das Nações Unidas, a condição da criança como ser dotado de sensibilidade e de direitos humanos, parecendo-me, todavia, muito pouco defendê-la como homem futuro – o tal “homem de amanhã” - que se deveria pretender igualmente equipado de uma estrutura mental mais rica, aconselhável para a formação de uma sociedade racionalmente estruturada e racionalmente disciplinada, e não gradualmente mais indisciplinada e acéfala, como é aquela que preparamos, com o nosso pseudo-amor e a nossa pseudo-fraternidade, que tiram mais do que fornecem aos alunos que educamos.

E a imagem do adolescente tímido ante o autoritarismo do professor omnisciente, ou indefeso perante a desmotivação do saber, é substituída nos nossos tempos pela imagem do adolescente rebelde e auto-suficiente, ídolo de si próprio, incapaz de reconhecer outros valores que o de um egocentrismo ruidoso e estéril, porque falaciosamente se pretendeu chamá-lo à responsabilidade do seu estar no mundo, sem que o orientássemos por meio de um equipamento mental que o tornasse mais equilibradamente e mais racionalmente observador e crítico…»

Mas nesse tempo – há já 25 anos – a ritalina, se já era usada em casos pontuais, não tinha ainda provocado tal efeito devastador sobre uma juventude condenada, à la longue, a uma personalidade domada por efeito de ingestão de químicos, não tornada consciente, por educação e opção, sobre as suas responsabilidades graduais no mundo.
 
Parece assustador. Antes a indisciplina natural, proveniente da falta de orientação ou de crises familiares, responsável, é certo, pelas depressões docentes, mas que políticas de educação menos acéfalas ou mais sensatas poderão corrigir.




 

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Em torno da vaca fria


Já tinha lido o texto de Henrique Raposo sobre Mário Soares, mas achei um nobre texto para o meu blog, a dar-me razão naquilo que há muito penso dele, de um “Esteves sem metafísica”, como tantos de nós por aí, e o escrevi em livros da minha reacção. Entre eles, o texto “Mesa Redonda na Têvê”, de Cravos Roxos (1981) que termina da seguinte forma: “Deus Nosso Senhor dê muita vida para as justificações ao Dr. Mário Soares”.
Agora rio-me desses desejos. Mário Soares não precisa de se justificar, inimputável – segundo Henrique Raposo – numa sociedade de mentecaptos que não se envergonha das figuras que ele fez ao longo de uma vida de serenidade lorpa a repisar o velho estribilho de liberdade e democracia, enquanto era levado no palanque do seu nudismo real.

Transcrevo, do mesmo velho artigo, o seguinte passo de um retrato amarelecido de verdade inútil: “Preocupado com uma definição exacta, o meu amigo doutor juiz repetiu conscienciosamente a de “saloio espertalhão” atribuível à sua personalidade de “leader” com muitas viagens embora de visão moderada, no seio de uma população com escassez das duas, o que justificava o provérbio sobre a realeza do zarolho na terra dos cegos.”

Henrique Raposo o define com mestria, eu apenas recordo alguns factos do meu desprezo, entre os quais uma entrevista a ele feita e ao seu comparsa espanhol Filipe González, creio, em que este falou de reformas e trabalhos no seu país de progresso, com argumentação de quem estudou e conhece, e Soares apenas se limitou aos velhos slogans da democracia, igualdade e liberdade, por, de reformas para o progresso do seu país não ser minimamente conhecedor, definitivamente e exclusivamente embasbacado para o seu umbigo que o alcandorou ao palanque de uma realeza de bobo, que resolve prolongar para além do tempo, com a conivência dos que precisam das suas palhaçadas para mais facilmente atingirem o estado da anarquia, nos seus falsos pruridos de generosidade soez e em alarido.

«D. Mário Soares I, o Inimputável» de Henrique Raposo

O ocaso de Mário Soares está a ser uma espectáculo lamentável. Durante os anos Sócrates, Soares não se distinguiu dos demais capangas socráticos na defesa do chefe. Ante as trapalhadas e mentiras de Eng., o ex-Presidente usou a cassete dos Lellos desta vidinha. Um pouco triste, não? Soares não se comportou como “pai da democracia” (uma contradição em termos, diga-se), mas como pai do PS. Não mostrou a dignidade do senador, mostrou os dentes do jotinha. Porquê? Para Soares, a democracia é o PS e o PS é a democracia; o PS é a única linha dinástica legítima nesta monarquia republicana chamada III República. Aliás, naquela cabeça, o regime é o ele mesmo, o regime é o próprio Soares, D. Soares I.  

Esta presunção de superioridade dinástica subiu de tom após a subida ao poder do actual governo. Numa linguagem arruaceira, Soares tem sugerido um incremento da violência social. Qual miguelista invertido, Soares anda a sonhar há meses com várias Marias da Fonte. E, neste fim-de-semana, passou dos limites quando disse o seguinte sobre Cavaco: “por muito menos do que isto foi D. Carlos morto”. Isto é a linguagem de taberna arsenalista, é uma linguagem vergonhosa para um ex-Presidente de uma democracia. Mas, claro, D. Soares I não se sente numa democracia onde ninguém está acima de crítica. D. Soares I julga que está no seu reino, a monarquia republicana onde todos lhe devem respeitinho. 

Mas o pior é o silêncio dos média. Soares pode dizer o que quiser. Pode ter atitudes machistas perante eurodeputadas, pode lançar snobeira contra o homem de Boliqueime, pode gozar com os contribuintes quando o seu carro é multado, pode refazer à vontade a sua biografia , pode ser um mero apparatchik do PS, pode até acenar com violência política, pode tudo isto porque passa sempre entre os intervalos da chuva. Ele é o Rei, e o Rei, como se sabe, nunca se molha mesmo quando vai nu. Enquanto esteve no poder, D. Soares nunca se molhou porque recebeu sempre um tratamento principesco nas redacções (Joaquim Vieira explica ). Agora, depois da reforma, é tratado como um ser inimputável. Ou seja, Mário Soares passou as últimas décadas numa redoma situada acima do bem e do mal.»

 

 

terça-feira, 21 de maio de 2013

Páginas da nossa história


A primeira, de Vasco Pulido Valente, demonstrando como um povo, fossilizado de longa data numa condição de primitivismo e marginalização relativamente aos outros povos europeus, em ignara tacanhez intelectual, ajudada a construir pelas classes superiores, a quem convinha tal status de atonia, para melhor lhe explorarem os serviços sem reclamação, jamais apanhou o comboio do progresso com recurso exclusivo a si próprio e só mediante ajuda externa. De facto, até na época gloriosa dos Descobrimentos Marítimos, o fruto do esforço do povo que navegou com “lágrimas de Portugal” perceptível no “sal do mar”, não se verificou em resultados visíveis de desenvolvimento equilibrado da nação, por falta da criação de estruturas a ele propícias, ouros e especiarias, trazidos das paragens longínquas, gastos para a criação de igrejas e palácios glorificadores, além de serem canalizados para países que em troca nos abasteceriam de cereais e outras comidas aqui faltosas, pelo êxodo rural empobrecedor da nação. Ontem como hoje.

Esse povo repete hoje os erros de outras épocas, deixando-se estupidamente conduzir a um poço de dívida insolvente, ofuscado pelo fulgor de um ouro que lhe caiu do céu sem custo, deixando-se facilmente corromper na avidez gulosa e deslumbrada que poderia ter orientado para uma formação cultural, ao invés da ganância pela matéria vil que lhe faculta a revestidura exterior para a projecção social. E a conivência de esforços entre as classes do poder, quer sejam as dos governantes, quer as dos banqueiros, dos empresários, do patronato de elevado gabarito, criou a rede de corrupção aliciando uma justiça facilmente subjugada, e que deixou de existir.
Lembro o tempo dos vencimentos antigos, ordenados de escassez, que de repente dão um salto valente para aliciar o milho miúdo, o tal povinho dos empregados estatais ou privados, a quem foram concedidos empréstimos de facilidade para a casa dos sonhos de quem sempre vivera em casa alugada. Tudo quis ser proprietário, hipotecando o futuro, é certo, e o país construiu que se fartou, para distribuir as felicidades remediadas, reservando para a rede do poder a felicidade do poder material absoluto.
Um dia, foram-lhe pedidas contas. E o governo que as quis e tem que saldar, não olhou a meios. Exigiu devoluções, a esse povo que passara dos ordenados somíticos para ordenados aparentemente superiores, mas a quem, afinal, a inflação concomitante com a alta dos vencimentos mal contribuíra para retirar a sarna das misérias de outrora, de povo habituado a “lavar no rio” e a “talhar com seu machado as tábuas do seu caixão”.
Todos os governos, ao longo destes 39 anos, não só consentiram no despenhadeiro, como  favoreceram os hábitos ruins de um gastar sem nexo.

E agora que um governo se propõe pagar, todos lhe saltam em cima, porque estávamos habituados a usar e abusar de proventos não conquistados por nós e, naturalmente, tal facto vai contribuir para a infelicidade sobretudo dos que perderam os empregos.
Eis a primeira página - De Vasco Pulido Valente, (Público, 11/5/2013):
«Uma história Portuguesa»

«Nunca desde o começo desta democracia os políticos portugueses tentaram descobrir como Portugal se “desenvolveu” na segunda metade do século XIX. Talvez calculassem a razão por que não se “desenvolveu” na primeira metade: invasões, golpes do exército, duas guerras civis e uma agitação política constante. Mas depois da Regeneração cai o silêncio e não por acaso. Quase de repente vieram estradas, pontes, comboios, correios, polícia, uma administração pública e um sistema de justiça que cobriam uma boa parte do território e funcionavam com alguma regularidade. Em 1855, o cidadão comum ainda se queixava da enorme aventura que era apanhar um comboio para o Carregado. Em 1875, andar de comboio não impressionava ninguém e a facilidade de transportes serviu para comercializar uma agricultura que, tirando uma ou outra excepção, sufocava nos mercados locais.

Mas como se arranjou dinheiro para esta transformação, que os sábios da altura declaravam deletéria e fantasiosa? Muito simplesmente: contraindo uma enorme dívida soberana, que aumentava de ano em ano com benemérito propósito de sustentar, como se dizia, a “marcha do progresso”, de que nem no Parlamento, nem na maioria dos jornais se discutia o método e as condições. Por isso, evidentemente, os partidos “rotativos” (o “bloco central” da época) se habitualmente se descompunham por trivialidades, não se distinguiam no governo. E como não se distinguiam, criaram uma fama, aliás merecida, de promotores da vigarice e da corrupção que pouco a pouco tomavam conta do país.

Quando em 1891-92 chegou a catástrofe que toda a gente há trinta anos previa, a Monarquia abanou e até ao fim não seria capaz de voltar à estabilidade do passado. A festa não durara muito tempo. Menos de quarenta anos, da “Regeneração” à bancarrota. Só que, nessa altura, existia um partido revolucionário (como o PC já não é; e o Bloco sé retoricamente foi) e esse partido, o Partido Republicano, acabou por conseguir liquidar a Monarquia e, no mesmo dia, estabelecer a República. A dívida soberana e dívida dos particulares continuaram; e Portugal caiu numa pobreza que só quem viveu antes de 1950 pode imaginar. O que espanta é que nenhum partido e nenhum governo tenham aprendido nada com esta história cautelar e que tenham repetido exactamente com a “modernização” a melancólica aventura da “marcha do progresso”. Se a história, em princípio, não permite comparações, não quer isso dizer que a memória não faça falta.»

Segue-se um texto de Ricardo de Araújo Pereira, que me foi enviado por email. Um texto sarcástico, de um arreganhar de dentes só na aparência bem disposto, no tom brincalhão de uma capacidade crítica superior, na construção de um pensamento de ironia perfeitamente subversiva.
Tem razão, Ricardo Araújo Pereira, na inquietação que traduz o seu texto de enormidades argumentativas. Só que, no seu pensamento de esquerda, revela a mesma indiferença de todos pelo forçado de uma acção governativa que provavelmente não poderia ser diferente. Apesar do que grita hoje a maioria do povo, porque “estão mexendo no seu bolso”.
É necessário pagar, essa é a verdade, e pela primeira vez sinto que podemos chegar a algum lado, no sentido de uma futura reconstrução, embora com a colaboração europeia, reconquistada a confiança dos povos graças às provas de decência no pagamento da dívida.
Eu estou a pagar como todos e não me revolto com isso, apesar da falta que me faz esse dinheiro. Sou reformada e sei quanto hoje represento um peso para os que trabalham, em progressiva sequência de dificuldades, pela diminuição da natalidade no nosso país e aumento de tempo de vida. Por isso compreendo a necessidade de corte, só lamentando que os dinheiros dispersos por quem tanto os dispersou não voltem ao solo pátrio nem sejam responsabilizados aqueles que os dispersaram. Além dos ganhos estapafúrdios permitidos ainda por este governo a esses banqueiros da nossa desgovernação.
Mas pague-se a dívida, sim, e recomecemos, sob novos auspícios. Seria um bom milagre da Senhora de Fátima, para juntarmos a nossa fé à do Dr. Cavaco Silva.

Eis a segunda página - de Ricardo Araújo Pereira:

«Carta aos 19%»

«Caro desempregado,

«Em nome de Portugal, gostaria de agradecer o teu contributo para o sucesso económico do nosso país. Portugal tem tido um desempenho exemplar, e o ajustamento está a ser muito bem-sucedido, o que não seria possível sem a tua presença permanente na fila para o centro de emprego. Está a ser feito um enorme esforço para que Portugal recupere a confiança dos mercados e, pelos vistos, os mercados só confiam em Portugal se tu não puderes trabalhar. O teu desemprego, embora possa ser ligeiramente desagradável para ti, é medicinal para a nossa economia. Os investidores não apostam no nosso país se souberem que tu arranjaste emprego. Preferem emprestar dinheiro a pessoas desempregadas.

«Antigamente, estávamos todos a viver acima das nossas possibilidades. Agora estamos só a viver, o que aparentemente continua a estar acima das nossas possibilidades. Começamos a perceber que as nossas necessidades estão acima das nossas possibilidades. A tua necessidade de arranjar um emprego está muito acima das tuas possibilidades. É possível que a tua necessidade de comer também esteja. Tens de pagar impostos acima das tuas possibilidades para poderes viver abaixo das tuas necessidades. Viver mal é caríssimo.

«Não estás sozinho. O governo prepara-se para propor rescisões amigáveis a milhares de funcionários públicos. Vais ter companhia. Segundo o primeiro-ministro, as rescisões não são despedimentos, são janelas de oportunidade. O melhor é agasalhares-te bem, porque o governo tem aberto tantas janelas de oportunidade que se torna difícil evitar as correntes de ar de oportunidade. Há quem sinta a tentação de se abeirar de uma destas janelas de oportunidade e de se atirar cá para baixo. É mal pensado. Temos uma dívida enorme para pagar, e a melhor maneira de conseguir pagá-la é impedir que um quinto dos trabalhadores possa produzir. Aceita a tua função neste processo e não esperneies.

«Tem calma. E não te preocupes. O teu desemprego está dentro das previsões do governo. Que diabo, isso tem de te tranquilizar de algum modo. Felizmente, a tua miséria não apanhou ninguém de surpresa, o que é excelente. A miséria previsível é a preferida de toda a gente. Repara como o governo te preparou para a crise. Se acontecer a Portugal o mesmo que ao Chipre, é deixá-los ir à tua conta bancária confiscar uma parcela dos teus depósitos. Já não tens lá nada para ser confiscado. Podes ficar tranquilo. E não tens nada que agradecer.»