segunda-feira, 24 de junho de 2013

O tiro

Tinha visto na Internet a entrada sorridente de Passos Coelho e comitiva na escadaria do Mosteiro de Alcobaça e pensei logo que era um bom prenúncio para resoluções positivas do governo para o nosso país, e assim o disse à minha amiga, confiante na Janela Manuelina do dito Mosteiro, lembrando o nosso passado de glórias embarcadiças, tal como Camões também lembrou, pondo até o Vasco da Gama a arrostar com um Adamastor tenebroso augurando maus ventos e desastres aterradores, como fazem os adamastores de hoje, (embora no fim se tenha desfeito em lágrimas, por males de amor, que é a nossa pecha. Exemplifico os augúrios:
Lus., Canto V, ests. 43 e 44

«Sabe que quantas naus esta viagem
Que tu fazes, fizerem, de atrevidas,
Inimiga terão esta paragem,
Com ventos e tormentas desmedidas;
E da primeira armada que passagem
Fizer por estas ondas insofridas,
Eu farei de improviso tal castigo
Que seja mor o dano que o perigo!

«Aqui espero tomar, se não me engano,
De quem me descobriu suma vingança;
E não se acabará só nisto o dano
De vossa pertinace confiança:
Antes, em vossas naus vereis, cada ano,
Se é verdade o que meu juízo alcança,
Naufrágios, perdições de toda sorte,
Que o menor mal de todos seja a morte!

 

Mas a minha amiga não foi em poesias, nem sequer as de “tuba canora e belicosa”, lembrando os argumentos incisivos do Dr. Marcelo Rebelo de Sousa que ela supôs que eu não tinha ouvido, só porque às vezes lhe digo que adormeço a ouvir ou a ver os programas, sobretudo se “de agreste avena ou frauta ruda” em que somos peritos de longa data. Mas eu tinha ouvido muito bem ontem a entrevista do Dr. Marcelo, com este a falar belicosamente no “tiro no pé” do governo que constituiu mais aquela farsa de uma sessão vazia e inútil, pois nada adiantara ao que já se sabia, além do aparato governativo em se deslocar inexplicavelmente, a Alcobaça e o seu Mosteiro, com a frota automóvel - e policial, ao que parece - quando poderia tê-la realizado mais economicamente embora com os mesmos apupos e impropérios em S. Bento, “que o peito acendem e a cor ao gesto mudam”, nos costumes de hoje.
Isto frisou a minha amiga indignada, na esteira do que afirmou o Dr. Marcelo, com a sua fluência habitual, que o vazio da farsa – mas há quem lhe chame comédia, os mais roncadores preferindo a designação tragicomédia e os adamastores chorões e ramelosos assentando as suas injúrias numa definitiva designação de tragédia – de qualquer forma, o vazio definitivo –quanto a mim, inexplicável – constituía um tiro no pé de Passos Coelho e da comitiva que parece que não se rala, pois até o Dr. Portas, diz-se, comprou lá rebuçados, não sei se para a tosse, que não conheço as especialidades doces de Alcobaça.
 
O que eu respondi à minha amiga foi aquilo de que me lembrei, assim que ouvi a referência desgostosa do Dr. Marcelo ao autotiro, como ele classificou a ida do governo a Alcobaça para nada. Lembrei-me de que a culpada disso fora a Maria de Lurdes Resende que se fartou de explicar em tempos que quem passasse por Alcobaça havia de lá voltar, e isso fizeram os do governo que lá voltaram, embora eu julgue que alguns o fizeram pela primeira vez.
Que a isto de viajar para longe inutilmente, a maior parte das vezes pela primeira vez, por conta dos impostos plebeus, estão todos os governos habituados e este não ia ficar atrás deles, e até com mais economia. Até, se tivessem ido de autocarro de carreira, não deixariam de fazer a viagem a cantar a “Alcobaça” da Maria de Lurdes Resende, do Maestro Bello Marques e do Poeta Silva Tavares:
Quem passa por Alcobaça
Não passa sem lá voltar.
Por mais que tente e que faça,
É lembrança que não passa
Porque não pode passar.

 Não se esquece facilmente,
Dos seus mercados a graça.
E o seu Mosteiro imponente
Recorda constantemente,
É lembrança que não passa.
 
Por mais que tente e que faça
Ninguém se pode esquecer,
Das margens do Rio Baça,
Nem do Alcoa que passa
Por ser mais lindo de ver.

 Sua lembrança não passa,
Porque não pode passar
Por mais que tente e que faça,
Quem passa por Alcobaça
Tem que por força voltar.

 E foi assim que a minha amiga se reconciliou com a vida, pois com a sua linda voz reavivou recordações de épocas mais brandas, este último adjectivo trazendo-me  à ideia saudosista a ”Saudade dada“ de Fernando Pessoa. Que é o que se leva desta vida, “o que se brinca, ai, ai”, mesmo que seja aliterativamente falando, ou antes, poetando, como o fez Pessoa:
SAUDADE DADA

Em horas inda louras, lindas
Clorindas e Belindas, brandas,
Brincam no tempo das berlindas,
As vindas vendo das varandas.
De onde ouvem vir a rir as vindas
Fitam a fio as frias bandas.

Mas em torno à tarde se entorna
A atordoar o ar que arde
Que a eterna tarde já não torna!
E em tom de atoarda todo o alarde
Do adornado ardor transtorna
No ar de torpor da tarda tarde.

E há nevoentos desencantos
Dos encantos dos pensamentos
Nos santos lentos dos recantos
Dos bentos cantos dos conventos...
Prantos de intentos, lentos, tantos
Que encantam os atentos ventos.

 

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