sábado, 30 de novembro de 2013

As contas “da minha mãe Gansa”

Mais uma das CONVERSAS DE ESPLANADA EM LISBOA de Henrique Salles da Fonseca que nos espanta na frontalidade e argúcia das suas declarações, de uma simplicidade que se harmoniza com a transparência dos dados que expõe, e em que sobressai a consciência da astúcia nacional na desresponsabilização própria, de ter comido e bebido do bolo alheio e entende agora que não tem obrigação de prestar contas –as contas que Salles da Fonseca explica e aclara. Lembramos os meninos sobre os quais a família se debruça fazendo chover sobre as suas ânsias de posse, e logo de enfastiamento, os brinquedos, roupas ou lambarices das suas exigências sem travão, como de obrigação que merecem, sem pensar em dificuldades ou consequências e nem sequer nos muitos por esse mundo. Sem brinquedo…

O MAU DA FITA

Empregado de mesa – Bom dia! Fazem favor.

Eu – Bom dia! Para mim é um café e um croquete.

Ele – E para mim... tem Moscatel ou Favaios?

Empregado de mesa – Temos ambos.

Ele – Então... traga-me um Moscatel, por favor; o Favaios fica para amanhã.

Empregado de mesa – E o café do Senhor é normal, cheio, italiana?

Eu – Normal. E o croquete também.

Ele – Croquete normal?

Eu – Sim, de carne de vaca. É que aqui também fazem de leitão, de peru, sei lá mais do quê... qualquer dia até fazem de baleia, canguru, tubarão ou dinossauro.

Ele – É a crise.

Eu – Qual crise?

Ele – Esta, por que estamos a passar.

Eu – Não estamos a passar por crise nenhuma. Acho mesmo que a crise foi a que nos atirou para o buraco. Agora já não estamos em crise; estamos a tentar sair do buraco para que o despesismo nos atirou.

Ele – Devemos viver em mundos diferentes.

Eu – Não, não, vivemos exactamente no mesmo mundo. Só temos diferenças de semântica.

Ele – Porquê?

Eu – Porque Você chama crise ao «desmanchar da feira de vaidades» em que estávamos e para mim isso é a correcção dos vícios em que muitos tinham caído. Os «vaidosos» e os «viciosos» é que estão a ver a vida a andar para trás e acham-se em crise. Quem conteve o consumo dentro da razoabilidade dos rendimentos próprios, quem se relaciona com o Estado apenas na qualidade de Contribuinte, quem produz bens ou serviços transaccionáveis, não tem motivos de grande preocupação. Mas quem esticou a corda que a banca lhe lançou acumulando créditos à habitação, ao consumo duradoiro e por aí fora; quem perdeu o emprego nalgum dos Sectores de bens não transaccionáveis ou do comércio importador; quem depende do Estado-patrão; quem tirou cursos que não se enquadrem no novo modelo de desenvolvimento... ah! esses têm todas as razões para se preocuparem. Direi mesmo mais: para se preocuparem muito!

Ele – E isso não é crise?

Eu – É uma crise a nível individual, micro económico, não macro. A nível macro estamos a corrigir os erros em que tínhamos caído. O que eu aceito é que se diga que há muita gente com problemas mas esses são uma parte. A outra parte é constituída por todos os que trabalham nos sectores exportadores, por exemplo. Mas há mais...

Ele – E apesar disso tudo, a dívida continua a subir e só se ouve falar em austeridade, austeridade e que a culpa é da Merkel.

Eu – A dívida... qual delas?

Ele – Mas há mais do que uma?

Eu – A pública e a privada. A dívida externa total é a soma de todas as dívidas ao estrangeiro sejam elas do Estado, dos bancos, das empresas e dos particulares. Habitualmente medida pelo PIB, tínhamos no final de Dezembro de 2010 uma dívida externa bruta total de cerca de 230% (396 mil milhões de euros). Mas considerando o valor líquido e não o bruto, ficávamo-nos pelos 104%.

Ele – E hoje?

Eu – No fim de Junho passado tínhamos uma dívida bruta total de cerca de 236% do PIB com a pública a representar cerca de 86% e a banca 62%. Mas em 2006 a pública era de pouco mais de 50% e a dos Bancos rondava os 100%.

Ele – A pública a subir e a da banca a descer. Porquê?

Eu – Porque enquanto o Estado tiver um Cêntimo de défice vai ter que ir aos mercados pedir esse Cêntimo emprestado para cobrir o défice e porque a banca estrangeira fechou a torneira à portuguesa e esta só poderia continuar a funcionar se começasse a amortizar as montanhas de dívidas que tinha lá fora.

Ele – E por que é que o défice público cresceu tanto no primeiro ano deste Governo?

Eu – Porque o Governo anterior praticava uma política de desorçamentação de modo a esconder a realidade e este Governo andou quase um ano só à procura desses buracos para os voltar a meter no Orçamento. E depois veja bem o que para aí vai de discussão política por causa da redução do défice...

Ele – É que essa redução está a ser feita à custa dos pobres enquanto os ricos só fazem é aumentar as fortunas.

Eu – Quais pobres?

Ele – Os que recebem pensões de miséria, os funcionários públicos...

Eu – E quais ricos?

Ele – Os banqueiros.

Eu – Muito bem! Não discuto que o poder de compra de uns e outros é muito diferente. Mas veja lá a «coisa» de outro modo. Cerca de 70% da despesa pública corrente é com vencimentos de funcionários e com pensões. Tudo o resto não passa de 30% e comparadas com as correntes, as despesas de investimento são uma brincalhotice de crianças. Agora imagine que a Nação lhe pedia a si para resolver o problema do défice. Você ia preocupar-se com os 30 ou com os 70%?

Ele – Com os 70%, claro!

Eu – E que fazia? Aumentava ou reduzia o bolo?

Ele – Sim, tinha que reduzir mas cortava nos de cima e não nos de baixo.

Eu – Então isso significa que Você faria exactamente o mesmo que o Governo está a fazer. Os de cima reduzem muito mais que os de baixo e os mais baixos de todos ficam na mesma e nada reduzem. Mas é claro que os jornalistas não gostam de dizer isto.

Ele – E os juízes e outros do género? Já viu as reformas douradas que eles têm? E os políticos?

Eu – E os impostos que essa gente passou a pagar? Disso também os jornalistas não falam... Porquê?

Ele – Porque são da Oposição?

Eu – Sim, também. Mas o mais grave é a falta de seriedade, o mau jornalismo, a desinformação, pugnarem pela criação dum ambiente de crispação. Alguns desses jornalistas estão-se mesmo nas tintas para a Oposição. O que eles querem é vender mais jornais e revistas e isso faz-se com sangue, não com notícias azuis. Sabe o que acho deles? Que são um bando de malfeitores, uns delinquentes. E olhe que fico muito satisfeito ao saber que Você, afinal, faria o mesmo que o Governo está a fazer.

Ele – Não há perigo de eu ir para o Governo.

Eu – Mas ainda não acabámos. Que tal a questão dos ricos?

Ele – Ah!, sim, os banqueiros. Mas com o entusiasmo da conversa vou mandar vir mais um copo. Olhe! Faz favor?

Empregado de mesa – O Senhor chamou? Mais um Moscatel?

Ele – Não, não. Agora vai ser um Favaios, por favor.

Empregado de mesa – Muito bem, trago já.

Eu – Estes tipos não aprenderam nada porque de certeza que não tiveram ninguém que os ensinasse. Um barman ou um empregado de mesa nunca refere «mais um» em voz alta. Ninguém à volta tem nada que saber se Você vai tomar «mais um» ou «mais cinquenta». É «um» que traz e ponto final. A conta que apresenta no final é que há-de referir quantos Você tomou. As Escolas de Hotelaria ainda têm muito que fazer...

Ele – Realmente, tem razão também nisso.

Eu – Mas voltando aos ricos, tenho a dizer-lhe que prefiro não ser banqueiro. Já viu o sarilho em que eles andam metidos desde que o Bill Clinton entornou as finanças todas?

Ele – O Bill Clinton?

Eu – Sim, ele e não a Merkel.

Ele – Vai ter que me explicar isso como se eu fosse uma criança pequena.

Eu – Sim, com certeza. Mas se não se importa, vou deixá-lo tranquilamente a tomar o seu «abafado» e continuamos amanhã. Pode ser?

Ele – Muito bem! Então, amanhã começamos com o Bill Clinton em vez da Merkel.

Eu – OK! Até amanhã. E desculpe esta saída rápida mas tenho a família já à espera.

Ele – Até amanhã.

 Novembro de 2013
 Henrique Salles da Fonseca

 

«Voiturez-nous ici les commodités de la conversation»


Isto disse Magdelon, a filha de Gorgibus ao seu lacaio Almanzor, a pedir-lhe cadeiras para que ela e sua prima Cathos recebessem condignamente o Marquês de Mascarille mais os seus requintes de fraseologia amorosa e auto elogiosa com que este se lhes apresentara, em aparato ruidosamente exibicionista, e posteriormente o Visconde de Jodelet, alardeando proezas bélicas, ambos em breve desmascarados pelos respectivos amos, os repudiados pretendentes das donzelas - La Grange e Du Croisy – que com aqueles seus criados combinaram a farsa mistificatória, como vingança pela indiferença das donzelas – as “Preciosas Ridículas” da peça de Molière - pretensiosas jovens provincianas, de mentes retorcidas por leituras de afectação e fantasia, com que o furioso pai e tio Gorgibus termina a sua expansão colérica final contra a ridícula afectação daquelas e contra as fantasias retóricas, e despidas de senso de certas produções livrescas da época, que Cervantes fora o primeiro a referir, relativamente ao artificialismo dos livros de cavalaria que fizeram ensandecer Dom Quixote.
Vem a evocação precedente a propósito do exemplo da prova – colhida na Internet - com que o Ministério da Educação pretende avaliar das capacidades intelectuais dos professores portugueses contratados e o desempenho das suas aulas, cilindrando-os à partida com extraordinárias propostas de questionários charadísticos, de um rebuscamento mistificatório condenável, cuja opção de resposta correcta nem sempre parece estar contida no exercício de escolha múltipla que apontam. Poderei estar enganada, mas cito o exercício 10 como exemplo que me parece incorrecto:

Item 10

A sequência abaixo é constituída por letras do alfabeto português.

A A B A C C D C E E ...

 10. Mantendo o mesmo padrão de formação da sequência, qual das opções contém as quatro letras que permitem continuá-la?

 (A) F E G G (B) F E H H (C) F F G F (D) F F G H

 Tentei resolver a charada e continuei, excluindo o K, W e Y, e o ZZ, sem continuador alfabético:
EEFE / GGHG / IIJI / LLML / NNON /PPQP / RRSR / TTUT / VVXV

Ora, nenhuma dessas opções aparece na escolha múltipla, o © FFGF , parecendo corresponder melhor mas não com exactidão, visto que a progressão da sequência quadripartida das letras do alfabeto nunca retoma as mesmas e o F já estava contido na sequência EEFE. Parece-me, pois, que a resposta deveria ser GGHG.

É apenas um exemplo, mas todo o teste me parece um acervo de bestialidade, afectado e insensato, com o objectivo pouco honesto de avaliar inteligências e paciências que em nada servem para avalizar das competências, mas sim para provocar chufas e risos jornalísticos e dos consequentes leitores de jornais ou ouvintes radiofónicos e televisivos sobre a mediocridade dos professores portugueses, pois acredito que com tanta pequice de prova, de propostas rebuscadas, os resultados não serão brilhantes.

Vivemos na época dos jogos de paciência, como palavras cruzadas, sudokus, e outras diversões do espírito, que a própria internet propaga, em desabono de leituras mais profundas, e por meio deles também se pretende testar a qualidade didáctica dos professores e isso é desonesto.

Como é extremamente rebuscado o texto para o tema da dissertação final, que exige algum tempo de leitura e ponderação, para, por meio de exemplos vividos ou lidos, os incluir nas conclusões de cada um, sobre a tolerância do ponto de vista da aceitação puramente cultural, de respeito pelas diferenças civilizacionais, sem fusão ideológica, caso das burkas nas escolas francesas, ou da tolerância do ponto de vista de generosidade e compreensão pessoais, modo mais comum de condução de aulas com maior ou menor liberdade e aceitação da participação discente, mesmo que esta muitas vezes desvirtue os objectivos da matéria de ensinamento:
«Vendo a história, deparamos com exemplos de ambas as hipóteses: da tolerância como simples permissão do diferente, na condição de este permanecer na periferia cultural e porventura até geográfica, sem questionar e muito menos agredir o núcleo central das convicções e a organização sociopolítica dominantes; e da tolerância como abertura e assimilação do diferente, que arrasta adaptações mais ou menos profundas, tanto no interior do grupo ou do indivíduo que tolera, como no interior dos grupos que são tolerados.
Diogo Pires Aurélio, Um fio de nada, Ensaio sobre a tolerância, Lisboa, 1997

11. Escreva um texto em que exponha a sua opinião sobre as eventuais implicações das duas conceções de tolerância apresentadas no texto, transpondo-as para um contexto escolar.

Fundamente a sua opinião através de uma linha argumentativa clara e coerente.

Se o objectivo da prova é o de excluir professores, deve obter pleno êxito, neste tipo de ratoeira infame. Os professores contratados já passaram os seus múltiplos exames, certamente que das suas componentes específicas.

O que o Ministério da Educação devia fazer era dar-lhes tempo para se prepararem para as suas aulas e não afundá-los em sucessivas reuniões de vácuo, conducentes, as mais das vezes, ao vácuo do “bavardage inutile”. E impor regras de disciplina mais eficazes para que a educação cultural possa ser efectivamente realizada,

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

“Se bem me lembro”


Lembro-me. A notícia trouxe-ma o pai do João, noite alta: “O Kennedy foi assassinado”. A minha exclamação foi de horror sentido: “Oh, meu Deus! E os filhos são tão pequeninos!”. O resto da noite foi passada quase toda em conversa, no desgosto de tão inesperado acontecimento. Mas, no dia seguinte, havia os meus filhos – o João nasceria daí a seis dias, faz hoje 50 anos, a ele dedico este texto, com ternura e o bolo de laranja do seu gosto – e havia a escola, e a casa, os horrores da vida devem ser superados pelas tarefas diárias, acabei por adormecer. No dia seguinte, na esplanada da Praça 7 de Março, em Lourenço Marques, o pai do João contava, com ar sorridente, aos amigos com quem discutia os rumores – não só os das saias de Elvira, a evolução fizera-se em larga escala, desde o “Fradique Mendes”, pelo menos entre a rapaziada interessada, já dos tempos do liceu Salazar de Lourenço Marques - contava ele da minha exclamação nocturna, prova de uma sensibilidade talvez de tontice, quando os colegas dissertavam de preferência sobre os desígnios do homem que tantas inovações introduzira no seu país e no mundo. Mas todos me olharam sorrindo, a história fora contada com certo encanto, ficou-me na lembrança, embora intimidada pelo reconhecimento da insignificância da frase, na dimensão da política.

Mas o horror dessa morte e de tanta gente da sua família, posteriormente, aparentemente perseguida pela ferocidade do destino ou da insídia humana, formou marco na evolução da história, que me fez recordar outros momentos fatais inesquecíveis - a morte de Sá Carneiro e Amaro da Costa, quando eu estava a dar uma aula no liceu de Cascais e um aluno desvairado entrou na sala com a notícia, falando em sabotagem… Ou no 11 de Setembro de 2001, quando tomava café no Café do meu filho Luís e as imagens com a notícia começaram a sair no ecrã da televisão, mostrando repetidamente a penetração e a saída dos aviões nas duas torres com as explosões e o rastro de fumo, e outra e outra vez, e a agonia do que se pensou imediatamente que iria passar-se e já estava a passar-se… Ou ainda, tempos antes, em 24 de um tal Abril, quando soube logo pela manhãzinha, pelo telefonema em assustada surdina, da Flávia, nossa amiga de então, que houvera um golpe militar que derrubara o governo de Marcelo Caetano e de Américo Tomás e eu mal ligara ao caso, indo para as aulas, que iniciavam, imediatamente, o seu percurso de desestabilização e alvoroço progressivos, na liberdade, no desinteresse e na indisciplina.

Todavia, a imagem de Kennedy não era totalmente despida de zanga, no meu foro íntimo, embora lhe admirasse o garbo e a mocidade da mulher, figuras constantes do jet set e da amenidade de trato. A verdade é que a liberalização democrática, proposta por aquele, tendo efeitos sobre a discriminação racial no seu país, como de justiça, aliás, tivera largas consequências sobre os movimentos de libertação no ultramar, que começáramos a viver, sucessivamente alarmados. Guiné, Angola, Moçambique – após a independência da Argélia, pela França - eram terreno de luta que movimentou a pronta reacção de Salazar, defensor ferrenho do seu legado pátrio ultramarino.

Intimamente pensava que o apoio aos movimentos de libertação deviam começar, a serem honestos, pelos países independentes de que americanos, nortenhos, centristas ou sulistas, eram igualmente usurpadores, autónomos desde tempos recuados, mas igualmente ocupantes indevidos, se o éramos os que não gozavam de autonomia. Em África nós trabalhávamos, com o pensamento em pátria, como se trabalhava nas Américas do Norte, do Sul e do Centro, pátrias independentes, em territórios que amávamos como nossos, na igualdade condicionada pela educação, que íamos fornecendo a todos os que conseguiam aceder a ela. Como aqui. Não com o esplendor das riquezas e poder das tais Américas independentes, mas gradualmente proporcionando cultura e estatuto a todos os que os podiam adquirir. As aulas que dei à noite – juntamente com os demais colegas - ajudaram na formação de tantos daqueles.

Salazar protegeu os seus territórios, defendeu-os corajosamente contra os opositores. E foi esteio, igualmente, do governo sul africano e das Rodésias, enquanto durou. Hoje a África é palco de luta vária, de fome, sofrimento, crime e maior exploração e governação ditatorial do que dantes, todos o sabemos.

Mas Kennedy outras coisas fez, boas e más, e o texto de Vasco Pulido Valente no-lo refere com saber maior. “Símbolos”, eis como se intitula o seu artigo do “Público”, de 22 de Novembro, no quinquagésimo aniversário do assassinato de Kennedy:

«Toda a gente na minha geração se lembra do exacto momento em que soube do assassinato de Kennedy. No meu caso, estava num café à espera dum amigo, e, ao balcão, meia dúzia de cavalheiros com gravatas discutiam a notícia que a Emissora Nacional acabara de dar: ainda bem, diziam eles, que em Portugal não havia coisas dessas. Mas, para mim, foi um choque pessoal, como se o tivesse conhecido. Porquê? Não por razões políticas, com certeza (um assunto a que voltarei). Mas porque o homem, em 1963, representava a modernidade. Depois dos “velhos” que vinham da guerra e das suas disciplinas – Truman, o de Hiroxima, e Nagasaki, e Eisenhower, o da guerra da Coreia – aparecia como o representante de um novo mundo, próspero e pacífico, sem a sufocação das regras que o século XX herdara do século XIX.

O sentimento foi tão geral, que a Livraria Moraes, do António Alçada Baptista, editou logo dois livros sobre o presidente morto: um ensaio biográfico e uma antologia de discursos, que traduzi (à pressa e mal) e a que juntei um prefácio ignorante e pretensioso. A revista “O Tempo e o Modo” , em que o João Bénard da Costa mandava, também resolveu fazer um número especial, por puro sentimento e pela suposição pateta de que o gesto incomodaria muito Salazar. Ainda por cima, as trapalhadas da investigação do assassinato – a direcção e a quantidade de tiros (dois, três, quatro, oito), a prisão de Oswald, um pobre-diabo a roçar o louco obsessivo, e a expeditiva liquidação de Oswald por um dono de um cabaré com ligações à Máfia – permitiam especulações sem fim e ajudavam a refulgir a nossa virtude democrática.

A excitação nunca passou destas superficialidades, porque, fora o espectáculo, John F. Kennedy , infelizmente para ele e para o mundo, era um Presidente medíocre. Excepto o tratado com a URSS sobre a limitação de experiências nucleares na atmosfera, falhou persistentemente no resto. Autorizou a expedição à Baía dos Porcos, uma aventura que fortaleceu Fidel. Na “cimeira” de Paris, querendo mostrar moderação, convenceu Khrutchov da sua fraqueza e provocou indirectamente a “crise dos mísseis”. Não conseguiu que o Congresso passasse as leis contra a segregação e as leis sociais, que só depois Lyndon Johnson veio a impor. E, pior ainda, liquidou o Presidente do Vietnam do Sul e inaugurou a presença militar americana numa região em que não havia nada a ganhar. Mas Jack e Jackie não deixaram por isso de ser um símbolo para os milhões que nasceram durante a guerra ou logo a seguir a ela: o símbolo da juventude e do poder.»

Penso que muito pouco tempo esteve Kennedy na sua Presidência para provar cabalmente das suas capacidades. Mas imperou no casal e nos filhos a simpatia que a beleza e a juventude sempre atraem. Como sucedeu com a Princesa Diana. Com Grace Kelly. Com Marilyn. Com Elvis. Com Sá Carneiro, de quem tanto se esperava e tão pouco tempo pôde provar os seus méritos. Com Nicolau II e a família inocente. Com D. Carlos e Luís Filipe…

Ao contrário do que diz o poeta, quando Deus quer, mesmo que o homem sonhe, a obra não nasce. Ou fica só em botão. E isso é sempre injusto. Como os desastres no mundo.

Mas o efeito Kennedy permanece, na lembrança e na repercussão. Deus e os homens o quiseram.

 

 

terça-feira, 26 de novembro de 2013

“Cada um é seus caminhos”


Já tinha dado pelo excesso de emoção à volta da questão da Irlanda e da sua libertação dos dinheiros da Troika, até mesmo na questão do programa cautelar, de que ela prescinde, coisa que o nosso Governo também promete para 2014, mas sempre na dúvida, no que recebe o apoio da nossa Oposição nas suas acções de extremo impacto, como greves, invasão de escadas, gritaria e estardalhaço, embora sem pedras de estilhaço ainda. Porque a verdade é que a Oposição não entra em crenças dessas, convicta dos seus intuitos de destruição do Governo e do País por via vária de contestação em que a acusação impera.
Mas gabam muito a Irlanda e o seu Governo, excluindo, todavia, a colaboração do povo e outros elementos partidários irlandeses para ajudar o seu Governo a resolver os problemas de endividamento, sacrificando-se, com os mesmos cortes nas despesas, e até superiores aos de cá, mas com rendimento superior, proveniente do seu trabalho.

O texto de João Miguel Tavares, “Por um Portugal à Irlandesaé eloquente nos dados que aponta, sobre o lá e o cá. Mas não resolve o problema cá, que a gritaria e as greves continuam em grande afinco, e ninguém recua nisso nem faz exame de consciência porque somos refractários a leituras e o texto de João M. Tavares não é sequer lido, ou é ostensivamente ignorado. Felizmente, ontem verifiquei – há anos que não ia ao Continente de Cascais – verifiquei que as mesas de almoço estavam preenchidas por grupos abrangendo famílias – felizmente, pois, continuamos a bem comer e beber. Eu própria lá comi e não deixei de procurar a sobremesa nas gostosuras do “Amor aos pedaços”, das minhas lembranças de anos precedentes. Nem a questão dos afogamentos e fomes nas Filipinas e zonas afins me fez solidarizar-me com esses sofrimentos do mundo, o estômago reclamando alto os seus direitos de amor, aos pedaços que fosse. O bem-estar geral tudo mergulhou sobre os apelos do meu egoísmo. Quero confiar no Governo, que aliás, vai mexendo no meu bolso para se livrar da Troika.
Quanto à questão que João Miguel Tavares põe sobre diferenças estruturais entre portugueses e irlandeses, direi com António Gedeão
“Inútil seguir vizinhos.
Querer ser depois ou ser antes
Cada um é seus caminhos
Onde Sancho vê moinhos
D. Quixote vê gigantes.”

Deixemos os caminhos dos gigantes aos gigantes, a nossa medida é outra. Pelo menos agora.

 POR UM PORTUGAL À IRLANDESA

Sugerir que a Irlanda não se submeteu à troika e à austeridade, e que por isso foi bem sucedida, é coisa que daria para rir, se não fosse mais um triste caso de cegueira ideológica e de manipulação intelectual.

E de repente, toda a gente descobriu que a Irlanda é que é bestial. Que o Governo o diga, e a queira imitar, até tem uma certa lógica, tendo em conta que a Irlanda sempre foi apresentada publicamente como "o país que Portugal quer copiar", tal como a Grécia foi apresentada como "o país que Portugal quer evitar".

No entanto, subitamente, a Irlanda parece o tipo lá da rua que ganhou o Euromilhões: um dia acorda e descobre que está cheio de amigos, incluindo vários que nunca antes tinha visto na vida.

Eis o porta-voz do PS para assuntos económicos sobre a Irlanda: "Procurou, sempre que possível, obter um ajustamento que considerasse também o crescimento económico" e "ainda este ano, na preparação do Orçamento para 2014, a Irlanda recusou o nível de austeridade que a troika queria impor". Eis Mário Soares sobre a Irlanda: "Soube ter um Governo competente para sair [da crise].

Porquê? Porque não foi subserviente e a política foi sempre – ou quase – dominante sobre os mercados usurários." Eis Carvalho da Silva sobre a Irlanda: "Em Portugal estamos a ser objectivamente conduzidos por políticas de contínuo empobrecimento. A Irlanda tem uma actuação de governação de defesa do interesse nacional e de afirmação dos seus valores. Em Portugal não. Temos governantes a apoiar a troika."

Eu não sei que jornais estes senhores andam a ler, mas não devem ser os mesmos que eu leio. Nos meus jornais, li que o Orçamento irlandês para 2014 – o tal pós-troika – impõe cortes de 2,5 mil milhões de euros, e entre as suas propostas está a perda do acesso gratuito à saúde de 10% dos pensionistas com mais de 70 anos. Será que Seguro, Soares e Carvalho da Silva concordam com a medida?

A Irlanda reduziu o seu défice de 30,6% em 2010 para 7,3% (estimativa) em 2013 e quer atingir 5,1% em 2014. Estamos a falar de um esforço muitíssimo mais violento do que o português – uma queda de 25,5 pontos percentuais. Segundo o Financial Times, os cortes na despesa irlandesa desde 2008 já ascendem a 28 mil milhões de euros. O défice português em 2010 foi de 10,2%, e aquilo que se pretende é que ele venha a ser de 4% em 2014 – ou seja, uma diminuição de 6,2 pontos percentuais, quatro vezes menos do que a Irlanda. E para cortar os eternos 4,8 mil milhões de euros com a famosa "reforma do Estado" tem sido o cabo dos trabalhos. Comparem estes valores, se faz favor, e digam-me sem se rirem que a Irlanda saiu do programa da troika com a casa arrumada e confiança para dispensar um programa cautelar porque "a política foi sempre dominante sobre os mercados usurários".

Defender tal coisa é aplicar o velho ditado "a galinha da vizinha é sempre melhor do que a minha" à macroeconomia. A Irlanda só é espectacular porque fica a espectaculares 2500 quilómetros de distância. Não, a Irlanda não fugiu à austeridade. Pelo contrário, aplicou-a com mais afinco do que Portugal, e com protestos nas ruas. Claro que a sua economia nada tem a ver com a nossa. Claro que o seu sector exportador é duas vezes e meia o tamanho do português em percentagem do PIB. Claro que não foi tão penalizada pelo desemprego. Claro que é preciso analisar cada país, perceber as suas especificidades, em vez de andarmos a patrocinar as habituais queixas por atacado. Mas sugerir que a Irlanda não se submeteu à troika e à austeridade, e que por isso foi bem sucedida, é coisa que daria para rir, se não fosse mais um triste caso de cegueira ideológica e de manipulação intelectual. João Miguel Tavares 21/11/2013

 

domingo, 24 de novembro de 2013

O “Carungo” em “carta da Zambézia” do bisavô Gavicho






Da velha mala do meu pai, onde os livros que não cabiam na sua estante tinham sido arrumados pela minha irmã, retirei um de que há muito ouvira falar, sem saber que existia tal preciosidade no espólio da minha família. Tratava-se de “Cartas da Zambézia” de Francisco Gavicho de Lacerda, avô do Rui e do Otto, bisavô de meus filhos Ricardo, Paula e João, filhos do Rui, de minhas sobrinhas Mirene e Madalena, filhas do Otto, Rui e Otto filhos de Luís, além de outros primos, filhos de um meio irmão do Rui e do Otto, Luís, de um primeiro casamento do pai, amigos dos meus filhos, mas com raras aproximações, que os vendavais do tempo foram disseminando pelo mundo. Mas outros filhos “Lacerda” teve o “avô Gavicho”, segundo designação dos manos Rui e Otto, e outras famílias se dispersaram no mundo, alguns bem simpáticos, no dizer da minha filha Paula, que conheceu uma tia, irmã de seu pai, no dia do funeral deste.
E deste jeito bíblico, embora com mais modéstia na indicação das idades – largamente centenárias as dos patriarcas do Génesis – se aponta a via paterna da família Lacerda, com assento no “patriarca” ilustre e de brasão que, nas suas “Cartas da Zambézia” forneceu tantos dados sobre a terra de que a minha amiga, nove décadas depois - o livro foi publicado em 1923, em 2ª edição - fala sempre com emoção e entusiasmo – os mesmos que impeliram o “avô Gavicho” da designação do seu neto Rui, a defender essa terra, para onde foi “trocando a luzente fardeta de cavalaria pela indumentária simples de colono”, “a moirejar sem descanso até que, porfiando e lutando, conseguiu tornar-se arrendatário de um “prazo” que, ao presente, lhe assegura um rendimento algumas vezes multiplicado pelo soldo que, decerto, lhe caberia no posto de comandante de um batalhão, se tivesse seguido a carreira militar.”
São estes dados colhidos do Prefácio do livro, pelo seu amigo e ex-colega jornalista, escritor Affonso Gayo, que, no penúltimo parágrafo, resume assim o conteúdo do livro de Gavicho de Lacerda: “Da sua leitura conclui-se qual é o valor daquela rica possessão, fica-se sabendo o que se tem feito e o que é necessário fazer para a tornar mais valorizada. Estimulam, criam iniciativas e dão fé aos que pretendam emigrar por aquelas paragens. Explicam-nos o modo como o emigrante aprende, ali, a ter iniciativas, se habitua a proceder e a deliberar, a fim de vencer as agruras do clima, a suportar com coragem as dificuldades da adaptação e a reunir, pelo trabalho e estímulo individual, um somatório de energias com que pode combater com a saudade dos entes caros e com a nostalgia do rincão onde nasceu.”
Foi com curiosidade que o li, desde a dedicatória à mocidade actual “por intermédio do “Ill.mo e Ex.mo Sr. Ministro da Instrução Pública”: «Desde criança que ouvimos dizer – “O futuro de Portugal está nos mares”. – Quando do “Ultimatum” de 1891, em que a nação despertou pela vibrante e terrível chicotada de Jonh Bull, e que fez que trocássemos a modesta farda de estudante militar pelo fato de caqui, foi lá, no ultramar, que fomos ver e aprender o quanto havia de verdadeiro, naquelas palavras…» dedicatória que conclui: « Na Zambézia trabalhámos, lutámos; à Zambézia dedicamos o amor de segunda pátria. Se a mocidade tirar algum proveito da leitura deste livro, consideraremos isso como justo galardão e daremos por bem empregados perigos, trabalhos e desgostos que por lá passámos.»
Vária é a gama de assuntos e fotos – entre as quais a do autor, garbosa figura, na foto inicial, mais jovem e descontraída a de interior, rodeado de africanos e arvoredo, perto da residência do Carungo – “O Autor, um ano depois de ter partido para a Zambézia”.
Curioso volume de memórias sobre um território, pois, que desbravou e amou, não poupando críticas a certas formas de extorsão ou de desleixo das políticas portuguesas, que dificultavam e atrasaram sempre o desenvolvimento da colónia,  pelo atraso das concessões de terrenos, da construção de vias e portos «Lá fora somos conhecidos pelo vergonhoso epíteto de “empecilhos da civilização”»… «Devemos considerar que, se continuamos a ser uma nação livre e independente, unicamente o devemos ao nosso grande domínio colonial, por conseguinte têm as colónias todo o direito a ser dotadas com os melhoramentos que a civilização e o progresso indicam e as suas urgentes necessidades reclamam.»
Era um homem de fibra, o avô Gavicho, mas inúteis são os seus conceitos hoje a que - embora insistindo-se no “tal futuro marítimo português centrado no mar ”, não o além-mar colonial, há muito morto em colapso, mas num mar de turismo ou carga que exige dinheiro, também em colapso - se ficará indiferente perante dizeres para sempre inúteis de valorização de propriedades, como no passo seguinte: “O Chuabo Dembe é uma das primeiras propriedades agrícolas da Zambézia, causando inveja a alguns arrendatários. É banhada pelo Rio dos Bons Sinais ou de Quelimane, e separada da vila pela Avenida da Circunvalação. Cortam-na os canais Namarra e Nhama e há meia dúzia de anos era mato espesso e impenetrável, sendo por isso ainda mais admirávela sua transformação». E segue-se a eloquente descrição.
O horror das secas, a praga dos gafanhotos que tudo devastam, a indolência manhosa da raça indígena, as operações de infiltração pelo interior em colunas de que fez parte e que descreve com dados de rigor, as missões católicas, o absurdo envio pela Metrópole de degredados como colonos, os palmares de coqueiros que ele próprio mandou plantar e o valor comercial da copra, assim como outras riquezas e anomalias várias, tudo isso é descrito com vigor e desassombro, em páginas apaixonantes de história pessoal e colonial, que bem poderiam inspirar os empresários cinematográficos para um filme de tão diversa cenografia.
Deste livro que meu filho mais velho encontrou um dia na Real Biblioteca Portuguesa do Rio de Janeiro, transcrevo excertos da primeira carta, sobre o “Carungo”, onde os meus filhos também brincaram na adolescência, na casa do avô Luís e da avó Irene, jogadora impenitente da canasta com as suas amigas de Quelimane, carta que contém, entre outras, a foto da casa, que reconheço por ter fotos idênticas.
Entretanto, a curiosidade levou-me a procurar o livro na Internet, que encontrei bastamente exposto. Creio que a 1ª edição foi de 1920, a 3ª de 1939, e, naturalmente, existe na Biblioteca Nacional. Penso que merece o destaque e maior ainda poderia ter tido durante os tempos colonialistas, em que poderia ter contribuído para sanar erros da administração de lá como de cá. Passou. Mas o retrato do povo português lá está, com os defeitos e virtudes de sempre. E entre esses, o retrato de Francisco Gavicho de Lacerda, homem de coragem e de princípios, “da velha linha dos Cabrais”, diria o seu neto Rui por brincadeira. Fico feliz por meu pai o ter lido, provavelmente comprou-o quando foi transferido para Quelimane, por um daqueles motivos da governação colonialista, de ostracismo tanta vez, e injustiça.

«Os Prazos da Zambézia»

Nota em rodapé: No prazo Carungo existem hoje 300 000 palmeiras sendo cerca de 100000, pertencentes ao arrendatário e o resto a vários proprietários, filhos do país, e a colonos que ali encontraram campo propício para a sua actividade, assegurando, também de alguma forma, o seu futuro. Devido à sua pequena área, é dos poucos prazos que têm mais da terça parte agricultada e plantada. As plantações estão divididas pelos três distritos de Carungo, Nametange e S. Domingos, em que está dividido o prazo, o que proporciona aos indígenas o trabalharem próximo das suas povoações, não havendo necessidade de os deslocar para longe delas. Este prazo, como acontece com os outros da Zambézia, está cortado por uma bela rede de estradas carreteiras, tendo-se construído pontes sobre os cursos de água e aterros sobre os terrenos pantanosos. Constroem-se nele embarcações de vária tonelagem; fabrica-se tijolo, cria-se toda a espécie de gado e não há género no país que ali se não cultive, quer para alimentação dos trabalhadores, quer dos animais. (…)»

««Perde-se na noite escura dos tempos a origem da antiga e histórica instituição dos prazos da Zambézia, cujas raízes fecundas, alastradas por esta tão vasta como rica região, têm resistido a todos os golpes , como os de 6 de Novembro de 1838, 22 de dezembro de 1854, e 27 de Outubro de 1880, lhes vibraram, a fim de extinguir tão benéfica como única e profícua instituição.

Por mais esforços que tenhamos feito e por mais trabalho que tenhamos empregado, ainda não conseguimos, até hoje, descobrir a origem do sistema dos prazos, a que a Zambézia deve o estado de riqueza e florescência a que chegou.

Mas parece que a divisão do território em prazos é quase tão antiga como o nosso domínio, assim como também datam dessa época as obrigações que regulavam o estabelecimento de portugueses naquelas magníficas paragens. Mais tarde, António Enes quando Comissário Régio, que a Moçambique dedicou excepcionais cuidados, viu, com olhos de ver, que o verdadeiro caminho para a prosperidade e engrandecimento da Zambézia, era o sistema dos prazos que ali estava enraizado há séculos, na índole dos seus povos, educados por gerações sucessivas de portugueses que para a Zambézia iam trabalhar, viver e morrer, e que da Zambézia faziam uma segunda pátria.

Aquelas vastíssimas extensões de terreno, cobertas de florestas virgens, de pântanos mortíferos, estão hoje transformadas em viçosos palmares de milhões de coqueiros, de plantações com léguas de extensão, de cana sacarina, de algodão, de sisal, de tabaco, milho, etc. (…………….)

O prazo Carungo, de que somos arrendatário, é um dos mais pequenos da Zambézia, situado na margem esquerda do Rio dos Bons Sinais, a umas dez milhas da Vila de Quelimane. Estende-se até à foz do Rio Linde, ficando, por assim dizer, encravado entre os prazos Inhassunje e Pepino..

Tem três estações agrícolas: Carungo, Tumbuíne e S, Domingos, com cerca de 83 000 palmeiras, metade em produção e 20 000 em viveiro, para novas plantações. A natureza do terreno, que é muito baixo, como todo o do grande delta do Zambeze, tem feito que hajam sido infrutíferas todas as outras tentativas de diversas plantações que temos experimentado, como café, borracha, sisal, etc.

Produz arroz em grande quantidade, feijão, mandioca e hortaliças e tem lindos pomares de laranjeiras, tangerineiras, ateiras, goiabeiras, papaieiras, etc

O seu arrendamento foi-nos dado por mais 15 anos, olhando aos serviços que prestámos em diversas campanhas e ao facto de termos agricultado mais de 1200 hectares de terreno a que, pelo primitivo contrato, não éramos obrigados.

É um dos três prazos da Zambézia que ainda não foi absorvido pelas grandes companhias e, apesar de termos pedido autorização ao governo e esta ter sido concedida e há dois anos publicada no Boletim Oficial da Província, para o trespassarmos para a sociedade do Madal, não o fazemos, porém, por nos acharmos ainda com forças para trabalhar, não obstante vinte anos de permanência nesta região, e por desejarmos que os nossos filhos venham, mais tarde, a seguir as nossas pisadas e acabar a nossa obra ideal de plantar todo o terreno susceptível de o ser. (…..)»»

Conclui a carta, após a referência à hospitalidade das suas gentes, com a crítica à indiferença dos governos por melhoramentos tão frequentemente pedidos e que “o seu desenvolvimento e a sua riqueza reclamam”, e pelos quais ele continuará sempre a bater-se.


P.S.

O Dr Salles da Fonseca colocou no seu blog “A Bem da Nação” o texto supra, semeado de imagens que colheu na Internet, algumas acrescentadas de dados biográficos de homenagem a Gavicho de Lacerda, que transcrevo com o auxílio da lupa.
O meu reconhecimento a Salles da Fonseca e simultaneamente aos familiares do “Avô Gavicho” que colocaram tais “lápides” para a posteridade daquele. Na realidade, tem sido uma surpresa contínua para mim: Descubro que Gavicho de Lacerda, tem uma Fundação com o seu nome, aberta pela bisneta Maria Paula, filha de  Luís Lacerda, o tio Luís, também já falecido. Eis os textos das imagens supra, extraídas da Fundação e mais perceptíveis naquela:

1º ícone:
GAVICHO DE LACERDA
23 de Julho de 1873 – 23 de Julho de 2013-11-24
 
Vamos celebrar os     140 ANOS     Do Nascimento do Proprietário     Que marcam o início da nova vida do Carungo

GAVICHO SALTER DE SOUSA DO PRADO DE LACERDA
 
Nasceu em Aljubarrota em 23 de Julho de 1873 e veio para Quelimane em 1893. Foi agraciado com as Medalhas Campanhas do Ultramar D. Amélia e com as Comendas de Mérito Agrícola e da Ordem Militar de Cristo.
 
E por sua vontade foi sepultado na Terra a que dedicou 30 anos de uma vida de Amor e Trabalho e que o destino quis que fosse imortalizada como VILA GAVICHO, perpetuando a sua passagem por este lugar especial onde sempre semeou a PAZ e a PROSPERIDADE
23 Julho, 7 da manhã – colocação de coroa de flores na campa . 27 de Julho, 1 da manhã, celebração da missa seguida de convívio.  Local: Capela de Nossa Senhora da Nazareth, Vila Gavicho, Carungo
 
2º ícone. Encimando um palmeiral:
 
«O Carungo é um dos três prazos da Zambézia que ainda não foi absorvido pelas grandes companhias e, apesar de termos pedido autorização ao governo e esta ter sido concedida e há dois anos publicada no Boletim Oficial da Província, para o trespassarmos para a sociedade do Madal, não o fazemos, porém, por nos acharmos ainda com forças para trabalhar, não obstante vinte anos de permanência nesta região, e por desejarmos que os nossos filhos venham, mais tarde, a seguir as nossas pisadas e acabar a nossa obra ideal de plantar todo o terreno susceptível de o ser.»

In “Cartas da Zambézia, 1923 - Gavicho de Lacerda - O último arrendatário dos extintos prazos. 

3º ícone, contendo o emblema da Fundação ”Prazo Carungo”, “Lugar de Paz e Prosperidade desde 1897”, e o nome da sua autora, Maria Paula Neves Sousa Prado de Lacerda.