sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Três tristes tigres



Três artigos de Vasco Pulido Valente sobre a Decadência de Portugal, saídos no Público em 21, 22 e 23/2, o primeiro sem subtítulo, o segundo, prolongado o título com o comentário síntese “o paradoxo da imitação” e o terceiro com “O bom aluno”. Três artigos de uma reflexão feita de saber e humor que, mergulhando em Antero – este, por sua vez apoiado em Herculano e influenciando Oliveira Martins – apontando como causas primeiras dessa decadência o Concílio de Trento, o absolutismo e o sonho ultramarino, revelam outros dados justificativos dessa decadência, já pressentidos no final de “Os Maias”, com a referência crítica de Ega à imitação do calçado bicudo francês acentuando as biqueiras das botas, em arremedo imitativo servil e provinciano, que se estendia, no século XIX, aos vários campos de actuação – moda, política, literatura. Tal característica de imitação de um país vivendo em permanente constatação da sua inferioridade cultural, prolongada no tempo até aos nossos dias, revela-se, contudo, paradoxal, pois não só o não consegue, em estigma social de inércia cultural desde sempre transparente, como pretende opor-lhe uma exaltação orgulhosa e passadista de outros parâmetros de actuação sua, valiosa na globalização do mundo, que vai progredindo, contudo, na indiferença natural desse papel passado, já irrelevante. Segue-se a constatação do falhanço, com Cavaco Silva atestando a “menoridade indígena” ao considerar o país “um bom aluno”, numa modernização de empréstimo, assente no betão mais do que num real desenvolvimento cultural, e terminando em catástrofe. Três artigos de excelência argumentativa que poderiam conduzir um povo menos prostrado a uma ponderação de seriedade mais eficaz.

O primeiro: «A decadência de Portugal»:

«As grandes crises têm invariavelmente provocado grandes teorias sobre a “decadência” de Portugal. As teorias, como é óbvio, variaram. Mas nunca como hoje houve uma tão larga indiferença pelo nosso destino colectivo, ou seja, pela história e pela cultura, que nos trouxeram onde trouxeram.
As causas da desgraça em que vivemos e do esquálido futuro que aí vem são vagamente distribuídas por erros que toda a gente cometeu, pela intrínseca perversidade da política ou pela maléfica influência do “estrangeiro”. Sobre aquilo em que Portugal se tornou no fim do século XIX e no século XX nem uma palavra. É como se o país só existisse desde 2010, a partir do fracasso da democracia e da iminência da bancarrota.
Em 1871, Antero de Quental fazia uma conferência, parte das famosas “conferências do Casino”, em que atribuía a decadência indígena a três “fenómenos capitais”: “a transformação do Catolicismo pelo Concílio de Trento”, “o estabelecimento do Absolutismo, pela ruína das liberdades locais” e a obsessão geral com “conquistas longínquas”. Claro que os “fenómenos” de Antero não eram exactamente o que ele julgava. De qualquer maneira, serviam para “explicar” a crise portuguesa. O “despotismo religioso” imposto por Trento acabara com a liberdade de consciência e promovera a irresponsabilidade do indivíduo. O Absolutismo tornara a sociedade dependente do Estado, de quem passara a esperar a sua salvação e a temer a sua perdição. E as “conquistas” distraíam o povo do trabalho produtivo e do desenvolvimento interno.
As teses de Antero, apesar da sua manifesta fraqueza, foram o cânone da esquerda até muito tarde e inspiraram pensadores menores como o operoso António Sérgio. De facto, se diagnosticavam os males do país, também implicitamente ofereciam remédios: o anticlericalismo, a democracia e o que se veio a chamar “colonização interna”. A imagem que os portugueses tinham de si próprios (os da classe média, claro) mudou. Portugal não mudou imediatamente, excepto para pior. Mas no pensamento posterior a influência de Antero permaneceu e em parte continua a ser relevante mesmo em 2014. Só que 2014 não lhe responde. Agora, ninguém se importa com a natureza de Portugal.»

O segundo: «A decadência: o paradoxo da imitação»:

«Educados na hipocrisia e na imoralidade pelo Catolicismo, na resignação e na dependência do Estado pelo Absolutismo e no desprezo pelo trabalho pelas Conquistas, os portugueses não se recomendavam à “geração de 70”.
A “geração de 70”, que veio a público numa época de recessão – provocada pela diminuição das remessas do Brasil –, não encontrava nada de redentor na sociedade que a Regeneração (de 1851) fizera. Para Eça ou para Ramalho, Portugal não passava de uma imitação da França, traduzida em calão ou em vernáculo. A grande obra de Eça, Os Maias, acaba na Avenida da Liberdade, uma triste cópia de um boulevard, com amargas considerações sobre o carácter postiço da civilização indígena e da classe média que se passeia na rua, ociosa e ridícula.
Mas se os romances eram copiados da literatura francesa e também a poesia, os costumes, a moda e o próprio regime da Carta e do Acto Adicional vale a pena dizer que desde o princípio do século sempre o tinham sido. A “inteligência” educada e cosmopolita pedia um país “forte” e, sobretudo, “original”, mas não se lembrava (excepto no caso muito particular de Eça) que ela mesma se alimentava da França e um pouco da Inglaterra e da Alemanha. Sonhando com arroz no forno e com o Portugal típico do Senhor D. João VI, “modernizado” ou “regenerado”, queria simultaneamente um Portugal que não fosse diferente da Europa. O que hoje se chama “identidade nacional” coincidia, para ela, com uma “identidade” que se procurava nas grandes potências do século. A imitação acabava assim por se tornar na nossa principal fraqueza e na única verdadeira via de salvação.
Este paradoxo continua a acompanhar os portugueses. Por um lado, não há um cantinho da nossa vida que não se compare com a Europa e não há triunfo que não consista em encontrar semelhanças entre as coisas de lá e as coisas de cá. Por outro lado, os governos proclamam a nossa singularidade atlântica ou (nos casos de incurável loucura) mundial. O país balança entre um “papel” na Europa, que não encontrou, e um “papel” em Angola, no Brasil ou numa selva qualquer da África ou da Ásia, que manifestamente o excede. De qualquer maneira, como lamentava Eça, nesta apregoada época de “globalização”, Portugal está “desempregado”. Ninguém precisa dele e ele precisa urgentemente de sair da sua velha irrelevância. Imitando, sem imitar, claro. Como de costume e com os resultados do costume.http://s.publico.pt/NOTICIA/1625693http://s.publico.pt/europa/1625693http://s.publico.pt/franca/1625693http://s.publico.pt/africa/1625693http://s.publico.pt/brasil/1625693http://s.publico.pt/portugal/1625693»

O terceiro: «A decadência: “o bom aluno”

«Empurrado pelas circunstâncias, foi Cavaco Silva quem finalmente atestou a menoridade indígena com a expressão “o bom aluno”. Bom ou mau o aluno é por natureza um ser incompleto e subordinado. A partir da altura em que se reconheceu como tal, Portugal adoptava para si o “modelo europeu”, a que de resto se conformou com zelo e até às vezes com entusiasmo.
Mas Cavaco, como a multidão de “modernizadores” que o precederam e seguiram, ignoraram dois pontos fundamentais. Primeiro, a sociedade não muda pela simples vontade política do poder. Segundo o “atraso” do país não se curava simplesmente com alguma disciplina financeira (a que, aliás, nunca chegou); ou com obras públicas para impressionar o estrangeiro e espantar o patego.
Claro que o país tinha de se tornar compatível com a civilização material a que pertencia. Só que, como habitualmente sucede com os plagiadores, exagerou. Os sapatos demasiado bicudos do epílogo de “Os Maias” não se distinguem em substância do excesso de amor pelo betão, que em parte nos levou ao presente sarilho. Pior ainda: a burguesia e a classe média, a que em última análise se devia a miséria de Portugal, e a populaça a que ela fora imposta, também adoptaram as regras do “bom aluno” e pediram irrecusavelmente o estatuto e a prosperidade de que lá fora gozavam os seus pares e que a nossa economia, fraca e quase paralítica, não lhes podia dar. Houve desde o princípio um fosso entre o optimismo oficial do “bom aluno” e o que, na sua inocência, os portugueses queriam e esperavam.
Contrariada ou alacremente, o Estado preencheu esse fosso e, para o preencher, pôs de parte o código do “bom aluno”, como se ele já não lhe servisse e o país se bastasse a si próprio. Cavaco assistiu calado a este desastre, que ele próprio provocara, e consentiu sem uma palavra que a sociedade e o Estado se afundassem tranquilamente em dívidas tão absurdas como irredimíveis. Com a salvação da Pátria do PSD e de Passos Coelho voltaram as pragas tradicionais da “decadência” e do “atraso”, que depressa redescobriram os vícios atávicos do português: a sabujice, a dependência, a resignação e uma espécie de sebastianismo de trazer por casa na forma obscura e longínqua do BCE. Nem falta a ditadura dos partidos do centro, nem a melancólica impotência do Presidente da República. Depois do fracasso da “modernização” democrática, virão vinte anos de vacas magras e de cinismo ou desespero. E agora o remédio é duvidoso e talvez mortal.»
Vasco Pulido Valente

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

“Cai neve na natureza”



Sempre estranhei a pena de morte como lei facinorosa de que o homem se arreigou como deus poderoso, sobretudo se praticada em países de grande tradição humanista e razoavelmente seguidora das práticas bíblicas inspiradas no Novo Testamento e já contidas no Velho, nos Mandamentos que Deus entregou a Moisés, em que o “Não Matarás” ocupa o 5º lugar (na sua feição final), a vida humana considerada no seu caráter de inviolabilidade, como algo sagrado, devido a um único criador, omnipotente, omnisciente, omnipresente.
É bem verdade que nunca esse facto incomodou grande coisa a criatura por Ele criada, pois sempre essa se entreteve a matar e a esfolar, a queimar, a crucificar, a fuzilar, a guilhotinar, a esfaquear…… E a instituir em lei a pena de morte. Entre nós também a houve, mas a nossa foi abolida no século XIX, o que não aconteceu noutros países mais poderosos, e os Estados Unidos não foram unânimes na sua abolição, por muito liberais que se mostrem, com uma bela estátua a demonstrá-lo.
Significa isso que também o homem se arma em omnipotente, emparelhando com o Deus que tudo criou, o Bem como o Mal.
Realmente, o homem cria vida, por meios artificiais, como um deus defeituoso, criando seres defeituosos, não naturais. Também descobre o remédio que cura e nisso é extremamente capaz, cada vez indo mais longe na descoberta científica.
E criou a sinistra eutanásia para extinguir o sofrimento, com a anuência do sofredor, embora poucos países sigam a prática criminosa.

Mas as crianças, Senhor?
Porque lhes dais tanta dor?
Porque padecem assim?

O facto é que padecem e isso choca muito, as crianças inocentes não devem sofrer. Talvez por isso alguns povos se arroguem do direito de praticar nelas a eutanásia, mesmo sem a sua anuência. É pôr os pais a assistir à morte e a consenti-la e a beijar o filho pequeno, que vai morrendo e deixando de sofrer. Mas os pais irão sentir-se para sempre criminosos. Filicidas. Prefeririam não intervir na morte do filho, e apenas minimizar-lhe o sofrimento. Mas há países civilizados que instituíram a eutanásia para adultos em lei e agora para crianças.
A eutanásia em crianças parece-me crime. O texto de António da Cunha Duarte Justo que segue, publicado no “A Bem da Nação” é bem explícito nisso, com os argumentos próprios. Eu só posso concluir com a “neve” que cai nos corações - da balada de Augusto Gil.

O texto de Duarte Justo:

«Eutanásia para Crianças na Bélgica – uma Ajuda que não ajuda»

«Acompanhar em vez de matar»

«A legislação belga permite matar crianças no caso de doença terminal. Pacientes menores, abaixo dos 18 anos, que não queiram sofrer mais, podem exigir aos médicos que os matem, tal como já é permitido aos adultos.

Na Bélgica a eutanásia para adultos é permitida desde 2012, tendo sido mortas 1.432 pessoas em 2012. Em toda a Europa, a eutanásia é considerada assassínio, com excepção da Bélgica, Holanda e Luxemburgo. Apoio ao suicídio assistido é legal na Suíça e na Suécia.

A decisão de morrer, para menores, tem de ser expressa e documentada pelo paciente, por escrito e oralmente em dias diferentes; a doença tem de ser diagnosticada por diferentes médicos como grave e de dores insuportáveis. O projecto-lei elaborado por Liberais, Socialistas e Verdes foi agora aprovado (13.02.2014). Para a morte ser legal precisa da aprovação do paciente, dos familiares e do médico.

Em geral a eutanásia activa é considerada crime; na Alemanha, por exemplo, se alguém matar, a pedido de alguém, tem cadeia até 5 anos: a eutanásia passiva (interrupção de medidas de prolongamento de vida) é permitida desde que conste na disposição escrita previamente pelo paciente.

Na ideologia do politicamente correcto, a sociedade fala, aqui, do direito a morrer com dignidade. Parlamentos fazem leis à margem do pensar da maioria do povo. Neste caso, um sistema democrático consciente, deveria submeter tal decisão a um plebiscito nacional.

Porque querer ajudar com a morte e não com a medicina paliativa. Esta lei vem aliviar os médicos que antes se viam sozinhos quando confrontados com o desejo do paciente e no caso de o fazerem seriam assassinos.

Até que ponto a criança é livre na sua decisão? A contradição de uma argumentação enganadora: uma criança é menor, e como tal, incapaz de decisão em casos normais do dia-a-dia, mas no caso de doença incurável já é considerada adulta! O desejo de morrer da criança também pode vir do ver o sofrimento dos pais. A impotência destes apressa-os na ilusão de ajudar a criança; esta ” ajuda” é mais uma ajuda a si mesmos e uma desculpa de outras ajudas; o facto de disporem da decisão de impedirem as dores, dá-lhes a impressão de cuidarem do doente, quando este, o que talvez precisasse seria de companhia e carinho.

A medicina paliativa tem demonstrado que o que os pacientes precisam é de acompanhamento e apoio. A lei vem desculpar e desobrigar o que não é desobrigável. Numa sociedade cada vez mais anónima tudo se torna legal e comprável; tudo lava as suas mãos como Pilatos. As forças políticas e sociais escondidas sob o capacete do pensar politicamente correcto avançam no sentido de dessacralizar o ser humano para o poder tornar disponível aos poderes do Estado. Com a eutanásia quer-se irradiar a morte da vida; indivíduo e acompanhantes desresponsabilizam-se.

Um mundo utilitarista, que não crê em Deus, não pode dar consolação à criança falando da outra vida, nem de Deus a quem o paciente poderia recorrer e não estar só. Os médicos teriam sempre a hipótese de receitar mórfium e em certos casos poderiam desligar as máquinas que prolongam a vida mas matar activamente é sobrepor-se à vida.

As várias confissões religiosas são contra a lei da eutanásia. 129 Pediatras belgas, numa carta ao Parlamento, afirmaram que a lei não era, medicamente, necessária já que "equipes de tratamento paliativo são perfeitamente capazes de alcançar o alívio da dor tanto no hospital como em casa". Parlamentares do Conselho da Europa são do parecer que a lei "trai algumas das crianças mais vulneráveis na Bélgica" e "promove a crença inaceitável de que uma vida pode ser indigna de ser vivida, algo que desafia o próprio fundamento de uma sociedade civilizada".

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Como um dos Reis Magos…



Fui das pessoas que admirou Vítor Gaspar e que se assustou quando ele se demitiu, augurando consequências negativas da sua saída, como pessoa que sempre me parecera um travão necessário à nossa tosca prodigalidade de meninos malandros brincando aos governos. Gostava do seu ar inteligente, das suas explicitações de evidências, a tomar-nos por parvos, troçando da nossa imaturidade e ignorância de dissipadores desonestos, que era preciso pôr no bom caminho, numa forçada austeridade para pagamento de dívida, o que só lhe angariaria inimizades, visto que, meninos malandros vivendo em casa dos papás, sem a responsabilidade da sobrevivência, entendíamos que a fartura inabitual fora direito adquirido sem que a dívida nos devesse ser jamais colectada. E daí as troças da nossa vingança - o ar embatucado de Vítor Gaspar, a sua dificuldade de comunicação, o fino humor de algumas suas tiradas – talvez vingativas, talvez de superioridade desdenhosa – fizeram desencadear imitações caricaturais em frequentes sketches humorísticos reveladores da nossa sensibilidade vingativa e, afinal, da nossa capacidade de resposta à provocação, demonstrando que não somos tão parolos como ele quis fazer crer.
Mas Vítor Gaspar foi uma figura necessária, na tentativa que fez o governo de Passos Coelho de encontrar credibilidade junto ao estrangeiro que nos emprestou o dinheiro, para iniciarmos a recuperação económica do país que uma dívida monstruosa afundou. Deixou como sucessora uma mulher valente – Maria Luís Albuquerque – que continua na mesma linha de rigidez económica, cortando nos vencimentos e nas carreiras, a caminho, ao que se afirma, de uma ainda parca recuperação, mas que não convém perder.
Daí que se perceba o teor do artigo «Uma certa nostalgia de Vítor Gaspar», do jornalista Pedro Sousa Carvalho, baseado no livro de Maria João Avilez sobre o ex-ministro, e publicado no “Público” de 14/2, nostalgia que provém do apreço pelos critérios de hombridade, e por isso receosos das prodigalidades prometidas por alguns políticos para o pós-troika, prodigalidades de um pré-eleitoralismo insensato. A austeridade é para se manter, e Passos Coelho, que é a pedra chave do processo, garante-a. Ontem, os do seu partido aplaudiram-no, Paulo Rangel afirmou o novo apreço europeu por este país cumpridor. Assusta pensar em Seguro como seguidor de Passos Coelho, num governo PS. Daí a nostalgia de Vítor Gaspar, um Gaspar que, tal o outro, trouxe prendas para um pobre menino deitado em palhas. Mas ao contrário desse Menino que sempre soube o caminho, e por isso recebeu ouro e preciosidades do seu visitante, as prendas do nosso Gaspar foram o apontar do verdadeiro caminho da salvação nacional – o da contenção. É necessário continuá-la:

«Uma certa nostalgia de Vítor Gaspar»
«Depois de seis meses de ausência, eis que Vítor Gaspar regressa, agora sob a forma de livro. Em conversa com Maria João Avillez, num estilo pergunta/resposta, o anterior ministro das Finanças coloca-se num elevado pedestal (intelectual, economista culto, estratega, negociador e visionário) e é de lá de cima que continua a olhar para a política e para os políticos, com um grande desdém. E esse foi o grande erro de Gaspar.
Percebe-se no livro que Gaspar não gosta da política (na acepção de Russel ou de Maquiavel, ou seja, a arte de conquistar e manter o poder), e diz que se vê como um espectador do “grande espectáculo da política”. Para Gaspar, a política sempre foi uma espécie de bug informático que fazia com que as suas contas no Excel nunca batessem certo. E para Vítor Gaspar, que diz que tende “a observar a política como um economista”, Paulo Portas deveria ser uma espécie de vírus informático que lhe estava sempre a "crashar" o portátil e a sua folha de Excel. Aliás, é com este desprezo profundo pela política que Vítor Gaspar justifica a sua saída de cena e as suas desavenças com Paulo Portas: “Não tenho qualquer vocação para resolver problemas de pura política.” Quando questionado sobre o comportamento do líder centrista na polémica questão da TSU dos pensionistas, o economista responde: “Não vou fazer comentários sobre o que poderão ter sido as motivações ou os processos mentais do Dr. Paulo Portas.” É como se Maria João Avillez lhe estivesse a pedir algum diagnóstico mental sobre algum doente do Júlio de Matos ou do antigo Conde Ferreira.
E esse foi o grande erro de Vítor Gaspar. Diz que sempre achou “imensa graça” ao processo político, e, até quando era mais novo, divertia-se a tentar “prever os resultados de eleições”. Maria João Avillez, talvez meio incrédula, pergunta-lhe: "Mas só gosta da política como uma espécie de jogo?" E Gaspar responde: "Tal qual, tal qual." E Gaspar escolheu Paulo Portas (ou Portas escolheu Gaspar) para jogar, e o líder do CDS-PP, o mais antigo líder partidário no activo, naturalmente ganhou. Nesta espécie de jogo de xadrez, segundo se lê nas entrelinhas da entrevista, o tabuleiro começou a pender para o lado de Portas quando a economia começou a dar os primeiros sinais de recuperação: “Como se veio a saber mais tarde, a actividade económica em Portugal tinha já fortemente recuperado no segundo trimestre. Isto mostra que a política e as percepções em política são um jogo de grande subtileza.” É Gaspar a reconhecer a inteligência política e o xeque-mate de Paulo Portas. Mas Gaspar tem a inteligência de reconhecer a importância da política: “A saída de Paulo Portas e o impacto que teve nos mercados mostram a força e a relevância da política.” E foi esse casamento entre a política e a economia que Gaspar nunca conseguiu fazer; eram dois softwares incompatíveis.
Gaspar não gosta da política, aborrece-o. Ainda todos se lembrarão da forma como Gaspar respondeu a Ana Drago no Parlamento – “Eu não fui eleito coisíssima nenhuma” –, como quem fazia questão de mostrar que ele e os deputados não eram feitos da mesma massa. A própria política sempre olhou para Gaspar como um corpo estranho, pela forma algo sobranceira como o antigo ministro olhava para o jogo da política.
Agora, Vítor Gaspar está a candidatar-se a um alto cargo no FMI, um lugar onde ele vai sentir-se em casa, no meio de tecnocratas iguais a ele, para quem a política é uma espécie de variável aleatória num modelo econométrico inventado nos corredores de Washington. Na hora da despedida, Maria João Avillez pergunta a Vítor Gaspar se os portugueses aprenderam alguma coisa com os erros do passado. E Gaspar responde, imagino que no seu tom pausado e mecânico, “é difícil dizer”.
Vítor Gaspar não vai deixar saudades. Mas quando se ouve Paulo Portas, já em pré-campanha eleitoral, a prometer que em 2015, ano de eleições, vai baixar o IRS, vá-se lá saber como, sente-se uma certa nostalgia. Vítor Gaspar exagerou na dose de austeridade. Mas quando se ouve Pires de Lima e o PSD-Lisboa a defenderem o aumento do salário mínimo nacional e uma descida do IVA, não se sabe muito bem com que dinheiro, sente-se uma espécie de nostalgia. Vítor Gaspar era um partidário da austeridade do custe o que custar. Mas quando se ouve António José Seguro a prometer que quando chegar a primeiro-ministro vai reabrir todos os tribunais que o actual Governo vai fechar e revogar a lei que corta a reforma dos pensionistas, sente-se uma certa nostalgia. Vítor Gaspar era mais troikista do que a troika. Mas quando o PS propõe a reposição do horário de trabalho de 35 horas na função pública, mais nostálgicos ficamos.
Os dois grandes erros de Vítor Gaspar foram exagerar na dose da austeridade e desprezar a política (na acepção da "arte do possível"). Mas não é por fazermos precisamente o contrário do que ele propalava que os vamos corrigir.»  Pedro Sousa Carvalho

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Dove andiamo?




O Embaixador Francisco Henriques da Silva, que escreve o artigo “A CESURA NORTE-SUL E A PRETENSA UNIDADE EUROPEIA, publicado no blog “A Bem da Nação”, deve ter sentido muitas vezes o tal sentimento de superioridade dos povos nortenhos para com os do sul, que descreve, lembrando quanto o excesso de equilíbrio e seriedade desses não significa propriamente virtude, que o excesso de autoconvicção vaidosa logo minimiza ou até destrói. Um dia também a minha filha Paula, que esteve na Bélgica a assistir a aulas de professores belgas, integrada num projecto educativo da sua escola, sentiu quanto foi isenta de afecto humano a aula de determinado professor, rígido no comando impecável da sua aula, sem lugar a desvios nem a devaneios de comportamento. Mas é claro que não se pode generalizar, embora um dos comentários que o artigo mereceu – de Apmachado – revele também que tais atitudes de superioridade intelectual dos povos europeus do norte e do centro sejam desfiguradas quando confrontadas com os valores morais de sensibilidade e generosidade. Afirma Apmachado: Convém não esquecer as experiências sobre os efeitos da radioactividade feitas na Suécia, pelos finais dos anos '40. As cobaias foram indigentes e deficientes mentais.”
Eis o artigo do Embaixador Francisco Henriques da Silva:

A CESURA NORTE-SUL E A PRETENSA UNIDADE EUROPEIA
Um dos grandes problemas no mundo em que vivemos é que o Norte, em geral, assume uma atitude de superioridade, de sobranceria e de desprezo em relação ao Sul (refiro-me, principalmente, à Europa, bem entendido, mas não só).

As excepções confirmam invariavelmente a regra. Os protestantes puritanos (calvinistas ou luteranos), sérios, disciplinados, trabalhadores do Norte consideram-se sempre superiores às preguiçosas, indisciplinadas, hedonistas e intrinsecamente desonestas gentes do Sul. Estes clichés ou estereótipos, porque é disso mesmo que se trata, não ajudam nada neste mundo globalizado em que vivemos e destroem toda e qualquer noção por ténue que seja de uma pretensa Europa unida e solidária e, principalmente, com uma causa comum a ser defendida por todos.

Os desentendimentos entre os seres humanos que dão origem aos grandes conflitos têm a sua origem em problemas tal como os descritos, que são primários, mas reais. De facto, as gentes do Norte não têm espelhos para se observarem com atenção e desde sempre foram – e são – incapazes de qualquer "mea culpa" ou de uma simples atitude de aproximação e de concórdia. Pairam por cima de tudo isso. A razão está sempre do seu lado, iluminados que estão por Deus e pelo espírito do neoliberalismo irrestrito e omnipresente.

Um dia as coisas vão acabar mal, muito mal, mesmo, como já ocorreu no passado e os exemplos podem multiplicar-se.

É preciso relevar que a civilização nunca nasceu a Norte, mas sim na bacia do Mediterrâneo e nos grandes rios do Médio Oriente e da Ásia. Todos sabemos disso. Vem nos livros de História. Quando nos apresentam o Norte como uma escola de virtudes e o Sul como um inferno de vícios, o que para além de ser uma inverdade, acicata ódios ancestrais e irracionais que existem, que não se dissipam com o tempo e muito menos com atitudes destas.

Um exemplo entre muitos: a Dinamarca passa por ser o país mais feliz do mundo, como se a felicidade fosse mensurável numa escala qualquer como a temperatura em graus Celsius, a velocidade em quilómetros horários ou os terramotos na escala de Richter. Depois os nossos amigos dinamarqueses matam girafas para as criancinhas verem ou golfinhos em rios de sangue nas ilhas Faroe. Neste último caso, às críticas argumentam que o arquipélago é uma região autónoma com Governo próprio, mas será que vamos permitir que Açores, Madeira, Canárias, Baleares, Sardenha e Sicília também regiões autónomas, façam o que lhes der na real gana e ainda lhes sobre tempo?

Esses dois factos (matar girafas e matar baleias) também entram na medida da felicidade? Vi crianças africanas com fome felizes com toscos brinquedos de lata improvisados e com um sorriso nos lábios em aldeias paupérrimas. O que é a felicidade? É só a do Norte? Com cerveja e aquavit?
Quo vadis Europa?  Francisco Henriques da Silva (Embaixador)

Tais considerandos trouxeram-me à ideia o livro autobiográfico de Liv Ullmann, grande actriz norueguesa que, no seu livro “Mutações”, de extrema sensibilidade e inteligência, revela radicalismos da sociedade convencional norueguesa idênticos aos de qualquer outra sociedade mais limitada dos países do sul, nas experiências que tão expressivamente relata, o que nos causou estranheza. Mas foi o retrato da sua avó, sua grande companheira e amiga nos tempos da adolescência rebelde, que sobretudo estranhámos na solução final familiar de internamento num centro para idosos, asséptico e intransigente, como os seres que nele se moviam escrupulosamente competentes, e definitivos, últimos acompanhantes impessoais e gélidos das vidas idosas, que foram bem diversamente povoadas nas suas vidas anteriores:

«É doloroso lembrar a última parte da vida dela. Um lar para velhos. Mobilado com bom gosto. Todas as cores combinando, as funcionárias com aventais brancos e sorrisos pacientes. Entretanto, logo que a campainha tocava, para o café da manhã, o almoço ou a ceia, as cinquenta velhas senhoras imediatamente tinham de sair dos seus quartos e seguir para o refeitório. Sentar-se à mesa com aqueles cuja companhia não desejavam. Conversar sobre acontecimentos pelos quais não sentiam nenhum interesse. Ter amigas com as quais só possuíam em comum a solidão e a espera.
O pânico, quando ela tinha de passar um dia deitada; três dias deitada representavam uma transferência para a ala da enfermaria. Havia uma longa lista de espera para os quartos de residência e raramente alguém voltava da enfermaria. Um dia, a avó também foi levada para lá.
É muito melhor para os velhos ter supervisão constante, poder ficar com outros na mesma situação. “Os parentes que só desejam o melhor para os seus entes queridos e os enviam para uma instituição onde não se é mais “eu”, e sim “nós”.
“Nós” temos de ir para a cama um tanto cedo, talvez - se é que “nós” nos conseguimos levantar, naquele dia.  Algumas vezes, as abluções nocturnas e preparativos para a noite são às quatro da tarde. Um tanto cedo, talvez, mas há falta de funcionários – e “nós” não temos tanta coisa assim para fazer, de qualquer modo, quando “nós” estamos acordadas.
Bater  à porta já não é necessário. Que tipo de segredos pode ter uma pessoa velha? Alguém que só dispõe de um leito, a menos de um metro de distância do vizinho. Onde não há livros nem móveis nem quadros. Segundo o regulamento. Mas se a enfermeira é boazinha “nós” podemos pendurar uma fotografia na parede. (mas é melhor não usar prego – deixam uma marca feia). Assim, “nós” podemos ficar deitadas e olhar fotografias da família e dos amigos que têm tanto a fazer, nas suas próprias vidas, a ponto de adiarem semanas a visita ao velho. Afinal “nós” temos tanto conforto. Algumas vezes, parece que as visitas são um aborrecimento. …»

Mas quando pensamos que é nesses países da intelectualidade que se registam as criações mais poderosas de ambientes e caracteres humanos, como Shakespeare, ou Kafka, ou o quadro “O Grito” de Munch expressivo de total desespero humano, compreendemos quanto o tal “dolce far niente” da boémia sulista, também é necessário neste mundo imperfeito, onde existem crianças, como afirmou o Embaixador Francisco Henriques da Silva no seu artigo,  “crianças africanas com fome, felizes com toscos brinquedos de lata improvisados e com um sorriso nos lábios em aldeias paupérrimas.” para concluir sobre o relativismo do conceito de felicidade “O que é a felicidade? É só a do Norte? Com cerveja e aquavit?”

De facto, uma tal doutrina de pureza rácica, tão do agrado ainda hoje, converteu-se em hediondo holocausto não há muitos anos. Esperamos, os da Europa do sul, não chegar a esse ponto de rejeição. Mas respeitemos melhor as regras. Do bom senso, pelo menos. Não por conta da unidade europeia, que isso é utopia, mas como cidadãos construtores de um mundo, de facto, mais equilibrado.