segunda-feira, 29 de setembro de 2014

No lançamento de «A Guerra Civil de Espanha»



Foi uma apresentação bastante assistida, no bonito espaço dos antigos Correios do Estoril. Eu fui com a minha filha Paula, houve referências, naturalmente, pelos colaboradores, ao trabalho de investigação apresentado no livro, e à qualidade da forma e do estilo, seguindo um percurso de rigor e elegância expositiva não isentos de sentido crítico e de vasta informação bibliográfica, que as andanças diplomáticas pelo mundo, do seu autor, contribuiriam naturalmente para fortalecer.
Por detrás da mesa foram pendurados na parede retratos de alguns dos implicados no processo, entre os quais Anthony Eden e o Almirante inglês de então, Léon Blum, Staline, Armindo Monteiro, de que o Embaixador Luís Soares de Oliveira referiu brevemente o papel, aquando da sua exposição final.
Um período bem agitado, o da Guerra Civil Espanhola, resultante do extraordinário desenvolvimento industrial da Espanha, e da multiplicação das forças do operariado, com as respectivas ideias de subversão, muito em voga, a um status de exploração e miséria provocadoras da cisão. Uma Guerra que provocou muitas mortes e atropelos, e as implicações junto dos outros povos, com escusas ou ajudas mais ou menos retraídas em que o cinismo ou a inanidade das relações políticas forçosamente se fez sentir.
No final da sessão houve as perguntas comedidas para o Sr. Embaixador responder e uma delas foi muito taxativa: se o Sr. Embaixador poderia salientar num breve traço, um resultado da Guerra Civil de Espanha para a Espanha. Com aplomb e delicadeza o Sr. Embaixador mostrou a dificuldade de uma síntese, numa simples ideia, e creio que respondeu com algo relacionado com a perda de importância posterior da Igreja. Transcrevo do seu livro, como apoio à sua frase, de que gostei mas esqueci:
“Em Junho de 1939, chegou a vez dos bispos. Uma nova Carta Pastoral colectiva em que pediam clemência para os vencidos foi impedida de publicação ou de referência em qualquer jornal. Unamuno tinha razão: o catolicismo de Franco era de padrão muito especial. O seu deus desconhecia o perdão.”
Para mim, que sou leiga, creio que a ditadura de Franco, além de construir uma Espanha poderosa, deixou um legado de amor pátrio, ao passar o seu testemunho, novamente, ao seu Rei, restabelecendo a Monarquia, como garante de uma continuidade apoiada em respeito pela História da sua Nação.

domingo, 28 de setembro de 2014

Deus não permita



Parece que se decide hoje. Para preocupação de quem se preocupa, entre os quais Vasco Pulido Valente e Alberto Gonçalves. De António José Seguro não se espera mais do que aquilo que ele repete inalteravelmente e que Pulido Valente tão bem retrata: um mundo de realização plena, caso ele seja eleito, porque o que é preciso é erguer a economia e subir o emprego. Com o auxílio de uma fada-madrinha, já que a literatura por que se ficou Seguro não extrapolou do universo infantil, com certeza, pois não alterou uma vírgula nos seus discursos de apelo e luta pela vida, de promessas de realização mágica. António Costa, no fundo, diz o mesmo: o que é preciso é o desenvolvimento da economia e a diminuição do desemprego, o que nem Vasco Pulido Valente nem ninguém põe em dúvida . Mas a demagogia de António Costa parece – e a Alberto Gonçalves também – mais perigosa, no artifício das palavras roncantes mas que escondem zelos de alianças a uma esquerda arrogante, cada vez mais prestes a lançar o comando das suas “elites” gritantes e acéfalas sobre os destinos de uma nação a braços com dificuldades gritantes, mas cujo Governo trabalha por as ultrapassar.
Põe-se, além disso, a questão da diminuição de deputados proposta por Seguro, recusada por Costa, contra as opiniões de Alberto Gonçalves e de Pulido Valente, este no costumado desdém pelas camarilhas.
São três artigos que retenho pela sua inteligência e preocupação críticas, desejando que a eleição de António Costa – que não ponho em dúvida - não resulte na catástrofe prevista por Alberto Gonçalves:

O socialismo em 2014
Vasco Pulido Valente Público, 13/09/2014
Dois candidatos andam por aí melancolicamente a explicar ao “povo socialista” o que fariam com o poder, no largo do Rato ou em Portugal inteiro. A parte mais curiosa deste peculiar exercício é a concordância final de Seguro e Costa para nos tirar da miséria em que vivemos. Tanto um como outro acham que o segredo da felicidade está no “crescimento” da economia. Se a economia “crescesse”, eles mudariam a Pátria de alto abaixo. Seguro quer mesmo mais. Quer “re-industrializar” um país que nunca foi industrializado, uma avaria quase metafísica. Mas, no meio disto tudo, fica uma pergunta perturbadora: onde pára, no “pensamento” destes próceres, o “povo” que o capitalismo, de propósito ou por acidente, empurrou pouco a pouco para a pobreza e o desespero?
Presumindo que nem Costa nem Seguro tencionam ressuscitar a URSS e o dr. Álvaro Cunhal para reconstruir a próspera sociedade que existia no leste da Europa, só se pode concluir que eles querem uma sociedade de mercado, com o Estado reduzido a algumas tarefas de inspecção e regulamentação e com um pequeno banco (o novo Banco de Fomento) para ajudar de quando em quando meia dúzia de empresas perto da falência. Em 1970, o nome que se dava a esta actividade dos socialistas era “gerir com fidelidade o capitalismo”. Agora ninguém acha estranho e muita gente pede aos Céus que lhe tragam um segundo Cavaco, na pele de Seguro ou Costa, e um bando de meninos, saídos de fresco da Universidade Católica ou da Universidade Nova, para tratar dos pormenores.
Insistindo no “crescimento”, nenhum dos dois mágicos do PS percebe que fica submetido às regras do mercado. O dinheiro vem de fora (porque não há cá dentro) e com certeza imporá as suas condições: nas finanças, na justiça, nas leis do trabalho e por aí fora até à política pura e dura. O Estado Social passará a ser uma preocupação secundária e a margem de lucro a preocupação principal. Ora o dr. Costa e o dr. Seguro, empregados públicos desde pequenos, não sabem o que é uma empresa, como ela funciona e o que precisa para funcionar. O risco para qualquer um deles de cair na asneira sistemática à portuguesa é enorme e provavelmente inevitável. Olhem bem para eles, ouçam as conversas pedantes que eles dia a dia nos fornecem e, depois, tentem imaginar um desses abencerragens a dirigir uma economia. Não se concebe, pois não?

A vacina
ALBERTO GONÇALVES, DN, 17 de Setembro , 2014
Numa típica cartada populista, António José Seguro defende a redução do número de deputados. António Costa opõe-se com veemência e o argumento, razoável, de que a proposta é uma "declaração de guerra" aos partidos mais à esquerda. Entre o populismo e a razoabilidade, neste caso o meu coração não balança e prefere o primeiro.
Por um lado, porque é evidente que 49 parlamentares a menos, conforme pretende o Dr. Seguro, não afectariam em nada o já esplendoroso desempenho da Assembleia da República (aliás, o acto de levantar e sentar de acordo com as ordens partidárias seria realizado com vantagens por meia dúzia de marionetas). Por outro lado, porque a paixão do Dr. Costa pela representatividade democrática esconde, sem esconder, o interesse estratégico do homem nos eventuais apoios da extrema-esquerda, seja esta o PCP, o BE ou os incontáveis grupúsculos que diariamente abandonam o Bloco com o ecuménico de namorar o PS.
Sonhar acordado é fácil. Os pesadelos é que doem. E infelizmente não é disparatado imaginar que o dr. Costa vence as "primárias" do PS, chega a secretário-geral da seita e, em "legislativas" marcadas pela penúria real e abundância prometida, alcança o Governo. Sendo previsível que a alucinação colectiva não vá ao ponto de lhe oferecer a maioria absoluta, é aceitável supor que, para efeitos de "governabilidade", o Dr. Costa cozinhe as alianças que nunca rejeitou em público nem, desconfio, em privado.
Em suma, é legítimo presumir que daqui a um ano o País é bem capaz de cair, parcial e literalmente, nas mãos de comunistas. Após quarenta anos, Portugal arrisca tornar-se a proverbial "Cuba da Europa", ou a "vacina" de Kissinger. Curiosamente, a doença foi entretanto erradicada da civilização e de Cuba, no sentido atribuído, sobra pouco. Sobramos nós, embora o processo de emigração em curso não passe de uma brincadeira se comparado com o que aí virá. No máximo, ficam os deputados.

Um produto do cérebro de Seguro
Vasco Pulido Valente
19/9/2019, Público
Segundo parece, a Assembleia irá ser reduzida a 181 deputados, o que beneficia a direita e prejudica a esquerda radical, sobretudo o BE e o PS. Mas, tirando esse terrível problema de saber quem ganha o quê, António Seguro tem razão: a esmagadora maioria dos nossos representantes é paga para não fazer rigorosamente nada, excepto votar quando e como a direcção do partido lhe manda.
O exemplar típico assina o ponto e, a seguir, vai trabalhar numa empresa ou num escritório de advogados. Uma dezena deles passeia pelos corredores, lê os jornais, bebe um café e, às cinco, volta para casa. As gritarias, de resto raras, cá em baixo no anfiteatro não comovem ninguém, nem o público que ninguém sabe o nome dos figurões, nem o país que os despreza do fundo do coração.
Têm sido feitas propostas para acabar com esta vergonha, que os partidos rejeitam sempre. Porquê? Porque os chefes precisam de sinecuras para premiar os seus fiéis, principalmente quando eles vêm da província; e porque os batalhões que chegam, bem disciplinados por uma vida de subserviência, nunca lhes desobedecem. De resto, não se compreende por que razão os “reformadores” do Parlamento e da lei de eleições preferem invariavelmente o círculo uninominal e variantes. Seguro fala, se não me engano, em “visibilidade”, em “transparência” e nos chavões do costume; e também no facto miraculoso de cada português ficar, depois de 2015, com o seu próprio deputado. Claro que esta “ideia” é uma salada de ideias trazidas do estrangeiro, que não nos servem e já se demonstrou que não nos servem.
O círculo uninominal não impede que a intriga fervilhe, como fervilha agora, embora com novos beneficiários. O voto do patrão da pequena ou da grande empresa (rural, industrial ou de serviços) e dos grandes funcionários do Estado passará a valer mais do que um voto e daí se escorregará depressa para um comércio de voto generalizado. Votar no A ou votar no B exige um minucioso tráfego de influência e uma larga troca de favores. Em vez das clientelas dos partidos, mesmo assim relativamente poucos e com um chefe conhecido à frente, virão os “donos disto tudo”, sem nome e sem cara, que puxam pelos cordões na sombra. O sufrágio uninominal seria o fim da democracia, até da escassa democracia que os portugueses por enquanto gozam. Só Seguro não percebe.

sábado, 27 de setembro de 2014

Enquanto ainda posso, sem taxa



Quando ouvi falar em taxação da cópia privada, pensei que tivesse a ver comigo que ultimamente dei em copiar para o meu blog textos que me caem no goto e que desejo que também caiam no goto das pessoas arrebatadas por idênticos pareceres, eventualmente  debruçadas sobre ele - o meu blog, não o meu goto - em comunhão de afectos opinativos. Felizmente não se tratava de mim, nem podia ser, pois nesse caso teriam que taxar toda a internet que nos dá vasta gama de produções – poéticas, romanescas, dramáticas, prosísticas, musicais, escultóricas, picturais, arquitecturais, filológicas, etc., e até nos transmite o significado das palavras, permitindo que comodamente vivamos instalados no cadeiral que enfrenta o computador a ver o mundo e a banda a passar. Foi por isso que ainda ouvi alguma coisa do que se disse no tal Prós e Contras, mas tudo me passou ao largo, adormecendo embalada pela voz do Vitorino, sem perceber por que cantava Vitorino, embora compreendesse a necessidade do garganteio para amenizar o paleio. Alberto Gonçalves, que é jovem e arguto, chamou “A arte de roubar” a mais este arranjinho governativo para angariar fundos, e assim o transcrevo, pois parece que com isso não serei taxada ainda. É de 21 de Setembro, do DN, em Dias Contados, e provavelmente é parente em breve escala daquela outra Arte de Furtar do nosso século XVII, mas também pode ir no rasto de Vieira ou mesmo de Camões, ali nas trapalhadas do embargo da partida de Vasco da Gama da Índia, no Canto VIII d’ Os Lusíadas, graças às hostilidades dos árabes, que já nessa altura  usavam de má fé em questão de comércios. Diz Camões a respeito do dinheiro:
VIII, 96
….Veja agora o juízo curioso
Quanto no rico, assi como no pobre,
Pode o vil interesse e sede imiga
Do dinheiro, que a tudo nos obriga.
98
Este rende munidas fortalezas;
Faz traidores e falsos os amigos;
Este a mais nobres faz fazer vilezas,
E entrega Capitães aos inimigos;
Este corrompe virginais purezas,
Sem temer de honra ou fama alguns perigos;
Este deprava às vezes as ciências,
Os juízos cegando e as consciências.
99
Este interpreta mais que sutilmente
Os textos; este faz e desfaz leis;
Este causa os perjúrios entre a gente
E mil vezes tiranos torna os Reis.
Até os que só a Deus omnipotente
Se dedicam, mil vezes ouvireis
Que corrompe este encantador, e ilude;
Mas não sem cor, contudo, de virtude!

 Agora mesmo andamos nós às voltas com uma das irregularidades cometidas em tempos pelo Primeiro Ministro, saracoteando-nos em largas exigências de esclarecimento a respeito de dinheiros que ele não declarou ao fisco e que desejamos que declare agora, interessados sobretudo na mixórdia, desleixando os êxitos de uma governação forçosamente custosa, e ignorando  todos os que comeram e comem ainda de proventos ilícitos… Mas esta questão de furto tem, de facto, feito sempre parte do nosso status, e não é demais relembrar o Sermão de Santo António aos Peixes, em páginas de imortal relevo do nosso Vieira, cap. IV:

«Morreu algum deles, vereis logo tantos sobre o miserável a despedaçá-lo e a comê-lo. Comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no os legatários, comem-no os credores: comem-no os oficiais dos órfãos e os dos defuntos; come-o o médico que o curou ou ajudou a morrer; come-o o sangrador que lhe tirou o sangue; come-o a mesma mulher, que de má vontade lhe dá para a mortalha o lençol mais velho da casa; come-o o que lhe abre a cova, o que lhe tange os sinos, e os que, cantando, o levam a enterrar; enfim, ainda o pobre defunto o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra. ….
«Vede um homem desses que andam perseguidos de pleitos ou acusados de crimes, e olhai quantos o estão comendo. Come-o o meirinho, come-o o carcereiro, come-o o advogado, come-o o inquiridor, come-o a testemunha, come-o o julgador, e ainda não está sentenciado e já está comido. São piores os homens que os corvos. O triste que foi à forca, não o comem os corvos senão depois de executado e morto; e o que anda em juízo, ainda não está executado nem sentenciado e já está comido.»

E antes que transcreva o texto de Alberto Gonçalves sobre a taxação das “geringonças electrónicas” guardadoras de coisas da arte – felizmente os blogs por enquanto não contam – transcrevo um breve passo da “Arte de Furtar” - largo Tratado de autor anónimo do século XVII, também já atribuído a Vieira e hoje atribuído ao Padre Manuel da Costa, do Concelho do Mourão, educado por Jesuítas, possuidor de grande energia e talento - que justifica, no início do Capítulo I - «Como para furtar há arte, que é ciência verdadeira» -  o porquê, pois, da designação do Furto como Arte e nos faz concluir, finalmente, sobre a escola em que fomos verdadeiramente educados ao longo da nossa história de penúria de Ciência, mas não de Arte:

«As artes dizem seus autores que são emulações da natureza; e dizem pouco, porque a experiência mostra que também lhe acrescentam perfeições. Deu a natureza ao homem cabelo e barba, para autoridade e ornato; e se a arte não compuser tudo, em quatro dias se fará um monstro. Com arte repara uma mulher as ruínas que lhe causou a idade, restituindo-se de cores, dentes e cabelo, com que a natureza no melhor lhe faltou. Com arte faz o escultor do tronco inútil uma imagem tão perfeita que parece viva. Com arte tiram os cobiçosos, das entranhas da terra e centro do mar, a pedraria e metais preciosos, que a natureza produziu em tosco e, aperfeiçoando tudo, lhe dão outro valor. E não só sobre coisas boas têm as artes jurisdição, para as diminuir em proveito de quem as exercita, ou para as acrescentar em dano de outrem, como se vê nas máquinas da guerra, partos de arte militar, que todas vão dirigidas a assolações e incêndios, com que uns se defendem e outros são destruídos.
Não perde a arte seu ser por fazer mal, quando faz bem e a propósito esse mesmo papel que professa, para tirar dele, para outrem, algum bem, ainda que seja ilícito. E tal é a arte de furtar, que toda se ocupa em despir uns para vestir outros. E se é famosa a arte que, do centro da terra, desentranha o oiro, que se defende com montes de dificuldades, não é menos admirável a do ladrão que das entranhas de um escritório – que fechado a sete chaves, se resguarda com mil artifícios – desencova com outros maiores o tesouro com que melhora de fortuna. Nem perde seu ser a arte pelo mal que causa, quando obra com ciladas segundo suas regras, que todas se fundem em estratagemas e enganos, como as da milícia; e essa é a arte, e é o que dizia um grande mestre desta profissão: «Con arte e com engano vivo la mitad del año; com engano y arte vivo la outra parte.»

É assim que chegamos às governações, vivendo do empréstimo e do imposto, na magnífica síntese de Eça, segundo a expressão de autoridade do banqueiro Cohen: «Os empréstimos em Portugal constituíam hoje uma das fontes de receita, tão regular, tão indispensável, tão sabida como o imposto. A única ocupação mesmo dos ministérios era esta - cobrar o imposto e fazer o empréstimo. E assim se havia de continuar...

Pois assim continuamos, com a magnífica rebeldia de alguns artistas da palavra, entre os quais Alberto Gonçalves, que aborda o cruel tema da vida artística da nossa praça, sem mercado capaz e à cata de subsídio, e presente no “Prós e Contras” da semana, convictos os cantores de que a pirataria dos iphones os prejudica, concordantes, pois com um imposto que, Graças à lei aprovada pela maioria na sexta-feira custa-nos uns euros em numerário e uma fortuna em vergonha.”»:

A arte de roubar
Alberto Gonçalves, 21/9/14, “DN”

Não era necessária, mas a prova definitiva de que o Governo é tudo, tudo, tudo excepto liberal foi transmitida em horário nobre pela RTP, durante as duas horas do último Prós e Contras. O tema era a Lei da Cópia Privada, que taxa, a pretexto dos direitos de autor, as geringonças electrónicas capazes de guardar música, filmes ou livros mesmo que os compradores das geringonças não guardem lá música, filmes ou livros nenhuns.
Jorge Barreto Xavier, secretário de Estado da Cultura, começou logo por avisar que o assunto "não é de fácil compreensão para o grande público", por azar o exacto público que vai pagar o imposto que, segundo o professor Xavier, não é um imposto. Ao lado do professor Xavier, um senhor da SPA explicou que os autores é que são os verdadeiros aliados dos consumidores, os tais que pagam o imposto que não é imposto. De facto, isto não se compreende à primeira.
Para complicar, a plateia estava repleta de "artistas" e afins. Entre os afins, o filho de David Mourão-Ferreira, colérico, informou a ralé que o imposto visa punir um "roubo". Esqueceu-se de dizer que se trata de um roubo presumido. A ideia da lei em causa é justamente a presunção de que o comprador de um iPhone se prepara para piratear obras avulsas. E o apogeu cómico é presumir que as obras são a dos "artistas" presentes no Prós e Contras: Carlos Alberto Moniz, Tozé Brito, Paulo de Carvalho, o rapaz dos Delfins, dois Vitorinos (o alentejano e o maestro da bengala), etc. A certa altura do debate, uma opositora da lei, Maria João Nogueira, perguntou porque é que os autores não taxavam os produtos que vendem. O intérprete de Dai-li, Dai--li-dou não soube responder. Mas toda a gente sabe: porque não vendem nada, ou quase nada.
E aqui reside o problema dos "artistas", sobretudo musicais, cuja arte é a de extorquir o que ninguém patrocinaria de livre vontade. O processo normal é o do financiamento estatal. Dado que agora as autarquias encomendam menos farras, conforme de resto foi lembrado no programa, a alternativa ao subsídio de redundâncias passa por cair em cima da "indústria". O bom povo, com fama de ladrão e proveito de roubado, lixa-se sempre.
Quanto aos "artistas" e aos burocratas redundantes que gerem os direitos dos "artistas", não podem, por motivos que escapam ao mortal comum, lixar-se. Custe o que custar. Graças à lei aprovada pela maioria na sexta-feira custa-nos uns euros em numerário e uma fortuna em vergonha. No final do Prós e Contras, Vitorino cantou a cappella e o secretário da Cultura viu-se assaz aplaudido. Em Portugal, taxar o liberalismo renderia zero. »

Mas todo esse sentimento de carência impotente, perante o desinteresse pátrio pela cultura e seus cultores, já o nosso Camões o revelara, dando origem à proliferação dos incompreendidos numa pátria adversa. Por isso achamos que Alberto Gonçalves deve ser mais compreensivo:

81
 E ainda, Ninfas minhas, não bastava
Que tamanhas misérias me cercassem,
Senão que aqueles que eu cantando andava
Tal prémio de meus versos me tornassem:
A troco dos descansos que esperava,
Das capelas de louro que me honrassem,
Trabalhos nunca usados me inventaram,
Com que em tão duro estado me deitaram.
82
 Vede, Ninfas, que engenhos de senhores
O vosso Tejo cria valerosos,
Que assi sabem prezar, com tais favores,
A quem os faz, cantando, gloriosos!
Que exemplos a futuros escritores,
Pera espertar engenhos curiosos,
Pera porem as cousas em memória
Que merecerem ter eterna glória!
  Lusíadas, C. VII

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Foi o Ricardo quem teve a culpa



Há mais de doze anos – perdi-lhe a conta e o cartão identificador - ainda a minha Mãe era uma mulher válida, que subia as escadas para o seu quarto, no primeiro andar, como os outros, e podia tomar conta da casa, caso eu precisasse de sair por algum tempo, embora comedidamente, que a minha Mãe sempre foi soberana e cobrava em exigência de docilidade posterior. Mas tratava-se de uma catarata, a do meu olho esquerdo, e o meu marido sempre me acompanhara nessas tardes a Lisboa, no comboio e metro, aos serviços da CGD, e até no dia da operação não arredou pé, facto que nunca esqueci, nem o gesto do João que nos levou nesse dia, e ali esteve, dia de terror que toda a gente afirmava que se fazia com uma perna às costas, do que sempre discordei.  Por isso levei doze ou mais anos a ignorar a catarata do olho direito, até que a minha “qualidade de vida” definitivamente impôs o inevitável, a minha Paula encarregando-se do caso, ali no Hospital onde treinavam e muitas vezes apresentavam o seu coral “Vox Maris”. A minha Mãe já não estava, mas está o Fox a impedir a camaradagem do meu marido, pretexto hábil de recusa do anterior companheirismo, que me fez sentir-me só e abandonada no deserto da vida, disposta a tudo conseguir sozinha, entregue “à bicharada”, sem dar parte de fraca, mas com muita compaixão de mim. Por isso, quando o Ricardo me telefonou nessa manhã, a voz embargou-se-me e confessei que estava apavorada, mas ele não se comoveu e para me fazer rir, ditou que depois eu faria um artigo sobre o caso. E assim fiquei, pois, com o meu ego, lembrando a “Lágrima” da nossa Amália, a desejar um xaile para me deitar no chão e só acordar no dia seguinte, reduzida ao “Não sou nada. Nunca serei nada” de autopiedade, do Álvaro de Campos, mas ficando-me por aí, sem mais dimensão com que ele continuou essa sua  Tabacaria” universal.
É claro que a minha irmã não me abandonou e também não arredou pé, nessa tarde, levando-me ao Hospital  e esperando comigo, no confortável quarto onde eu iria pernoitar. Mas quando os enfermeiros me vieram buscar, soçobrei em lágrimas sem poesia, o que não facilitou as coisas. As enfermeiras eram simpáticas, e quando uma delas me assegurou, sorridente, que o medo era próprio das pessoas inteligentes, embora assim  fortalecida na auto-estima que contrariava as convicções expressas no poema “Tabacaria” com que me enovelara há muito tempo já, na previsão do acto, apertei as mãos a suster-me, para cumprir com valentia, esvaziando na força destas as energias que suavizariam o caminho da operação  entregue ao oftalmologista excelente. A verdade é que o médico ainda teve umas exclamações de impaciência, porque me mexi, apesar da força das minhas mãos a aparar o choque à distância. Tortura. Eu só desejava uma anestesia geral, num xaile que fosse, para acordar no dia seguinte, tudo isso passado. Mal passado, todavia. Na operação anterior não tomei tantos remédios, como os que estou a tomar, nem nada que se parecesse com a variedade de gotas para o olho e os comprimidos para acelerar a cura. E quando regressei ao quarto, a minha irmã continuava firme, na companhia da minha neta Catarina que me viera ver no seu dia de folga, e pouco depois a Paula, que me meteu nesta, e que estivera a ensaiar no seu coral, com que preenche os breves espaços das aulas. Inútil a pieguice do orgulho, na contenção egocêntrica das nossas tragédias que o não são, afinal, e bom é sempre o carinho que nos cerca, mesmo que seja só para chorarmos por nós ou de nós rirmos.
Entretanto, trouxera, para acabar de ler, antes da operação, o extraordinário romance do escritor dinamarquês Jens Crhristian  Grøndahl  «Silêncio em Outubro”, que tenho lido ao deitar, uma obra de uma intriga aparentemente igual à de tanta gente, mas transformada pela magia da palavra, como arca de tesouros mais ricos que os descobertos por Ali Babá na caverna dos ladrões, por um estilo transparente e simultaneamente de uma riqueza verbal e de conceito que transfiguram os mais simples gestos ou acções e apetece fixar, como fixamos os versos ou frases dos escritores clássicos, de que este é exemplo, mesmo em tradução.
Uma história de amor, talvez de adultério ou apenas algum desgaste  que resultam em fuga da mulher – Astrid – e na reconstituição da vida própria do narrador – crítico de arte, também motorista de táxi quando a conhecera, ainda jovem – e ao longo da narrativa vai incluindo factos que, percorrem essa vida, em analepses frequentes, de instantes sempre iluminados por clarões incisivos que a cada passo nos deslumbram quer no realismo dos traços, quer na seriedade da crítica, quer na visão satírica de uma sociedade burguesa, intelectual, ou mais jovem, quer no colorido que tudo envolve: uma infância um tanto desamparada, por uma mãe vaidosa e ausente e um pai ocupado e fraco, uma vida pessoal de rapaz habituado a gerir o seu destino, passando as suas camisas, cozinhando a sua comida, vivendo as suas aventuras. Finalmente o conhecimento de Astrid e do seu filho Simon, fugindo do presunçoso realizador de cinema com quem vivia, apanhando o táxi, em voltas sem rumo, até que ele os hospeda em sua casa. E depois de um casamento de dezoito anos, com uma filha comum, Rosa, um dia Astrid parte, no inesperado de um comportamento orgulhoso e fechado, que o deixa inerte e ansioso, sem, contudo querer dar parte de fraco. Seguindo-lhe, porém, as voltas, segundo as pistas deixadas pelo extracto de contas comum, imaginando os seus passos, reconstituindo panorâmicas já vividas, a própria filha, cúmplice da mãe, deixando na indefinição o paradeiro desta, conhecendo embora o amor que unia os pais e cujo orgulho os isolava na respectiva concha, deixando antever uma hipótese de viragem.
Uma história de gente comedida e orgulhosa, que prefere o silêncio à justificação, a fuga e o olhar enigmático de Astrid antes de voltar costas e desaparecer, como penetrando silenciosamente no íntimo do marido, para sempre em dúvidas e em suposições dos motivos impulsionadores  da sua decisão.
Toda a intriga é um repescar de memórias, de explicações hipotéticas, de divagações que vão confluindo em uma consciência da impossibilidade do definitivo. Toda a obra é de um extraordinário interesse, quer no desenho dos caracteres, quer na elegância dos conceitos e sobretudo no fulgor de um descritivo sensorial e imagístico de extraordinário efeito.
Foi um livro oferecido pelo Ricardo, Binha e Ana, em 2002. Só agora o li, soterrado que fora na vida dispersa que sempre vivi. Nele o Ricardo escreveu: “Um título sugestivo… não te esqueças que faço anos em Outubro!... Feliz aniversário»
Um título sugestivo, sim, este de “Silêncio em Outubro”. Mas eu não me importaria de lhe dar por título “Sinfonia em Outubro”: pela expressão sensorial em que a cor domina, pela argúcia na descrição de personagens, de eventos ziguezagueando ao sabor das recordações, na busca incessante ditada pelo amor e a comunhão, na consciência dos gestos da mulher, mesmo na distância dos espaços e dos tempos. Como escritor de arte, o narrador deslocava-se frequentemente aos Estados Unidos, em pesquisas, que possibilitaram relações de adultério e a consciência pesada.
Já em tempos transcrevi a introdução do livro, iniciada em Lisboa. Não resisto à tentação de fechar estas páginas com a transcrição do seu final, também em Lisboa, com pena de não o fazer a tantos outros descritivos desta Arca de esplendorosa magia, o mistério fazendo dela parte, num desenlace não decidido, de narrativa aberta:

«Peguei no monte de cartas na mesinha da entrada e levei-as para o meu quarto de trabalho. Li repetidamente os extractos de banco de cima abaixo com as datas e os sítios onde a Astrid usara o seu Master-Card, uma narrativa lacónica de nomes e números sobre os seus movimentos. Deixara este rasto para me levar de novo a Lisboa, pela nossa rota de outrora. E ali me deixava agora, entregue às minhas recordações. Enquanto me sento, ainda de casaco, frente à minha vista sobre os Søerne, acaba talvez de acordar no hotel da rua da Senhora do Monte. Talvez se sente um pouco na borda da cama, repousando o olhar na parte da cidade e do rio que por acaso é o seu panorama. Talvez espere ainda um bocadinho antes de se vestir e de sair do quarto. Imagino-a recostada numa nesga de sol, olhando nua para os telhados de Lisboa, para o rio amplo e para a outra margem, onde os pára-brisas de carros invisíveis numa fracção de segundo captam o sol, cujos reflexos atravessam o rio para a sombra desse quarto como rápidos e desconexos sinais de Morse. Talvez se admire de tudo ter dado nisto, como se não pudesse ter sido doutra forma e nada estivesse no entanto decidido. Quando me recordo da Astrid em Lisboa há sete anos atrás, ela anda só, não me vejo com ela em parte nenhuma. Sozinha, de olhos semicerrados contra o sol claro de Outono que faz brilhar os trilhos dos eléctricos nas ruas íngremes à sua frente. Estava sol na manhã seguinte, e demos uma volta pela Graça, pelo mercado onde já desmontavam as tendas. Fomos indo sem saber bem aonde, descendo simplesmente rumo ao rio azul que estava sempre a aparecer entre os telhados. Não estou em nenhuma das fotografias de Lisboa, é só a Astrid, como se eu nem lá tivesse estado. Sentada na esplanada de um café do Rossio, perto do qual os eléctricos guincham, ao dar a curva e o sol bate no fumo leve dos vendedores de castanhas, enquanto ela inclina a cabeça olhando para a chávena de café à sua frente, alheia num pensamento. De costas para mim, numa vereda do Jardim Botânico erguendo a cara de perfil num olhar atento às asas de um pássaro que esvoaça contra a folhagem densa das plantas sob a abóboda das árvores que coam o sol cujas manchas amarelas pejam o saibro e o seu casaco claro. Na amurada do pequeno cacilheiro que nos levou à outra margem, de óculos escuros e alvo sorriso frente à cidade branca. Tirou-me apenas uma fotografia, nas ruínas do Convento do Carmo. Sem telhado, os pardais voam ao ar livre entre os muros nus e cheios de musgo. Estou de pé, na relva,  sob as ogivas que se desenham contra o céu como costelas descarnadas. Sorrio ao fotógrafo invisível, mas o disparo demorou e o sorriso parou. Já não é de facto sorriso nenhum, apenas um esgar forçado e idiota ao encontro do meu próprio olhar, como se me visse por seu intermédio. Como se, ao encarar-me a mim próprio, abrisse um vazio onde ela já desaparecera.»

 

Obrigada Ricardo, pela vossa oferta longínqua deste livro que só agora leio, neste Setembro do meu silêncio conciso, de incompreensão também. Prometo que não silenciarei nos teus anos deste próximo Outubro.  Não acreditas que isso fosse alguma vez possível. Espero que gostes do meu artigo, que me receitaste como terapia do medo. Este, irracionalmente avassalador quando toca a nossa integridade física. Parente de uma tristeza desesperançada, quando encara a progressiva destruição que nos vai projectando no sentido de um “Medo de existir” do filósofo José Gil, embora este confinado ao caso político português.