quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

FOI-SE … O ANO…



De La Fontaine uma breve fábula
Para o ano terminar em parca graça,
Ano que se pautou pela chalaça
E a arruaça,
Muita trapaça,
Muita pirraça
Por cá, na praça.
Uma desgraça própria
Da nossa raça
Crassa,
O que muito
Me embaraça,
Por mais que faça
Por o ignorar
E erguer a taça.
Chiça!
Ou, como diria a nossa amiga:
 “Minha nossa!”

«O Burro condutor de relíquias»
«Um Burro de relíquias carregado
Imaginou ser adorado,
Pavoneando-se ante a convicção
De a si serem dirigidos o incenso  e os cânticos
Da multidão.
Um dos que o erro detectou
Com calor lhe explicou:
- Sr. Burro, tão louca vaidade ,
Do espírito afastai, rapidamente.
Digo-vos, sinceramente,
Que não é a vós mas sim aos ídolos
Que levais no dorso
Que as honras são declaradas
E a glória atribuída
Pela multidão.

Moral da história:
Dum magistrado ignorante
É  a veste que se saúda, não a pessoa.»

Ora não é bem assim, por cá,
Está mais que visto.
Muita gente há
Que as honras que de outros são pertença
Por ela são usurpadas,
E  sem escrúpulo concedidas
A Asnos vestidos das suas próprias relíquias
- As ideologias, que disfarçam
Ambições e aleivosias -
Que os idólatras admiram com muitas bazófias
E pífias
Próprias das suas muitas carências
No que concerne os feitos
E os certos direitos
Dos  reais herdeiros
Disto.
Valha-nos Cristo!
Ou, como diria a minha irmã:
“Isto só visto!”

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

As pústulas do ano que acaba



Charlie Hebdo e as farsas da sensibilite social, Syriza e as farsas dos pretensiosismos individuais, Sócrates e os seus amigalhaços da rede, o “abcesso” Tap, a irrupção de Sampaio da Nóvoa no tablado das banalidades protegidas, a bacoquice de uma comunicação que faz de Jorge Jesus tema de discussão nacional, as manifestações em favor da Grécia, outra bacoquice alvarmente perpetrada por quem se prepara para furar as malhas do bom senso e da ética no capítulo da auto eleição governativa, e essa farsa e esse governo, e a firmeza de um corajoso ataque de alguém que troça e que sofre, reconhecendo a inutilidade das suas farpas neste país pequenino.

O balanço do ano, de Alberto Gonçalves:

O ano de todos os perigos (e mais alguns)
Alberto Gonçalves
DN, 24/12/15
Janeiro
Em Paris, terroristas islâmicos matam meia redacção do jornal satírico Charlie Hebdo. Os europeus reagem à altura: espalham dísticos pelo Facebook a jurar "Je Suis Charlie" e, em simultâneo, empenham-se em evitar e até a condenar o exacto tipo de "blasfémias" que suscitaram a matança. Só não é a homenagem mais disparatada possível porque, numa espécie de concurso de malucos, também há - há sempre - aqueles que culpam o capitalismo e a "exclusão social".
Fevereiro
A palavra do momento é "Syriza", o partido grego que desafia a austeridade decretada pela Alemanha enquanto roga, por todos os santinhos, que a Alemanha continue a emprestar-lhe dinheiro. Por cá, correm duas teorias. Uma, subscrita por autoconsagrados intelectuais e pelo Dr. Costa, é a de que o Syriza inaugura uma Europa insubmissa e solidária. A outra é a de que, de catástrofe em catástrofe, a Grécia servirá de "vacina" para arroubos extremistas. Chega a espantar que Portugal não exporte videntes, mas em poucos meses se perceberá a razão.
Março
Quem tem amigos não morre na cadeia? Talvez não, mas arrisca-se a viver lá uns tempos. José Sócrates, o preso político mais célebre e imaginário do país, não se livrou de uma temporada em Évora. E tem excelentes amigos, dos que emprestam fortunas, cedem apartamentos de luxo, arranjam empregos de categoria, compram a "tese" aos milhares, amigos enfim como eu nunca tive. Mas também não tive de suportar visitas sucessivas do Dr. Soares, um relativo consolo.
Abril
Enquanto o país se entretém a descobrir eventuais candidatos à presidência, o extraordinário talento de António Costa e o "movimento", algo estático, Não TAP Os Olhos, aproveito a única virtude da "companhia de bandeira" e fujo da pátria amada durante três semanas. Saudades? Aquelas que se têm de um abcesso: embora maçador e escusado, é nosso.
Maio
Sampaio da Nóvoa explica a função do Presidente da República: é o que "abre o futuro quando caminha ao lado das pessoas". Já a função do Prof. Nóvoa é colar palavrinhas umas às outras e produzir o tipo de frases "inspiradoras" que ficam impecáveis nas redacções de crianças de todas as idades. Depois da reitoria, deve haver algum lugar adequado ao homem. Segundo as sondagens, Belém não é um deles.
Junho
Um treinador de futebol troca de clube e o país confunde isso com um assunto. De súbito, toda a gente (não é força de expressão) desata a analisar com detalhe laboratorial as acções, o pensamento, as palavras e os silêncios do Sr. Jorge Jesus. Visto de fora (isto é que é força de expressão), é um espectáculo peculiar. E impossível de acompanhar até ao fim, quer por não haver fim aparente quer por não haver tradução para português do que diz o homem e do que dizem os seus estudiosos.
Julho
Através de referendo, a Grécia volta a dizer "não" à ditadura do capital. No dia seguinte, volta a dizer "sim" a cheques ao portador ou transferências em numerário. Em Portugal, multiplicam-se as manifestações de solidariedade para com a valentia helénica. Escritores partilham o prémio (mas não o respectivo dinheiro) com os gregos. Deputados levantam cartazes (mas não depositam verbas) pelos gregos. "Personalidades" organizam conferências (mas não peditórios) em favor dos gregos. Imperturbável, a realidade avança.
Agosto
Arranca, oficiosamente, a campanha eleitoral ou, no caso do PS, uma sucessão de rábulas cómicas. A tendência nas sondagens leva os media a notar, com espanto, que os socialistas ainda podem vir a perder as "legislativas". Eu também noto espantadíssimo que, com um ex-líder na cadeia e um líder que parece foragido da creche, além da fabulosa bancarrota "socrática", o PS ainda era tido por muitos "analistas" como o vencedor "natural". Subjugar a análise ao desejo causa transtornos assim.
Setembro
Perante a vaga crescente de refugiados do Médio Oriente e arredores, apurou-se com perspicácia que, embora sendo em grande maioria muçulmanos em fuga dos excessos (?) do islão, a solução ideal consiste em culpar a "resposta" europeia, acolhê-los a todos e observar rigoroso respeito pela exacta cultura que transformou as respectivas vidas num inferno. Nos intervalos de tanta lucidez, há vigílias e noticiário sentimental.
Outubro
A "direita" ganha as eleições, facto que confirma de vez a idiotia do povo. Felizmente, em poucas horas percebe-se a iminência de uma golpadazinha a cargo da alegada maioria parlamentar, pelo que o povo volta a ser soberano, lindo e avisado. Passada a surpresa inicial, a "direita" acredita na sensatez dos deputados do PS, exercício semelhante a acreditar na costela feminista do ayatollah Khomeini.
Novembro
Cavaco convoca dois terços da sociedade ao Palácio de Belém. O Dr. Costa conspira com os partidos comunistas a fim de derrubar muros. E a esquerda, que chama coisas irreproduzíveis à "direita", acusa esta de mau perder e má-criação. Nos tempos livres, os comentadores que começaram por achar o arranjinho perigoso e que depois passaram a achá-lo impossível, agora explicam que tudo é normal e democrático. No fim do mês, o Dr. Costa é "primeiro-ministro" (os venezuelófilos ficam dispensados das aspas).
Dezembro
Portugal entra no Terceiro Mundo com galhardia. O Dr. Costa decide afugentar qualquer sombra de investimento estrangeiro ao jurar anular à força o negócio da TAP. De seguida irrompe o "caso" Banif e acabamos o ano a suspeitar que temos um governo do PCP representado por relíquias do PS e suportado pelo PSD, com o BE a providenciar bombos e exotismo. Em 2016 não haverá quem nos apanhe. Até porque todos correm na direcção oposta.

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

«O Lodaçal»




«Apenas Carlos se sentou ao pé dela, D. Maria perguntou-lhe logo por esse aventureiro do Ega. Esse aventureiro, disse Carlos, estava em Celorico compondo uma comédia para se vingar de Lisboa, chamada o Lodaçal...
- Entra o Cohen? perguntou ela, rindo.
- Entramos todos, Sr.ª D. Maria. Todos nós somos lodaçal...» (Cap. X de “Os Maias”)

Vem o texto de Eça a propósito do artigo de João Miguel Tavares, bastante explícito na questão do dinheiro que nos foi emprestado para revitalizar o país e pagar a dívida pública e privada, apenas, a banca estando de boa saúde, ao que se pensava. João Miguel Tavares prova, contudo, que  assim não foi, sucessivamente a nossa banca vai falindo, aqui, ali, acolá, os banqueiros fraudulentos usando os dinheiros públicos não para os guardar honestamente e os devolver quando lhes for pedido, mas em proveito próprio, não resistindo ao poderoso atractivo do sinistro "metal" que pode melhorar as vidas dos pobres, em súbitos paraísos de possibilidades, e as vidas dos ricos em concretizações de ilimitado poder, esquecidos uns e outros, dos efeitos desastrosos do toque da campainha para “matar o mandarim”, ainda segundo a concepção de Eça de Queirós, para se enriquecer, mesmo à custa da miséria que vai causar na família do mandarim.
Ninguém, obviamente, resiste a “matar o Mandarim” para ficar milionário e experimentar os eflúvios do poder e da riqueza sobre o mundo, esquecidos do conceito “pó” em que nos tornamos segundo a Bíblia, que ainda desconhecia os componentes galácticos em que os astrónomos recentes e os telescópios potentes  nos submergem – pó, gases e estrelas à mistura, mais o buraco negro da absorção final aterradora.
Quando Ega recolhe à quinta da mãe, em Celorico de Basto, para se lavar dos maus sucessos da sua “estreia” em Lisboa, que julgara conquistar com o sucesso da sua verve satírica e da sua veia literária de contínua promessa irrealizada, já desde Coimbra, das suas “Memórias dum Átomo” e  afinal descambando no escândalo da relação com a judia Raquel Cohen, mulher do banqueiro Cohen, não se tratava ainda das fraudes bancárias, pão nosso de cada dia dos nossos dias. De facto, o banqueiro Cohen, tendo descoberto o adultério da esposa na sua sordidez real, propusera as bengaladas indignadas da purificação, mas a precaução social fizera-o retroceder para a viagem de recreio e de esquecimento do casal apaziguado. Quanto ao humilhado Ega, promete – promessa naturalmente não cumprida - desancar Lisboa na comédia “O Lodaçal”, escrita à sombra das faias de Celorico. Um “Lodaçal” sobre uma Lisboa pedantemente instalada nas suas vaidades e hipocrisias convencionais, a par da pelintrice decadente de uma estrutura social de eterna mesquinhez cultural e física.
De facto, não se tratava ainda deste escândalo dos nossos tempos, de desvergonha e aproveitamento fraudulento do dinheiro alheio de que somos impunemente espoliados e que João Miguel Tavares põe a nu no seu artigo.
As perversões de oitocentos serviram à sátira mas não favoreceram a ética. E é provável que os nossos “banqueiros” consigam voar para outros Celoricos, não para esconder a vergonha que lhes falta, mas para provar ao mundo que se deve sempre matar o “mandarim”.

Vem aí um novo resgate?
Público, 24/12/2015
Durante anos, venderam-nos que o grande problema de Portugal – e a grande razão para a intervenção da troika – era a dimensão desmesurada da dívida pública e da dívida privada, e não a falta de solidez do sistema bancário. A falta de solidez do sistema bancário era o problema da Irlanda e da Espanha. A dimensão da dívida era o problema de Portugal e da Grécia. Só que, de repente, a gente olha à volta e percebe o quão profunda é a nossa miséria: afinal, o problema do país é tudo. É a dívida pública. É a dívida privada. E é a falta de solidez do sistema bancário.
João Duque escreveu há dois dias no DN que nós estamos “a pagar pela reputação do sistema financeiro”. Mas qual reputação, por amor de Deus? O BPN foi ao fundo e passámos um cheque de cinco mil milhões para salvar a reputação do sistema financeiro. O BES foi ao fundo e passámos mais um cheque de três mil milhões para salvar a reputação do sistema financeiro. O Banif vai ao fundo e passamos outro cheque de três mil milhões para salvar a reputação do sistema financeiro. E eu pergunto: quanto mais é preciso pagar para salvar a reputação do sistema financeiro? Não será preferível admitir de uma vez por todas que a reputação do sistema financeiro português está ao nível da reputação nocturna das esquinas do Técnico e partir dessa triste, mas muito simples, constatação para tentar encontrar uma solução definitiva para o problema, como fizeram os irlandeses e os espanhóis?
Se bem se recordam, aquando do resgate de 2011, no pacote dos 78 mil milhões de euros que a troika entregou a Portugal estavam previstos 12 mil milhões para a recapitalização dos bancos nacionais. Ao mesmo tempo que em Espanha se injectavam mais de 40 mil milhões nos bancos, com a possibilidade de chegar aos 100 mil milhões, em Portugal só metade do pacote financeiro disponível foi então utilizado. A banca parecia sólida, o BES dispensou ajuda para evitar que o FMI metesse o nariz nas suas contas, o país celebrou uma “saída limpa”, e o resultado é o que se está a ver: a troika partiu, a linha dos 12 mil milhões foi entretanto extinta, e subitamente as necessidades de capitalização dos bancos não param de aumentar.
Recordo que há 10 dias o economista João César das Neves já afirmava que o buraco do Banif poderia ser demasiado grande para as actuais capacidades do sistema financeiro português. “É possível que tenhamos de pedir ajuda internacional”, dizia ele. Eu sei que nestas coisas é preciso ter cuidado com os alarmismos – mas não me parece que até agora as práticas não-alarmistas tenham sido particularmente eficazes. Aquilo que estamos a assistir no Banif é a uma nova falha da regulação, a uma nova ocultação da dimensão do problema e a uma nova nacionalização de dívidas privadas, sem que, mais uma vez, haja tempo para discutir o que quer que seja.
Mas há mais. O buraco no Banif é astronómico, o último Expresso anunciava que a Caixa reclama 400 milhões de euros, toda a gente fala nas necessidades de capitalização do Novo Banco e de como esse número pode ser assustador, quase ninguém fala nas necessidades de capitalização do Montepio para que o país não morra de susto; junte-se a Caixa ao Banif, o Banif ao Novo Banco, o Novo Banco ao Montepio, e há uma pergunta que tem obrigatoriamente de ser feita: o país tem dinheiro para pagar tudo isto? Ou temos um segundo resgate à vista? Não me alarmem – mas digam-me, por favor, que eu gostava de saber.

domingo, 27 de dezembro de 2015

Alá nos valerá



Dois estudos que, divergindo, se complementam: o primeiro, de Vasco Pulido Valente, revelador do que há muito se sabe a respeito da nossa penúria intelectual e de princípios éticos, justificativa da eterna atrofia em que nos remexemos, sempre manipulados por circunstâncias e seus aproveitadores na condução dos destinos pátrios, pondo e dispondo de acordo com a doutrinação ou os interesses próprios das diferentes chefias. Mas se Vasco Pulido Valente o historia, desde os circunstancialismos que ditaram a mudança do regime absoluto em regime  pretensamente liberal, e que resultaram na indignidade de uma irresponsabilidade contínua, o artigo de Alberto Gonçalves mais uma vez põe o dedo na ferida revelando um tal guia de acolhimento segregativo dos refugiados feito pela DGS – julgo que por ordem de comandos alheios –  que apontam bem a abjecção e a indignidade de uma Europa a ser manipulada por um Islão de repugnantes leis rácicas, que pretendemos aplicar a esses, no respeito solidário pelos seus fundamentalismos que, todavia, reprovamos. O guia alternativo do sociólogo, de evidente exagero, é, todavia,  uma lufada de ar fresco na hipocrisia do mundo – o oriental como o ocidental.  Quanto à questão da Tap e os desígnios de António Costa e seus parceiros, é demasiado perigosa para este mísero país, para que possamos rir das graças de Alberto Gonçalves. Mas admiramos-lhe, como sempre, a coragem e a eficácia do seu humor.

A educação de um povo
Vasco Pulido Valente
Público, 12/12/2015
O primeiro regime supostamente “representativo” que houve em Portugal não foi o resultado de nenhum movimento interno. Foi resultado da guerra contra os franceses, do exílio de D. João VI no Rio e da perda do monopólio colonial. Um pronunciamento militar, o “24 de Agosto”, conseguiu impor aos portugueses uma Constituição “radical” e a burocracia, a Igreja e o exército escolheram os deputados, depois de um simulacro de eleições. Nem a “classe média”, nem evidentemente o povo que vivia da terra participaram no exercício. Entre tentativas de rebelião armada, as Cortes Soberanas duraram pouco tempo (um ano e uns meses) e não trouxeram a ninguém qualquer educação para a liberdade e o respeito da lei. Portugal voltou ao antigo regime até à morte de D. João em 1825.
Em 1826 começou uma guerra civil que durou até D. Miguel desembarcar em Belém, vindo de Viena. A seguir a uma insurreição armada da gente de 1820, o Infante impôs com dureza as regras da Monarquia tradicional. E, em 1832, o “liberal” D. Pedro apareceu perto do Porto com uma expedição, paga pela Inglaterra e a França, e começou uma guerra que só acabou em 1834 com a derrota do “miguelismo”. A situação que saiu desta “vitória”, perante a indiferença do país, não passou de “uma balbúrdia sanguinolenta”, em que os regimes se sucederam até a uma nova guerra civil, a da “Patuleia”. Em 1851, surgiu por miséria e cansaço um arranjo chamado “Regeneração”, que domesticou o exército e os políticos, pedindo dinheiro no estrangeiro em grandes quantidades. Anos relativamente felizes, com que a crise financeira de 1892-1893 definitivamente acabou.
Ao fim de 70 anos de “liberdade legal”, como se dizia, os portugueses não sabiam ainda o que eram os seus direitos, nem os seus deveres, e o poder permanecia ilegítimo e arbitrário. A dívida custou a Portugal a relativa tolerância da “Regeneração”, a interferência inconstitucional do Rei na política partidária, 15 anos do corpo a corpo geral da República e a ditadura de Salazar e de Caetano. Um preço alto. Pior ainda, entrou na III República sem a mais vaga noção da espécie de cidadania que um Estado democrático implicava e requeria. Uma coisa dessas, para se aprender, precisa de uma longa tradição histórica, que por acaso ou por desgraça a nossa história não nos deu. Em 2015 não devemos esperar muito do futuro, porque nós próprios somos responsáveis pelo nosso destino e a nossa responsabilidade, talvez não por nossa exclusiva culpa, não é muita.

Como receber refugiados: um guia alternativo
Alberto Gonçalves
DN, 20/12/15
A Direcção-Geral de Saúde (DGS) concebeu um guia de acolhimento das (aparentemente poucas) dúzias de refugiados que aceitaram mudar-se para cá. Com as melhores intenções, 112 páginas e a colaboração de "nutricionistas, dietistas, médicos, veterinários, psicólogos e especialistas em relações internacionais", o guia diz-se "inovador a nível nacional". Não admira, dado que é também uma das mais violentas manifestações de racismo, xenofobia e segregação que um Estado dito democrático é capaz de produzir.
Dominado por "imperativos de ordem cultural e religiosa", o curioso documento limita-se a reproduzir um pedacinho do fundamentalismo que afugentou os refugiados para a Europa, quer estes tenham ou não tenham consciência disso. Exemplos? Vamos a eles: nas consultas médicas, as mulheres só devem ser atendidas por mulheres. Os alimentos devem estar circunscritos à lei islâmica, leia-se nada de porco e derivados, álcool, sangue. O abate dos animais deve obedecer aos métodos considerados halal. O jejum do Ramadão deve ser equilibrado por uma dieta adequada (o guia inclui receitas e tudo). Etc. E isto versa apenas matéria clínica. Espera-se a qualquer momento que diversos organismos públicos publiquem códigos de vestuário, organização familiar, boas maneiras, hábitos sexuais e o que calhar, sempre com mil cautelas - ou as cautelas necessárias para impedir que os nossos convidados se possam ofender connosco. O guia da DGS, convém notar, destina-se aos indígenas.
Ouvi por aí que semelhante toleima é consequência natural do "multiculturalismo". É uma razão parcial. Sendo verdade que constitui um refúgio (sem trocadilho) de idiotas, é igualmente verdade que o problema do "multiculturalismo" passa pelo modo muito "unicultural" como é entendido: a regra obriga inevitavelmente à compreensão do "outro", mas nunca se lembra de obrigar o "outro" a compreender-nos a nós. Por vários motivos, era útil que o fizesse.
Aliás, já cumprimos a primeira parte do compromisso durante séculos. Portugal e o Ocidente em geral lembram-se perfeitamente do que é proteger por lei o tratamento discriminatório das mulheres. E perseguir criminalmente homossexuais. E legitimar a escravatura. E punir a ciência que questione a "realidade". E executar apóstatas no meio da praça. E, em suma, colocar a religião no centro da existência enquanto se castigavam os ínfimos vestígios de dissidência ou distracção. Experimentámos as actividades referidas e, salvo pelos raros tradicionalistas que terminam a falar sozinhos ou na cadeia, não gostámos particularmente delas e decidimos trocá-las por hobbies menos, digamos, radicais.
Sucede que a vasta maioria dos muçulmanos não beneficiou de oportunidade idêntica. Ao contrário do que acontece connosco, a "cultura" que a DGS exige que respeitemos é a única que eles conhecem. Em nome da hospitalidade, da abertura, da tolerância e de palavras assim lindas, importa ajudá-los a conhecer o resto. Julgo que foi o escritor francês Michel Houellebecq quem sugeriu o bombardeamento das nações islâmicas com minissaias, contraceptivos e pornografia. É um princípio, e cabe-nos garantir que não seja o fim.
Desde logo, a circunstância actual dos refugiados facilita imenso o processo: os muçulmanos encontram-se à mão de semear. Semeemos pois entre esses infelizes o exacto tipo de "licenciosidade" que tanto eriça o Prof. Freitas do Amaral. Há que iniciá-los no prazer da blasfémia, nas virtudes do deboche, nos meandros da pouca-vergonha, no gozo da excentricidade, nos apelos do vício e afinal no pleno exercício da liberdade terrena, que para a celestial não faltará tempo. Se coubesse um pingo de humanidade nas cabecinhas da administração pública, o guia de acolhimento recomendaria médicos de acordo com a especialidade e não com o género, piropos em vez de pudor, pândega em vez de Ramadão, risco em vez de medo, arte em vez de cartilha, Nabokov em vez de castigos, mundo em vez de gueto, século XXI em vez do XI, factos em vez de superstições, cabidela em vez de tofu. É dever de todos os portugueses e ocidentais responsáveis mostrar aos refugiados o que andam a perder. Até porque a alternativa é perdermos nós.

Sexta-feira, 18 de Dezembro
Pelos ares
António Costa, que a Providência colocou ao nosso serviço, garantiu que o Estado tomará posse da TAP a bem ou a mal. Será, naturalmente, a mal, o que além de permitir que possamos voltar a optar por viajar pelo triplo do preço para um vigésimo dos destinos disponíveis, terá o divertido bónus das indemnizações. É que os actuais proprietários, gente decerto mesquinha, não devem encarar o assalto - chamemos-lhe reivindicação patriótica - com bonomia, pelo que talvez recorram aos tribunais por pirraça. E a menos que o Dr. Costa a pague do seu bolso, ou do bolso dos companheiros de luta que o ampararam até ao poder, a despesa recairá sobre o fatal contribuinte. Por sorte, e a dádiva de 60 cêntimos na sobretaxa, não nos custará muito amealhar uns milhões adicionais para reaver a "companhia de bandeira" (sic) e, cito de novo, as caravelas do século XXI. De resto, precisaremos destas para rumar à Venezuela, o inevitável destino de um país entregue a alucinados e que, de futuro, o mundo civilizado tratará com nojo. Adeus, Ocidente: Portugal vai pelos ares.