sábado, 19 de março de 2016

Engrenagem antiga



O artigo que segue, de Vasco Pulido Valente, é a continuação de «Uma tradição nacional» que transcrevi no meu blog em «Isto é um supônhamos», onde gravei um excerto de Júlio Dinis, que nos dá uma visão humorística de comportamentos e características  de alguns espécimes mais salientes entre a massa popular, dos que dirigem as aldeias, com o seu poder económico – o brasileiro Seabra – ou de elitismo social – o morgado das Perdizes – ou o mestre Pertunhas, da filarmónica e das reverências subservientes - exemplos simbólicos, dentro de um espaço minúsculo, de todo um povo de reduzida expressão cultural, manietado pelos chefes, que, por sua vez, nesse rebanho que manipulam, se apoiam para singrar. Facilmente se percebe que, numa rede assim criada de interapoios, o clientelismo e a dependência do Estado sejam expressão de uma nacionalidade, tímida do ponto de vista cultural, necessitada de “encosto” para progredir, o paternalismo do Estado, todavia, precisando, num sistema assim, improdutivo e corrupto, de se apoiar nos “empréstimos” para satisfazer uns e outros. E assim nasce a teia, e a síntese de Eça, na voz do banqueiro Cohen, que se relembra com um sorriso e se segue com empenho:

«- Então, Cohen, diga-nos você, conte-nos cá... O empréstimo faz-se ou não se faz?
E acirrou a curiosidade, dizendo para os lados, que aquela questão do empréstimo era grave. Uma operação tremenda, um verdadeiro episódio histórico!...
O Cohen colocou uma pitada de sal à beira do prato, e respondeu, com autoridade, que o empréstimo tinha de se realizar absolutamente. Os emprestamos em Portugal constituíam hoje uma das fontes de receita, tão regular, tão indispensável, tão sabida como o imposto. A única ocupação mesmo dos ministérios era esta - cobrar o imposto e fazer o empréstimo. E assim se havia de continuar... («Os Maias», cap. VI)»

É Ramalho Ortigão que, com mais objectividade e rigor histórico, explica, a propósito de Fontes Pereira de Melo, o hábito contraído aquando dos empreendimentos do fontismo, de endividamento contínuo. É Vasco Pulido Valente que, com idêntica seriedade e rigor histórico, historia tal processo de clientelismo e de dependência estatal:

Em conversa com Rui Ramos
06/03/2016
Continuando a conversa com Rui Ramos. Para começar, é preciso dizer que a dependência do Estado de uma parte da população portuguesa foi crescendo durante todo o século XIX e no século XX até Salazar. Única maneira de “subir” na vida, continuou sempre a ser a carreira preferida da gente que saía do campo à procura de melhor sorte. De resto, o Estado também mudou invadindo áreas cada vez maiores da sociedade. De um Estado cuja função era fundamentalmente reguladora e policial, o país passou a um Estado que absorveu funções técnicas e se imiscuiu progressivamente na economia. O número de funcionários aumentou e também o défice e a dívida com que eles se pagavam. A literatura política do tempo está cheia de lamentos sobre esta situação, que se achava incompatível com a dignidade da Pátria. Não, não se tratava do simples “carneiro com batatas”, como o Rui está farto de saber.
As consequências da miséria do Estado eram muito diferentes das de hoje: dependência do exterior (ou dos “portadores da dívida”, como na altura se dizia), estagnação económica e, nas cidades, desemprego. Certo que no campo, mal ou bem, mas sobretudo mal, se ia conseguindo sobreviver e que muitos trabalhadores de Lisboa e do Porto se refugiavam na sua terra da origem e na sua família. Só que os trabalhadores de 2.ª ou 3.ª geração morriam de fome pelas ruas, sem simpatia e sem ajuda, enquanto almas sensíveis lamentavam nos jornais a imoralidade da esmola. Desde 1851, para não falar das guerras civis, Portugal balançou entre períodos de expansão da dívida e do funcionalismo e períodos sem crédito, ou um crédito caro e de contracção do funcionalismo. Fosse como fosse, as clientelas continuavam.
A grande mudança veio com a revolução de expectativas depois da II Guerra Mundial, que chegou a Portugal em 1974-1975. Os direitos do cidadão que, na prática ou constitucionalmente, cobriam uma existência do nascimento à morte trouxeram clientelas de massa, a que o Estado teve de atender. A saúde, a educação, a reforma, a cultura, a investigação, os transportes acabaram por se tornar serviços que o Estado devia gratuitamente fornecer e a quantidade de pessoas que trabalhavam nesses serviços subiu para números quase inacreditáveis. As pequenas clientelas do concelho ou da administração são agora clientelas de massa em que sobrenadam meia dúzia de “influentes”. Sem a eliminação radical deste regime, não há reforma possível.

Um excerto de Ramalho Ortigão , («Farpas escolhidas») aclara a questão – referindo a sucessão de partidos de truques idênticos, a Regeneração convertida, finalmente, em Fontismo, sendo este o pólo supremo de todas essas tramoias de clientelismo e enriquecimentos ilícitos:
«Há contudo na administração regeneradora dois factos culminantes que directamente influíram na opinião do público, e algum tanto na orientação social. Estes dois factos são a conversão da dívida pública, e a prática inteiramente nova dos pagamentos em dia aos empregados e aos pensionistas do Estado. Os pagamentos pontuais, que ainda hoje se fazem nos dias primitivamente fixados pelo inovador, conciliaram à situação regeneradora as simpatias agradecidas da classe mais importante da nação. A conversão da dívida, capitalizando os juros em débito por meio de uma operação engenhosa e complicada, abriu a porta a sucessivas operações análogas, habituando o Governo a apelar para o crédito, contraindo empréstimos sobre empréstimos com uma frequência a que o país acabou de se tornar indiferente, bastando-lhe, como aparência de prosperidade, ver que os seus agiotas medravam a olhos vistos, que as estradas progrediam, que os pagamentos do tesouro e das secretarias continuavam a achar-se em dia, que as fábricas aumentavam bafejadas pela protecção das pautas, e que sobre tudo isto a retórica da representação nacional não cessava jamais de derramar torrentes infindáveis de metáforas as mais arrojadamente jubilosas e optimistas, bem que, a exemplo do que sucedeu ao Governo, sucessivamente se fosse endividando tudo – as câmaras municipais, as juntas gerais, as juntas de paróquia e as casas dos particulares.
Os diferentes partidos que desde 1851 até hoje se têm revezado no poder com o primitivo partido regenerador, em coisa alguma alteraram os métodos estabelecidos no modo de governar. Não trouxeram um único princípio novo; prosseguiram fielmente no mesmo sistema de suprimentos, de conversões e empréstimos, substituindo apenas, em vista de uma justa consideração de equidade, os deputados, os governadores civis, os regedores e os agiotas amigos dos contrários, pelos deputados, pelos governadores civis e pelos agiotas seus próprios amigos.
Para que chegasse a vez, como era de justiça, o todos os diversos grupos de impaciências formadas à roda de cada ministério, subdividiram-se e multiplicaram-se os pretendentes, vindo depois uns dos outros, os históricos, os reformistas, os avilistas, os granjolas, os constituintes, os progressistas, além de vários pequenos agrupamentozinhos efémeros, que deram governos de conciliação e de transição, sem transição bastante para botar nome ou para receber alcunha……»

Hoje é Dia do Pai. Também o Estado parece um pai protector, se bem que pouco cordato. Ou serão os filhos que criaram essa imagem antiga de pai que a ninguém convém mudar, acobertados  os filhos sob o seu manto redentor?

Nenhum comentário: