quarta-feira, 16 de março de 2016

Um livro que hei-de ler




O texto que segue foi-me mandado pelo Ricardo. Uma defesa do livro de Henrique Raposo, por quem há tempos também Alberto Gonçalves veio terçar armas, numa crónica de 6/3 – “Portugal Prometido” - que incluí no meu blog, em 8/3 – (texto “Ter esperança”) - fustigando o primitivismo ou a boçalidade dos que o atacaram. Rentes de Carvalho é o autor do texto de Apresentação de «Alentejo Prometido», onde igualmente condena a parolice dos que o criticaram altissonantemente, sendo esse texto precedido de um “Rilhafoles” de desprezo. Um obrigada ao Ricardo.
Patrão da Barca: J. Rentes de Carvalho
terça-feira, março 15
Há por aí quem se aflija com o ódio, a estupidez, a inveja, os insultos de que abarrotam as caixas de comentários, e o mais que a internet possibilita. Mas de facto não há de quê, até é de agradecer, porque pouco importa que se mantenham anónimos: eles e elas são os mesmos do sorrisinho pronto e do carinhoso abraço com que no dia-a-dia nos cruzamos.
Por isso sorria-lhes também e tenha caridade, porque é questão de tempo. Mais dia menos dia enfrentam a própria raiva e acabam aos gritos numa cama de hospital ou atrás das grades do Rilhafoles.

Apresentação de Alentejo Prometido, de Henrique Raposo, Lisboa, 08.03.2016
Em meados de Dezembro, o Henrique Raposo convidou-me para apresentar o seu livro. Aceitei por duas razões, sendo a segunda a amizade que lhe tenho. A primeira é a do respeito que me merece a sua inteligência, e a consequente e independente maneira como defende as suas convicções.
Entretanto, e infelizmente, o que seria apenas um corriqueiro convívio, transformou-se num caso, acendendo paixões que não deveriam ter lugar numa sociedade civilizada e democrática, onde o diálogo é a regra, antes pertencem à bandalheira de quando muitos fazem muito barulho, criando para si próprios a quimera de que têm a razão do seu lado.
Em boa saúde mental, e por mais contrária que ela seja, a ninguém ocorrerá negar ao outro o direito à sua opinião. Se lho nega, automaticamente se exclui do quadro em que a democracia e a liberdade de expressão funcionam, dando preferência ao insulto e à ameaça, o que, permitam-me que o diga, não abona o grau de civismo de quem assim se comporta, como levanta dúvidas sobre as suas intenções.
Curioso de como ele expressaria a relação com as suas origens, quando recebi este livro do Henrique sentei-me a ler, pondo de lado a falta de afinidade que tenho com o Alentejo, o desalento que me causa aquela terra plana, a recordação dos calores que lá suportei, e a estranha indiferença que por vezes sofri ao perguntar um caminho ou pedir uma informação.
Tendo colocado esse biombo entre mim e a obra, li de uma assentada – expressão que só o Francisco José Viegas e eu ainda usamos, talvez também o Mário Cláudio – li pois, de uma assentada, até à página vinte e cinco, parando então para me recompor da inveja que senti, e iria aumentando até que parei.
A ver se explico o que me levou a franzir o sobrolho no começo deste Alentejo Prometido, e continuaria para lá da página vinte e cinco.
Acontece-me ser filho único, único neto, os primos que tenho são daquela gente em quarto ou quinto grau que, quando por acaso me recordam o parentesco, deixam a impressão de estarmos a representar numa peça do teatro absurdo.
Ora o Henrique Raposo, não pertence apenas a uma extensa família, tem à sua volta uma verdadeira tribo, o que aos meus olhos de filho único, com primos que nada me dizem, equivale à posse de certezas e seguranças comparáveis às que na Idade Média garantiam os castelos.
Esse sentimento de inveja manteve-se, mesmo naquelas passagens sobre os festejos do casamento, em que, tivesse eu participado, me sentiria demais, e incapaz de ceder a tão esfusiante alegria.
Li até ao fim, deixei assentar, e comecei uma vagarosa segunda leitura que foi, de facto, uma espécie de conversa, tentando compreender a visão do autor, e fazendo o possível para que o escasso conhecimento que tenho do Alentejo, os meus preconceitos, e a memória de um ou outro caso, não viessem interferir.
No Verão de 1964, passados catorze anos de ausência, pude voltar a Portugal, e o desejo de rever o país levou-me a Évora, depois ao litoral alentejano.
Recordo Santiago do Cacém; a lagoa de Santo André; o diminuto porto de pesca que Sines então era; a estranheza de Porto Covo, uma praia deserta. Em Vila Nova de Milfontes achei que chegava de calor e solidão.
Em Abril de 74, e nos meses seguintes, andei muito pelo Alentejo, tiraria dessa experiência um romance, mas a época era de confusão e irrealidade, dando-me ideia de testemunhar cenas de mau teatro, trágicos enganos e esperanças mentidas.
Dez anos depois, em busca de documentação para um guia de Portugal, percorri o Alentejo durante quase um mês.
O 25 de Abril tinha feito alguma diferença, mas para mim, homem do norte, ficou a recordação da planura, o sem-fim de sobreiros, azinheiras, aquele fogo do céu, o retraimento de algumas das pessoas com quem lidei.
A leitura de Alentejo Prometido veio confirmar alguns dos meus preconceitos para com a província e os alentejanos, mas em vez de me considerar apoiado, ressenti uma certa desconfiança em relação às proposições do autor, e à furiosa maneira como ele desanca a sua terra e a sua gente.
É que o Henrique, como se tivesse nas mãos uma daquelas mocas históricas de Rio Maior, bate a torto e a direito, e quando chegamos ao fim, à página 103, resta a impressão de que no Alentejo só se salvam as mulheres.
O que me pareceu demasiado radical para me convencer. Fora que, pelo meio, e foi isso que me deixou de pé atrás, canta ele um inesperado Laudamus ao norte de Portugal.
Por questões de genética, e porque se dá o caso das minhas raízes serem desses lados, presto uma doentia atenção a tudo o que se afirma sobre a terra e o povo nortenho.
Ora o Henrique, que tão franca e fortemente varre os alentejanos à mocada, fica todo de mimos quando se refere à minha gente.
Segundo ele, lá pelo norte, de manhã até ao serão, e pelos vistos noite fora, os nortenhos constantemente se abraçam e apertam, sorriem, querem-se bem, saúdam o forasteiro.
Da certeza desse carinhoso tratamento passa ele ao Douro, e é como se estivesse a recitar as Geórgicas de Virgílio. Com tanto entusiasmo, aliás, que eu por momentos me deixei convencer, dando por mim a olhar para as vinhas e as arribas do Douro com a ingenuidade dos turistas que, espichados ao sol, vão rio acima comendo e bebendo.
Deixem que eu tente refrear o entusiasmo do Henrique sobre a minha gente a minha terra.
Se o alentejano tem essa trágica inclinação para, pelo suicídio, se libertar das agruras da vida, o transmontano deita aos outros a culpa de tudo, raro lhe passa pela cabeça enforcar-se. Em vez disso, pega na caçadeira ou na calagouça, sai à rua e mata o vizinho.
Aquele Douro bucólico que entusiasma o Henrique, com gente que se beija e abraça, hotéis de cinco estrelas, barcos de luxo, não é o genuíno, o rude, pobre e atrasado Douro, é uma realidade virtual para inglês ver, fabricada um pouco à maneira das aldeias de papelão, com que Potemkin maravilhava a imperatriz Catarina da Rússia.
Parafraseando Bocage, este longo introito não foi eu que o fiz, mas o literato em mim, tentando ganhar tempo para esconder a perturbação.
Porque Alentejo Prometido me perturbou. É tudo menos um livro que convide ao gracejo e à ligeireza. Estão nele os factos, as dolorosas estatísticas, as confissões, a realidade crua de um viver pobre, a grande secura de bens e afectos sob um céu apostado a calcinar com igual ferocidade o chão e a alma.
O Henrique põe-se a si próprio, aos seus, aos alentejanos e ao Alentejo, num palco para onde o espectador olha com um sentimento em que o medo de ver e a curiosidade vão de mãos dadas.
Ao mesmo tempo, porém, fica a dúvida: mau grado as estatísticas, as tragédias que ele aponta, os testemunhos que partilha, não será a sua uma visão demasiado unilateral? Haverá fidelidade no seu olhar, ou somente paixão?
Porque é grande a discrepância entre o retrato que nos faz e, para só mencionar um, o do tão acarinhado cenário de montes românticos, dos quartos de hotel que, com tectos de vidro, oferecem o requinte de dormir ao relento sem o incómodo da canícula, da bicharada, e não querendo mais dos alentejanos do que ouvir-lhes ao longe o eco do cante.
Daí posso concluir que de nada adianta fazer de advogado do Diabo, tão-pouco importa concordar ou discordar do autor.
Um alentejano nascido, criado e reformado em Mértola, vê outro Alentejo. Os muitos holandeses que conheço e lá vivem, falam de uma terra paradisíaca, todo o avesso dos pólderes encharcados. E o turista, venha ele de Lisboa, do Texas ou da Suécia, irá lá menos para ver ou sentir, do que para se babar com as platitudes debitadas pela indústria do turismo.  
De facto será sempre cada cabeça sua sentença, o juízo de cada um não fazendo mais do que aclarar à sua maneira uma parcela da realidade. Ou, o que também acontece, distorcer essa realidade, em função dos sentimentos exaltados daqueles que apenas consideram justa a sua própria opinião, e pouca ou nenhuma ideia têm do que seja o direito à liberdade da palavra. Para não falarmos do que manda o civismo mais elementar: o respeito pelos outros.
É que dá pena haver tanta democracia na boca e tão pouca no comportamento.
Retornando ao livro.
Excelente prosa. Pode isto soar a cumprimento de circunstância, mas está longe de sê-lo, pois vai tempo desde que de um colega pude dizer o mesmo.
Esta prosa do Henrique Raposo, não me dá apenas a satisfação de vê-la  bem cuidada, mas prova que não me devo afligir com a miséria dos temas, nem com as enxurradas de má prosa, e os delírios de ignorância gramatical que, nos livros e jornais, diariamente testemunho.
Não me venham com o fadinho em ré menor, de que as escolas não ensinam e já ninguém lê.
O caso é que o geral das pessoas parece ter descambado e, pelas razões que todos conhecemos – a histeria de querer marcar presença, um pouco à maneira dos cachorros que vão dando mijadinhas em cada pneu de automóvel – em vez de ler desataram a escrever.
Isso importa ? Creio que não. Na nossa sociedade, mesmo nos tempos áureos do século XIX e meados do século XX, já era frequente a queixa de que as pessoas não liam. De facto assim era e assim é, e a absurda quantidade de livros editados, e vendidos, pouco tem a ver com o fenómeno da leitura.
Porque ler implica pensar, emocionar, sentir, dispor de tempo, actividades que pressupõem um nível de existência que nem a todos é dado, mas também de que muitos desdenham ou desconfiam, pois não tem som, nem cores, não dá fama, nem proveito imediato.
Assim sendo, arrisco-me a dizer que o Alentejo Prometido só irá cair nas graças dos que sabem ler e se dão tempo para pensar.
Esses tirarão o proveito de serem confrontados com a sinceridade de um autor que investiga, estuda, e procura compreender as razões das suas origens, e do desencontro dos sentimentos, que ora são de pertença, ora de rejeição.
Certo de ter compreendido e encontrado, surpreende ele o leitor, afirmando:
"A linhagem do velho Alentejo termina aqui o seu caminho. Não passará para as minha filhas. Não quero que elas sejam alentejanas, porque eu próprio não me sinto alentejano. Sou filho de uma migração que saiu do Alentejo, mas não sou nem quero ser alentejano."
Fora de dúvida que este desabafo é sincero e doloroso, mas confesso – e peço desculpa – o Henrique apenas dá prova de juventude, de ter agora certezas que um dia estranhará, julgando que pode escolher, que lhe cabe o poder de abandonar.
É compreensível que sinta a necessidade de gritar aos quatro ventos que não se sente alentejano, que cortou as raízes, mas o grito que parece de revolta é apenas de impotência.
A impotência de nada poder remediar, a incapacidade de compor o que nasceu e continuará torto, a tragédia de sentir que, no Alentejo, são sem conta os males que não têm cura.
Digo isto com um sentimento de comunhão e melancolia, porque também eu o gritei – não a uma província, mas ao país inteiro – jurando que não queria pertencer, que recusava o fardo.
Poderia ter nascido daquela gente, naquele chão, mas a minha sede de viver não se acomodava com aquele modo, nem aquela terra, pedia outros horizontes.
E nem adeus disse. Um fim de tarde voltei-lhe as costas, pus entre nós a largura  do oceano e, cortando ainda mais fundo, cuidei de usar outras línguas, quase esquecendo a minha.
Vivi assim décadas, certo de que conseguira desprender-me e me encontrava a salvo.
Para um dia, sem aviso, me dar conta de que tinha sido ilusão: o que eu julgara laços fáceis de cortar, eram algemas. Invisíveis, é certo, mas fortes e permanentes.
O mesmo acontecerá ao Henrique.
Que grite contra o Alentejo, que o encare e lhe faça um manguito. Que repita quantas vezes quiser que vai embora, que não lhe quer pertencer.
O Alentejo sorrirá. Porque o Henrique Raposo não é único, nem o primeiro que, magoado e triste, definitivamente se quer exilado. Tão-pouco será ele o último.  
Mas em todos, nos que partem desencantados, como nos que se acomodam e ficam, pesa igual a mesma realidade: a marca que os antepassados nos deixam na alma é indelével.
Ilude-se aquele que, indo embora, se julga capaz de poder descartá-la.

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