quarta-feira, 20 de abril de 2016

Aula Magna



Para “Memória Futura”, subtítulo em epígrafe das crónicas de Manuel Carvalho – e bem julgo que o ficarão, por aliar à inteligência crítica e dimensão cultural um bom senso e perspicácia de que andamos sedentos, num país de muita crise, de muita lamechice, de muita falta de orientação, suponho que por muita falta de competência também. Desde sempre. Talvez para sempre.
Já se perdeu tempo bastante com o episódio das bofetadas – bengaladas nos tempos da aristocracia de direito (se não de facto) – mas este artigo de Manuel Carvalho repõe os dados na circunstância de uma absoluta falta de modéstia e de princípios educativos e a sua análise é perfeita. Como o são, parece-me, as revelações sobre as intenções esclarecedoras ao Governo do PR no caso das “bengaladas” de Mário Draghi, ou a referência à actuação “anjinha” do Governo no caso da TAP e da extinção dos voos do Porto.
Uma aula para ser gravada nos anais da nossa história, mau grado a mediania dos factos.

A substância política da bofetada
Público, 10/04/2016
1. Há quem julgue que a ameaça de João Soares a Augusto M. Seabra e a Vasco Pulido Valente não passou de uma simples declaração de deselegância ou de falta de chá. Não é o caso. Muitos pensam que a promessa de umas “salutares bofetadas” são apenas um impropério vulgar de uma pessoa que há muitos anos se afirma em público pela grosseria travestida em desassombro ou em coragem política. É pouco para explicar o lamentável episódio que conduziu à sua abençoada demissão. João Soares deu-se ao luxo de armar em cavalheiro do tempo das cartolas e das bengalas para se dedicar à justiça por mãos próprias porque faz parte de uma certa classe de políticos que se julgam investidos de um direito divino a viver e agir acima dos mortais.
É essa convicção de déspotas iluminados pelo passado e pela intransigência ideológica que os leva a confundir a ameaça com a liberdade de opinião, o direito de resposta com o castigo aos que os ousam questionar. Um plebeu da política, tipo Passos Coelho ou Jorge Coelho ou Mário Centeno ou Augusto Santos Silva, seria fuzilado se alguma vez ousasse sequer meter um estalo no discurso; um aristocrata da política, como João Soares, pode prometê-los a quem bem entender porque, vindo de quem vem, não é ameaça, nem insulto, nem deselegância, nem terceiro-mundismo. É direito à palavra.
Pode ser romântico, mas a existência de personagens novecentistas como João Soares na política igualitária e dessacralizada do século XXI é um anacronismo que só podia acabar como acabou: numa demissão. Na sexta-feira, quando o país se ria ou indignava com a ameaça patética do ministro, tornou-se premente saber como iria o primeiro-ministro reagir. Costa, porém, esteve bem. Não precisava afrontar uma ala poderosa do seu partido, e não o fez. Não precisava de se assumir como um espalha brasas que vocifera à primeira contrariedade de um elemento cuja escolha foi da sua responsabilidade, e não o fez. Revelando a sua meticulosa arte de aranha política, capaz de construir teias à medida para qualquer estratégia, limitou-se a deixar o isco envenenado. Dizendo que um ministro é um ministro até no café. E pedindo desculpas aos visados. Dificilmente um diplomata experiente seria capaz de produzir um ultimato com tanta subtileza e eficácia.
Quando um ministro se digna prometer bofetadas a críticos numa página de uma rede social, a suspeita de que perdeu a noção das coisas torna-se pertinente; quando é forçado a demitir-se e não é capaz de perceber o erro em que caiu, a certeza de que vive num mundo paralelo, na qual uma qualquer cultura de valores jacobina e elitista ainda reina, ganha consistência. Ao cair, João Soares arrasta consigo um pouco dessa corte que se julga ter direito a tudo e a ser capaz de tudo por ter um passado e ideias irredutíveis que o testemunham. O PSD há muito que aboliu os baronatos e desceu ao país das pessoas comuns. É boa notícia que o PS esteja a seguir o mesmo caminho. Como dizia Paulo Rangel, está na hora de acabar com os doutores. Os que se julgam tão sábios e tão etéreos que até acham que as bofetadas podem ser “salutares”.  
2. Antes de Mário Draghi ter vindo a Lisboa participar no primeiro Conselho de Estado da era Marcelo, pouco se ouviu sobre a ideia. Mas, logo depois de presidente do Banco Central Europeu ter apanhado o avião de regresso, as críticas surgiram em catadupa. Do PS, através do deputado Ascenso Simões, mas principalmente do Bloco e do seu eterno guru intelectual, Francisco Louçã. Entre o antes e o depois, porém, há uma pergunta que convém fazer: alguém estava à espera que Draghi dissesse uma coisa diferente do que disse em relação ao Governo actual e ao anterior? Ora imagine-se que o convidado seria Iannis Varoufakis: alguém imaginaria um discurso diferente do que tem feito contra a “austeridade” por essa Europa a fora.
Registada a evidência, o que importa é determinar a razão que levou o novo presidente a convidar Draghi para falar aos conselheiros. E aí só há uma resposta óbvia: Marcelo quer manter na agenda política a pressão das autoridades europeias sobre a política financeira do Governo. Na sua versão de “Marcelo paz e amor”, o presidente não está disposto a rasgar o ecumenismo nem a tirar o capacete azul da ONU com que iniciou o seu mandato. Mas alguém por ele há-de vir a cena dizer o que o ardente desejo de mudança dos portugueses e a monumental capacidade do Governo em construir narrativas não deixam dizer: que Portugal permanece numa situação frágil, que numa mudança de governo não é boa ideia deitar fora o bebé com a água do banho, que o país tem de estar preparado para aceitar eventuais medidas difíceis. Era isso que o presidente queria que se dissesse e ouvisse. E Draghi fez-lhe o jeito com naturalidade e satisfação.
3. Dizia esta semana ao Jornal de Negócios o ministro do Planeamento, Pedro Marques: “Não acredito que algum português pense que o Estado, por ter xis por cento dos direitos económicos, não exercerá estrategicamente o seu papel de maior accionista” da TAP. Com o devido respeito, senhor ministro, há pelo menos um: o autor desta coluna. O que o confrangedor episódio do esvaziamento do aeroporto do Porto mostra sem margem para dúvidas é que o Governo não passa de um patinho sentado na administração privada da companhia. Porque o que está em causa desde o princípio é uma pergunta à qual nem Pedro Marques, nem António Costa nem a administração da TAP respondem: se a renacionalização de parte do capital tem como objectivo garantir a defesa do interesse nacional, por que razão se desinveste num aeroporto que, pela facilidade de acessos à principal região exportadora do país, tanto contribui para esse interesse? Se fosse por falta de clientes, nós percebíamos; mas com taxas de ocupação tão altas nos voos extintos, o que fica claro é que o Governo trocou o interesse nacional pela maximização dos resultados dos interesses particulares.
Pedro Marques pode dar-se ao luxo de tornar público um discurso assim incoerente e vazio porque o Porto e o Norte tornaram-se um rebanho manso de associações empresariais e autarcas. Com Rui Moreira a falar sozinho e a arriscar-se ao papel de D. Quixote cheio de razão, o Governo põe e dispõe dos interesses de uma das principais infra-estruturas do Norte e do Centro porque sabe que fala para uma plateia calada pelos interesses mesquinhos do protagonismo ou pelo medo de perder boleias do poder público. Muitos desses protagonistas amuados pela rivalidade de egos ou pelo receio de ter de esperar pela agenda do poder hão-de continuar por aí a falar do centralismo e das assimetrias que tornam o país injusto, desequilibrado e pobre. Mas, como bem sabe Pedro Marques, os omissos deputados ou ministros do Porto e do Norte, com esses é fácil lidar. Palavras, palavras, palavras. Que quando chegam combates a sério, como o da TAP, é vê-los retirar de mansinho. 

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