segunda-feira, 25 de abril de 2016

Sicut erat in principio



O retrato mantém-se, não subtil mas directo, segundo o esquema, não sei se real, do “elementar, meu caro Watson”, sem interpretações abusivas que retirem a clarividência da análise ou desfaçam o desequilíbrio  da tese, há muito assumida. Só que acrescida, em cada crónica, de mais um ou outro sinal “diacrítico” que lhe altera o tom ou o formato. Desta vez trata-se da estapafúrdia atribuição, por Costa e seus camaradas acompanhantes, de malévolas intenções aviltantes, aos vários países europeus e até talvez do resto da Terra, contra “nosotros” humildes, o que só vem reforçar o nosso complexo - não, todavia, o de Édipo ou de Electra, que são de luxos senhoriais esses da psicanálise encartada, não condizentes com a nossa  natureza modesta, que se limita ao de inferioridade, sem nome próprio a distingui-lo. É certo que, como reacção preconceituosa contra esses sentimentos humilhantes, já antigos e com razões para o serem, sempre lembrámos heroicidades passadas de que, aliás, os camaradas do Dr. Costa e muitos outros anteriores a esses sempre troçaram, como farroncas desprezíveis de aparência indignamente patriótica. Mas os outros povos europeus e talvez do resto da Terra realmente o que devem ter é inveja de nós, que temos bom sol às vezes, e bons enchidos, e por isso nos querem reduzidos à indigna miséria, o que nem é democrático nem bem aceite pelo nosso Costa, amante do requinte. Julgo que o anterior ministro Passos Coelho não imaginava que fosse esse o motivo das exigências europeias contra nós, atribuindo-o, como se sabe, a uma imposição moral de saldar as dívidas, que Passos desejou cumprir e Costa não vê como, porque nós, o povo, acima de quaisquer pruridos da alma, temos os direitos  do corpo, de ser bem tratado.
Daí as leis benignas que já decretou, de parceria com os seus apoiantes, e os sustos que causa à direita, com os optimismos manobradores dessa política que aparenta ser desastrosa, pelo menos para o sociólogo Alberto Gonçalves.
E aqui vamos nós, tendo, para mais, que ser embalados, nesses arraiais de patranhas idealistas, pela ponderação inteligente das virtuosas sórores do BE, que Alberto Gonçalves com tanta iracúndia desfaz. Assim vamos reflectindo. E agoirando.

A prosperidade é um estado de espírito
Alberto Gonçalves, Sociólogo
DN, 24/4/16
Por motivos que escapam ao comum mortal mas não ao olhar presciente do dr. Costa, a "Europa" naturalmente deseja que os portugueses vivam na mais abjecta miséria. E quem diz a "Europa" diz a Comissão Europeia, o FMI, a Alemanha, Pedro Passos Coelho, o senhor da confeitaria aqui ao lado e toda a súcia de comentadores ao serviço do imperialismo neoliberal. Alimentada por pura maldade, essa gente dá-se a uma impensável trabalheira apenas para subjugar-nos, humilhar-nos e forçar-nos a remunerações incompatíveis com as escaladas dos combustíveis que o governo, para nosso privilégio, decreta a cada semana. Por sorte, e ao contrário de anteriores governantes que conviviam - e colaboravam - impecavelmente com isso, o dr. Costa "não aceita" viver num "país de pobreza". E se o dr. Costa não aceita, postura com credibilidade acrescida por ter sido assumida em patuscada do PS com cantilenas de Carlos Alberto Moniz, não se imagina qual a legitimidade de uns burocratas em Bruxelas para contrariá-lo. Que se saiba, não lhes devemos nada.
Fica então decidido que isto da penúria depende totalmente da vontade dos titulares do poder. Se estes forem mesquinhos, o povo anda de mão estendida. Se forem socialistas, para cúmulo sob a vibrante orientação de dois partidos comunistas, o povo nem sabe o que fazer ao dinheiro. Ou sabe?
Por muito que me custe dizê-lo, há uma ligeiríssima mácula no impecável raciocínio do dr. Costa. Devo lembrar que a referida discórdia com a CE prende-se com a subida do salário mínimo, que em Janeiro trepou vertiginosamente dos 505 para os 530 euros. Embora possa ser impressão minha, mal habituado devido a tantos fins-de-semana em iates ao largo de Capri, julgo que um acréscimo de 25 euros não é susceptível de transformar os cidadãos em outdoors da abundância. Para benesses assim, era preferível estar quieto, nos salários, nos aumentos de produtos básicos ou acessórios e nos impostos em que o dr. Costa já jurou não bulir (garantia de que teremos agravamento à porta). Se a ideia é resgatar a populaça da tirania dos rendimentos pelintras, porque não se arremessa o salário mínimo para valores de, por exemplo, 1200 euros? Ou 3000? Ou 5347 e não se volta a falar nisso?
Não me venham dizer que é por causa do alegado impacto no desemprego, e sobretudo no desemprego de longa duração e dos pouco qualificados. Montantes à parte, semelhante patranha é justamente o "argumento" da CE, depressa ridicularizado pelas pensadoras à disposição do BE. Se metade das gémeas Mortágua demonstrou cientificamente a inexistência de relação entre o salário mínimo e o emprego, o caso declara-se encerrado. Os tratantes às ordens do grande capital tentaram impingir-nos a tese absurda de que convém ao salário mínimo, ou exactamente aos aumentos do salário mínimo, estar dependente da produtividade, da inflação e de palermices do género. Azar deles: saiu-lhes pela frente o fruto de uma educação às mãos do prof. Boaventura, o competente sr. Jerónimo, o engraçado "ministro" Centeno e, claro, o dr. Costa, "príncipe da política" segundo um dos diversos militantes do PSD que fazem campanha pelo PS.
Arrasado o estratagema dos déspotas, resta ao governo perder os últimos vestígios de timidez, cortar de vez as amarras da opressão e vincular os ordenados dos portugueses ao único critério realmente relevante: o parecer da maioria de esquerda. Parece-me excelente. O tempo novo é o tempo de elevar Portugal aos padrões de vida das nações admiráveis e admiradas pelo séquito do dr. Costa, tipo Venezuela e Cuba, onde os salários mínimos rondam, se bem me recordo, os 10 000 euros mensais. Ou se calhar os 10 euros, que para economistas de gabarito os zeros à direita não pesam. O que hoje pesa imenso, pelo menos a avaliar pela espectacular situação caseira, são os zeros à esquerda. Força, Portugal, e o último a sair que apague a luz - se o dr. Costa não a cortar primeiro, como o inspirador Maduro de Caracas.
Sexta-feira, 22 de Abril
Passar cartão
Não é o PCP que tem lampejos de lucidez: é o Bloco de Esquerda que vive em estado de alucinação perpétua. O episódio do "cartão de cidadania", que os comunistas dissimulados queriam impor e os comunistas assumidos vetaram, é apenas um exemplo. E nem sequer um exemplo original: por todo o Ocidente e arredores há "comissões", "observatórios" e centros de ócio similares empenhados na erradicação da discriminação de género através do massacre da gramática. Os primitivos, que pronunciavam "chuva" e aguardavam o aguaceiro, acreditavam que a linguagem determinava a realidade. O BE, sem hesitações ou subtilezas, também acredita, e é preciso um partido que acredita na democracia norte-coreana para moderar-lhes a toleima.
Ocasionalmente, critica-se os nossos humoristas por pouparem o BE à sátira. É possível que não se trate de uma questão ideológica, mas do simples facto de o BE constituir uma anedota em si mesmo. Eu próprio iniciei este texto decidido a aliviar-me de duas ou três graçolas alusivas e desisti entretanto. Cada frase, atitude ou proposta do BE já é uma graçola perfeita e involuntariamente (?) elaborada. E a melhor de todas é a circunstância de tamanha homenagem ao delírio ver-se hoje representada sobretudo por senhoras. Se a ideia é combater o enxovalho e a subalternização das mulheres, não seria mal pensado começar-se por aí.

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