segunda-feira, 9 de maio de 2016

Amor é fogo



Um dia, a minha amiga Telma, colega desde o liceu, e posteriormente professora durante alguns anos no mesmo espaço onde eu também leccionava, amigas de café e de frequência das respectivas casas e das festas dos meus filhos, apanhadas na surpresa de um império em derrocada, que nos situaria em ângulos opostos no nosso retorno – ela no Porto, eu em arredores de Lisboa – disse-me, com um azedume muito bairrista, que nós, os de Lisboa, tínhamos a mania da superioridade em relação aos do Porto. Fiquei surpreendida pelo ataque, pois sempre afinara os meus gostos pátrios pelo mesmo diapasão que levara mais tarde Mário Gil, “Pelos caminhos de Portugal”, amando incondicionalmente cada torrão do seu solo, cada cidade deste país, que nunca é demais ler e escutar – na internet:
Pelos caminhos de Portugal
Eu vi tanta coisa linda
Vi um mundo sem igual
Eu vi Estoril,
Eu vi Sintra, eu vi Cascais,
Da Batalha eu fui a Fátima
Onde a fé vive bem mais.
Eu vi Coimbra
Terra de muito aconchego
De Viseu fui pra Lamego,
Cheguei a Vila Real.
Em Trás-os-Montes
Com carinho eu vi Bragança
Terra cheia de amizade
De amor e de esperança.
E vi aldeias
Vi o Parâmio e vi o Zeire
Onde nasceu minha mãe
E uma infância feliz teve.
Estive em Chaves,
Vi o Bom Jesus em Braga,
De Monção fui pelo Minho
Onde a beleza não se acaba.
Fiquei contente
Em Viana do Castelo
E de Póvoa de Varzim
Ao Porto que eu tanto quero.
Meu rico Espinho
Meu rico Aveiro
E depois fui por Figueira da Foz
E de Leiria
Nazaré, Alcobaça,
Fui por Caldas da Raínha
E Santarém logo após
Lá em Peniche
Comi boa caldeirada
Em Sesimbra foi sardinhas
E em Setúbal só uma olhada.
Vale de Lobo
Lá no Algarve, Portimão,
Em Tavira e em Faro
Eu deixei meu coração.
Serra da Estrela
Que é tão célebre,
A boa Évora e a linda Portalegre,
Castelo Branco,
Covilhã e já não tarda
A terra do meu pai
A tão querida Guarda.
Tenho que ir
À Madeira e aos Açores
À procura de belezas.
Sei que me falta ver
Muita coisa e boa
Porém, já estou contente
Pois vi o céu, eu vi Lisboa,
Eu vi o céu, eu vi Lisboa.

É certo que não nos podíamos dar ao luxo de atribuir à nossa terra as designações com que o poeta Du Bellay um dia encareceu a sua, chamando-lhe “Mãe das artes, das armas e das leis” que o alimentaram e que com tanta saudade e tristeza evoca:
France, mère des arts, des armes et des lois,
Tu m'as nourri longtemps du lait de ta mamelle :
Ores, comme un agneau qui sa nourrice appelle,
Je remplis de ton nom les antres et les bois……

Mas como « terra nostra » eu a amava na sua inteireza, que aprendera desde a infância, sem prevenções nem rancores. Mas foi mesmo a Telma, por amizade e nobres intuitos esclarecedores, que nos levou à sua casa do Porto, passeando-nos por este, para nos demonstrar tanto da sua nobreza, e por Trás os Montes e Alto Douro, tendo, em Amarante, atravessado a ponte sobre o rio Tâmega para irmos ver a estátua de Teixeira de Pascoais, e pelo Minho, onde também nos passeámos pelo castelo de Guimarães, e visitámos a Sé e o Bom-Jesus de Braga, e Vila do Conde que julgava só “espraiada entre pinhais, rio e mar” como a descrevera José Régio e se erguia sobranceira, quando a avistámos do carro, bem como a Póvoa de Varzim que eu sempre aliara a tristes descrições de naufrágios e poveirinhas, igualmente uma cidade soberba de litoral. Depois da visita a Vila Real e a Serralves, no Porto nos fixámos, onde a Telma, incansável cicerone, mostrava como, aí sim, se trabalhava e vivia e onde não faltava a tradição do requinte e a nobreza do traçado, apesar do tipicismo ribeirinho.
Não entendi bem o “puxar a brasa à sua sardinha” destas lutas bairristas, mas gostei da bela defesa que fez do Porto Alberto Gonçalves, no seu artigo do DN, de 8/5, e do progresso ali, sobre que este escreveu. Que mais empresários acudam, que aqueles dos bancos ou outros que guardaram os dinheiros lá fora sintam um rebate de consciência - ou uma imposição da lei - para que tornem com esses dinheiros e ajudem a erguer o país que ajudaram a afundar e cumpram o seu papel de cidadãos e não de carrascos de uma nação que os ajudou a viver.
Quanto ao “exemplo” de Fernando Rosas também citado por Alberto Gonçalves, é o retrato de alguém que também nunca apreciei, nos seus rancores espumantes de pessoa que se acolita por trás de uma doutrina tortuosa de manipulação de pseudo-afectos e semeadora de discórdias.

Uma cidade chamada Porto
Alberto Gonçalves
DN, 8/5/16
Resolvi dedicar o último fim-de-semana à aventura. Primeiro, pensei no Nepal e na Patagónia. Acabei por alugar um apartamento na Baixa do Porto, a dez quilómetros cá de casa. Nunca o tinha feito. Ainda bem que o fiz. Encontrei uma cidade nova e, para mim, desconhecida. Defeitos? Por onde começo? Há imensos turistas. Há imensas lojas "giras" que vendem tralha para turistas, de galos de Barcelos estilizados a discos de fado genérico e repelente. Há imensos restaurantes de qualidade e preço e estética variáveis. Há alojamentos ditos de "charme" por toda a parte. Há o custo de um café ou de um croissant no Majestic, que se julga o Rainbow Room. Há pastelarias ancestrais transformadas em páginas da Architectural Digest. Há bares com espanhola frequência (nos dois sentidos). Há gente e barulho nas ruas até de madrugada.
Virtudes? Quase todas as descritas acima. Há meia dúzia de anos, ia-se ao Porto com o tipo de disposição antropológica que motivaria uma visita a Detroit: mal o Sol se punha, não se via vivalma ou viam-se almas evitáveis; os estabelecimentos eram escassos e decrépitos; incontáveis edifícios estavam lacrados a tijolo e prontos para o abate; o abandono parecia irremediável. De repente (?), nasceu ali - desculpem lá - um "destino de viagem" a sério. Houve um momento, sábado à tardinha, em que atravessei o Largo de São Domingos e, com provável exagero, decidi que poucos lugares na Europa seriam capazes de derrotar aquele cenário. É verdade que abundavam os clichés, da brisa morna às esplanadas cheias, do trompetista "espontâneo" à confusão de línguas (salvo seja), da conversão de negócios falidos às fachadas "reabilitadas" e lindas. Abençoados clichés: eu não podia estar melhor. E o melhor é que podia, bastando para tal descer à Ribeira e, de caminho, jantar na Adega de São Nicolau, que não precisou do recente despertar portuense para ser, sempre, perfeita. A título de digestivo, o Douro à noite.
O casal de amigos lisboetas nados ou adoptivos que me acompanhava andou dois dias de boca aberta. Eu também, e não só por culpa das empadas da Ribeiro, do bife tártaro do Reitoria ou das tripas d"O Buraco (uma humilde divindade com placa de homenagem a Pires Veloso e ao 25 de Novembro no interior). O Porto que imaginavam não se assemelhava em nada à realidade. Não sei porquê, ou prefiro não saber, mesmo hoje as televisões teimam em servi-lo suburbano e rude, exclusivamente habitado por laparotos cujo único tópico de conversa é a bola ou os "temas" sugeridos pelos repórteres dos "telejornais". É como se se mostrasse Lisboa apenas através de Chelas. Ou do dr. Costa.
Se insistirem em felicitar o principal responsável por tudo isto, adianto que não foi nenhum dos pensadores da Porto 2001, ou do Euro 2004, ou de qualquer dos "desígnios" com que os partidos prometem regenerar a plebe e cumprem a regeneração das finanças dos comparsas. O destacado "autor" deste Porto não está na toponímia ou na estatuária local, chama-se Michael O"Leary e é presidente da Ryanair, a companhia aérea que em 2009 plantou uma base em Pedras Rubras e liga directamente a cidade ao mundo. Os restantes responsáveis foram os pequenos, médios e grandes investidores privados, a tradição comercial tolhida por décadas de paternalismo e enxovalhos estatais e que, face à oportunidade e a certa liberdade, acordou. E a Airbnb. E a Booking.com. E, imaginem, a Uber.
Claro que o "renascimento" não é necessariamente definitivo nem se livra de sombras e ameaças. Os poderes públicos, municipais ou centrais, são peritos em "intervir" (espatifar, em português) no que funciona graças à sua relativa omissão. Além disso, temos uma inclinação suicida para ouvir vozes clinicamente alérgicas ao sucesso alheio - quando o sucesso alheio resulta mais do trabalho que da proximidade a quem decide. Já paira no Porto o tipo de "argumentos" avessos ao "excesso de turistas" (bonito é o abandono), à "massificação do comércio" (bonitas são as falências), à "gentrificação do centro" (bonita é a pobreza), à "descaracterização da zona histórica" (bonitos são os graffiti) e ao diabo a quatro (bonitos são os impostos, e os limites à circulação, e o "investimento" em delírios, e a arrogância dos políticos, e as trapaças de autoproclamados "activistas").
O Porto, sendo o Porto, tem tudo para correr bem. Sendo português, não falta o que pode correr mal.
Domingo, 1 de Maio
Um exemplo
Fernando Rosas é um homem notável. Em décadas de carreira pública, nunca lhe descobri uma opinião favorável à liberdade, à democracia e ao progresso, embora encha a boca com esses vocábulos ao ponto da obesidade. O homem parece fossilizado desde os tempos em que dirigia a Luta Popular, onde cantava hossanas, de que nunca mostrou sombra de arrependimento, ao "grande Estaline" (juro) e "ao camarada Mao" (é redundante jurar). Em 1976 ou em 2016, no MRPP ou no BE, boa parte dos horrores totalitários dos últimos cem anos tiveram no dr. Rosas um encarniçado e, admita-se, sincero entusiasta. "Historiador" na vida civil, este devoto de genocidas esforçou-se por explicar o passado e adivinhar o futuro. Em qualquer dos casos, falhou sempre. No dia em que acertar, estamos feitos. O dr. Rosas não serve para coisa nenhuma, excepto de exemplo a fugir. Naturalmente, saiu da universidade jubilado e permanece na sociedade prestigiado, indicadores cabais da dignidade de ambas.

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