terça-feira, 31 de maio de 2016

É da geringonça a culpa



Chegou ontem, por email. É de Carlos Reis, mestre que nos ensinou a todos a forma prática de objectivar uma leitura de romance, através de ferramentas estruturais na organização dessa leitura. Está, por isso, amplamente capacitado para transmitir a sua leitura bem formatada, caso não surjam entrementes novas teorias de descodificação textual a que um outro ou o próprio Carlos Reis nos faça ter acesso, para ficarmos mais enriquecidos em termos de estruturas de análise.
Trata-se do PR de todos nós, Marcelo Rebelo de Sousa. E da sua forma de conduzir o mundo da presidência, em todas presente, aqui, além, infatigável e fatigante, fogo fátuo que os media acompanham aparando-lhe o jogo da simpatia quer para o não esquecimento, quer para o fortalecimento da sua indispensabilidade a remediar deslizes governamentais.
Talvez seja essa última intenção que devemos enaltecer, proveniente, no fundo, da sua aflição pela derrocada que o faz ir estendendo agora a mão pela Europa, para evitar o desaire e uma nova Troika. Mas será que a Europa o escuta a sério, ou, pelo contrário, se vai colocar na posição da aldeia do pastor mentiroso que, quando o lobo atacou mesmo o seu rebanho, aquela se conservou muda e queda, farta das aldrabices do rapaz, como conta Carlos Reis, ou, no caso da tal Europa, não só castigando o excesso exibicionista do PR, contrastante com a nossa insignificância, como também punindo o Presidente – e o país - pelos jogos de rins do governo, que coloca aquele à frente, como peça de entretenimento, enquanto vai atamancando, na obscuridade ou no atrevimento arrogante, novas peças à sua geringonça cada vez mais oscilante?

O Presidente e o lobo
CARLOS REIS 
19/04/2016
Se o PR – este ou qualquer outro – abusar das palavras, um dia que delas precise mesmo, em situação de grave necessidade, talvez os cidadãos lhe não prestem a devida atenção.
Uma história que, desde a infância, retive na memória é a daquele jovem pastor que se divertia a assustar a aldeia com gritos frequentes de “aí vem lobo”. A aldeia alvoroçava-se, partia em defesa do pastor e do rebanho, mas depois apercebia-se de que se tratava de falso alarme. O desenlace é conhecido: um dia havia mesmo um lobo, mas todos pensaram que era mentira. Ninguém acudiu e o bicho empanturrou-se com um par de ovelhas do rebanho em fuga.
Hoje sei que esta história popular tem várias versões e circula por universos culturais que vão muito além do meu modesto livro da terceira classe. E sei também que não se extinguiram os ensinamentos daquele relato da minha idade infantil. É ele que me vem à memória sempre que, com quotidiana regularidade, ouço e vejo intervenções do Presidente da República.
Talvez um dia alguém consagre um sisudo estudo ao fenómeno que, com a intensidade de um ciclone açoriano, tem assolado o espaço mediático português, desde que o Prof. Marcelo Rebelo de Sousa tomou posse como Presidente da República. Não há dia em que o nosso PR não surja nas televisões e nas rádios (e depois, nos jornais) a declarar, a comentar, a discursar, a dissertar, a responder e a opinar. Mais: à hora a que escrevo este texto, acabo de ver e ouvir o PR a noticiar. Assim mesmo: foi o PR quem noticiou que um deputado português (que é, afinal, uma deputada) deixará o Parlamento Europeu para ocupar um alto cargo no Banco de Portugal. O PR apressou-se a acrescentar que essa não é matéria da sua decisão, mas é assunto de que, evidentemente, ele fala, depois de, aliviando o trabalho dos jornalistas, noticiar.
O PR tem um estilo, como os seus antecessores também o tiveram. Vai nesse estilo muito do vezo de comentador que o Professor Marcelo cultivou anos a fio, naquela função que rasgou a estrada lisa que por onde ele transitou até à Presidência da República, sem contracurvas traiçoeiras nem multas por excesso de velocidade. Os outros candidatos ficaram, é claro, na beira da estrada.
Só que o presidente eleito parece ter tomado à letra a estafada expressão que diz ser ele “presidente de todos os portugueses”. E a todos deseja falar, por junto e em separado, através da comunicação social. A professores e a alunos, a militares e a civis, a jovens e a idosos, a clérigos e a leigos, a trabalhadores e a empresários, a estudantes e a futricas, à chuva e ao sol, na rua e no Palácio de Belém. Foi neste último, na vistosa Sala das Bicas, que o PR fez uma sentida declaração de homenagem, quando faleceu um conhecido ator e produtor de televisão. O acontecimento foi triste, todo o país chorou por três dias o passamento – e o PR não podia deixar de se associar ao desgosto. E falou. Depois disso (e já antes), não tem havido desastre natural, proeza desportiva, incidente social, sobressalto económico, nomeação, demissão ou criação artística que não mereça o incisivo comentário presidencial.
Faz parte daquilo a que chamo estilo presidencial um certo uso da palavra. O general Eanes falava pouco e normalmente numa pose esfíngica que nos deixava a pensar: será que entendi? O Dr. Mário Soares não discursava: conversava amigavelmente com os cidadãos. O Dr. Jorge Sampaio elaborava um discurso onde às vezes sobrava a retórica, mas era, a meu ver, quem melhor fazia (literalmente) uso da palavra. Já o Prof. Cavaco Silva, quase sempre flanqueado pela ex-primeira dama e por entre um ou outro esgar, debitava um discurso em que cada vocábulo era sabiamente martelado. Agora temos de tudo um pouco e ainda, quando é preciso, mais do que isso.
Leio na Constituição (e o nosso Presidente conhece-a como poucos) que o PR “representa a República Portuguesa, garante a independência nacional, a unidade do Estado e o regular funcionamento das instituições democráticas”. Para bem cumprir estas severas funções, às vezes o PR tem de falar. E convém que seja ouvido. Dificilmente o será, contudo, se insistir em banalizar as palavras. Vale a pena lembrar um admirável texto de José Saramago sobre isto mesmo: “As palavras”, escreveu Saramago, “são boas”. E acrescentou: “As palavras são más. As palavras ofendem. As palavras pedem desculpa. As palavras queimam. As palavras acariciam. As palavras são dadas, trocadas, oferecidas, vendidas e inventadas.” E assim por diante.

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