domingo, 1 de maio de 2016

Fatal como o destino



«Corações ao alto: Abril regressou!» - Abril chegou, sê minha!” foi o que me acudiu à lembrança, ao ler o título do artigo de João Miguel Tavares, preciosa evocação do final dum capítulo em que Carlos da Maia, em sono agitado, de regresso do jantar no Hotel Central, encontrara pela primeira vez a esplêndida figura de mulher que lhe marcará o destino, tendo antes de adormecer, recordado a forma como soubera do real “caso” da sua mãe, na confissão de um Ega embriagado, primeira pista edipiana na perfeita estrutura do enredo: “Abril chegou, sê minha!”, em verso de Alencar, “Abril regressou: Corações ao alto!, na prosa de Miguel Tavares.
Todos notámos, tal como João Miguel Tavares, o friso dos do espírito de Abril, na Assembleia da República nesse dia 25, friso vistoso e elogiado, que ultimamente andava arredio dos festejos, mas que um novo governo de ideais paralelos, fez regressar, também como Alencar nos seus “Abris” de Seteais:
Quantos luares eu lá vi!
Que doces manhãs de abril!
E os ais que soltei ali
Não foram sete, mas mil!
Abril reposto de corpo e alma, também eu reparei,  o grupo dos representantes da velha guarda, “retornados” ao palco, que se me desculpe o termo por eles criado, bem aplicado agora em eficácia de sentido, em ais mil de Alencar, em expressões de cordura de João Miguel Tavares:

Corações ao alto: Abril regressou!
  1. A jornalista da SIC Anabela Neves, que já assistiu a muitos 25 de Abril no Parlamento, detectou no final das cerimónias de ontem diferenças significativas na performance do hino nacional pela banda da GNR: “Palmas mais fortes do que é habitual ao hino, que desta vez se ouviu bem mais na sala de sessões do Parlamento. Muita gente, muitos deputados, finalmente a cantarem.” Oh, que lindo. Nada como a esquerda voltar ao poder, para mais toda juntinha – Abril pode novamente voltar a ser Abril e o hino pode novamente soar como um hino.
  2. Durante a manhã de ontem, os acordes d’A Portuguesa escutaram-se espectacularmente. A secção de sopros da banda da GNR soprou com notável entusiasmo. A percussão percutiu com outro músculo. Os deputados cantaram como se tivessem um Manuel Alegre dentro deles. Os capitães de Abril ruboresceram de novo as galerias com os seus cravos. A normalidade institucional e constitucional mostrou-se, enfim, reposta. Como afirmou o deputado do PEV, “Abril está de regresso”.
  3. Foram longos anos de ausência. Durante a governação de Pedro Passos Coelho houve Abril, o mês, mas não Abril, o estado de espírito, que, como todos sabemos, apenas desce sobre as almas quando a esquerda está no poder. O Abril da direita não é verdadeiro Abril – é um Abril diminuído e poluído, que se suporta por penoso dever democrático, mas que nunca se chega propriamente a aceitar. Ferro Rodrigues celebrou o regresso da Associação 25 de Abril ao Parlamento com um tom tão entusiasmado (“que bom é ver-vos de volta a esta casa que é também a vossa casa!”) que só faltou pedir desculpa a Vasco Lourenço pelo comportamento dos anteriores inquilinos. Os tais inquilinos que, como recordou Lourenço à saída, tinham “uma postura anti-25 de Abril”.
  4. Perguntarão os leitores: uma “postura anti-25 de Abril” porquê? Acaso Passos Coelho tomou o poder de assalto? Acabou com as liberdades individuais? Silenciou a comunicação social? Agiu contra a oposição? De que forma pode ter ele sido “anti-25 de Abril”? A resposta é simples: é que se para uns a democracia é tudo, para a Associação 25 de Abril e para dois terços do actual Governo e partidos adjacentes a democracia é pouco. Democracia sem um projecto de esquerda não é democracia, porque boa parte da esquerda portuguesa ainda vive mentalmente no tempo do pacto MFA-Partidos – um povo pouco esclarecido pode fazer gripar o motor do processo revolucionário.
  5. Dir-me-ão que os tempos são outros. Sim, com certeza que são, mas o regime continua a transportar consigo a flor-de-lis da esquerda, que se torna muito visível nos dias mais carregados de simbolismo, como é o caso do primeiro 25 de Abril do primeiro-ministro António Costa. Após a revolução, o CDS teve de fingir que era de centro e Sá Carneiro que era de esquerda, e quatro décadas depois só não tem “uma postura anti-25 de Abril” quem continuar a fingir.
  6. É certo que nem toda a gente é Vasco Lourenço, mas o seu espírito paira sobre as cabeças do PS, do Bloco, do PCP e de metade do PSD – a esquerda nunca se limita a apresentar uma alternativa política à direita; ela está sempre em processo de salvação de todo o sistema social e democrático. Ainda que isto se passe sobretudo num plano simbólico, o simbolismo conta – porque é ele que continua a infectar a direita com a falta de legitimidade política para defender as suas ideias, 42 anos após Abril. Pessoalmente, não tenho pachorra, por mais bestial que seja a actuação da GNR.

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