domingo, 12 de junho de 2016

«Amigos, cento e dez, ou talvez mais»



Sem ser grande fisionomista, julgo poder afirmar que Pedro Mexia tem um rosto que espelha nobreza e autenticidade de verdadeiro senhor, num sorriso discreto de estudioso e pensador, como se revela habitualmente, no seu discurso mais ponderado, no programa de humor “O Governo sombra”. O artigo “Da Onça” parece induzir que ao tema “amizade” que tão expressivamente analisa, não é alheia uma experiência de passividade ”sentida”, na discordância de quem se deixa muitas vezes “enrolar”, mais por educação do que por convicção, nas sinuosidades malandras dos comportamentos humanos. Sente-se que Pedro Mexia desportivamente cede ao amigo da “onça de tabaco”, mas que considera intragável esse outro da insistência nas perguntas das hipotéticas resistências à onça selvagem. Daí a conclusão brilhante «Aos amigos pede-se a verdade e o bom conselho, não o alarmismo e a crueldade», relativamente ao caso da anedota sobre a onça animal, para justificar a etimologia da expressão “amigo da onça”.
Realmente os “ses” da inteligência que assim se pretende realçar, tornam-se estúpido meio que não revela tanto uma preocupação de amizade, mas o pedantismo tolo de quem deseja ofuscar, com a revelação de “inteligência” argumentadora - incipiente - que mais se assemelha aos insistentes “porquês” da criança, no seu despertar para o mundo.
Quanto à verdade sobre a amizade, que as hipotéticas origens da expressão “amigo da onça” contrariam, é, de facto, um sentimento muito posto em dúvida, apesar do que dele se aparenta de real, no exibicionismo de afectos, tantas vezes contrariado pela  expressão dos nossos egoísmos, esses, sim, autênticos: “amigos, amigos, negócios à parte”. E não o sentiu bem Camilo, no seu pessimismo azedo?
Da onça
Pedro Mexia
E, 19.03.2016
Parece que a expressão “amigo da onça” foi cunhada por um cartoonista brasileiro que, nos anos 1940, inventou a figura de um cafajeste carioca, sarcástico, debochado, desleal. O boneco de Péricles Maranhão inspirou-se numa anedota célebre. Um caçador pergunta a outro “o que faria você se estivesse na selva e uma onça aparecesse na sua frente?”. O outro responde: “Dava um tiro nela”. E se você não tivesse uma arma de fogo? Tentava furá-la com o meu facão. E se você não tivesse um facão? Apanhava um pau para me defender. E se não tivesse um pau por perto? Subia na árvore mais próxima. E se não tivesse nenhuma árvore? Saía correndo. E se você estivesse paralisado pelo medo? O outro caçador, exasperado, exclama: “Você é meu amigo ou amigo da onça?”
Mais do que o cartoon, interessa-me a anedota, porque caracteriza bem a figura “amigo da onça” nas suas motivações e estratégias. Quando encontrei esta anedota, pensei que ia terminar com o hipotético perseguido a dizer que se não pudesse matar a onça ou escapar-lhe, ficaria amigo dela. Uma versão do “se não podes vencê-los, junta-te a eles”. Mas não é isso que acontece. O “amigo da onça” é o perguntador, ele é que concebe situações difíceis e cenários arriscados. É um sádico. Por isso o segundo caçador pergunta de quem é ele afinal amigo. Um amigo da onça que o fosse por medo da onça era humanamente defensável. O medo, como a autodefesa, é uma causa de exclusão da ilicitude até nos códigos penais. Em contrapartida, um amigo que se diverte com um felino imaginário, quer dizer, com o mal que possa acontecer ao amigo, é, de facto, um cafajeste. Aos amigos pede-se a verdade e o bom conselho, não o alarmismo e a crueldade. Mas a amizade, que é instável e ambígua, compreende uma infinidade de dinâmicas, algumas das quais funestas. Há amigos que apenas são amigos porque suspeitam de que a onça não se demore.
Curiosamente, outra origem possível desta expressão, que também tem os seus defensores, é útil para percebermos o que está em causa. Uma “onça” era, noutros tempos, a designação coloquial de uma embalagem de tabaco barato, para enrolar em mortalhas. Essas embalagens tinham o peso de uma onça (uma unidade de medida), de modo que se chamava “uma onça” à própria embalagem. Um “amigo da onça” era então alguém que se fazia amigo por causa da onça, ou seja, para cravar cigarros. O amigo da onça queria apenas uma coisa que o seu amigo possuía, mesmo que fosse tabaco barato, quer dizer, uma coisa de pouco valor. Isto mostra que um “amigo da onça” não é apenas um amigo “interesseiro”, ou seja, que o interesse não é necessariamente importante, pode ser apenas uma onça de tabaco. O amigo da onça é acima de tudo um parasita dos seus “amigos”, fragiliza-os, desgasta-os, boicota-os, enquanto espera, à coca. Ele é mais até do que o amigo da onça: gostava de ser a onça.
Há vinte e tal anos, quando me deparei com o primeiro amigo da onça da minha vida, encontrei um aforismo de William Blake que diz “a verdadeira amizade é a oposição”. À época julguei que se tratava de um elogio ao amigo que não nos esconde as verdades desagradáveis, que se “opõe” à nossa obtusidade e aos consensos fáceis. Depois achei que não, que a frase é amarga, que é sobre uma “oposição” propriamente dita, um amigo que se porta como um inimigo porque é de facto um inimigo.  Blake, depois de escrever esse aforismo, riscou-o. Talvez a onça o tenha assustado.

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