terça-feira, 14 de junho de 2016

Não tem cura



«Pré-match», o artigo de Alberto Gonçalves, que leio neste “domingo à tarde” soalheiro e cancerígeno e sem esperança de cura  -  que nunca Alberto Gonçalves admite cura, e nos deixa com isso angustiados, no reforço do nosso desânimo. Já antes acháramos desprovida de senso a execução dos festejos do nosso 10 de Junho em Paris segundo proposta de Marcelo Rebelo de Sousa, que, incansável a fazer-se notar, transborda daqui para ali, qual outro Mário Soares cuja frase, salvo erro em francês, diante duma montra em Itália, em passeata à custa da nação - que o nosso 25 de Abril pôde proporcionar a todos os altos representantes dela e continua, com os mais comezinhos pretextos para a nossa sobrevivência pedinchona – cuja frase, digo, se impôs na minha memória, como refrão aviltante de irrecuperável infantilidade: “Je suis le président de tous les Portugais”.
Também Marcelo est le président de tous les Portugais, mas, pelos vistos, sobretudo dos que emigraram, sem pejo de ir impor num país estrangeiro, indiscretamente, o nosso blablabla patrioteiro e afadistado, num dia representativo da nação. E foi com espanto que o ouvi falar dos seus netinhos, também emigrantes, (certamente que por motivos de ilustração ou bem-estar) como pretexto de assim fazer o encómio a todos os  emigrantes com idênticos motivos de sobrevivência ou ilustração, ou mesmo repúdio, que Linda de Suza fixou na “mala de cartão” da primeira leva, a salazarista dos bidonville, ou talvez já na segunda, das fugas à guerra, a que se seguiram levas actuais da nossa transumância inquieta e temerosa, bem diferente da de outrora, nas suas destemidas e arriscadas viagens de naus e caravelas.
E as patacoadas dos discursos altissonantes em terra alheia das nossas pieguices lorpas, com futebóis à mistura, mais não merecem que a mordacidade violenta do sociólogo Alberto Gonçalves, sobre todos esses representantes e os cantores que os acompanham e o vasto panorama das nossas tolices e histerismos de exaltação futeboleira, que quase nos fazem preferir, na funda humilhação da vergonha, as lutas de arreganho futebolístico entre ingleses e franceses, denunciadores de uma virilidade com origem nos torneios bretões.
Quanto à “senhora de esquerda”, Teresa Leitão, também a tinha ouvido – ou lido – no seu repúdio pela beleza artificial, e mais essas coisas que disse, de autêntica parolice, apoiadas nas regras das suas certezas contraditórias, que levantaram a questão dos pagamentos aos colégios. Mais um retrato certeiro de Alberto Gonçalves, que oxalá fosse aguilhão penetrante a espessa camada das nossas estultícias. Não cremos nisso. A camada lá está, bem espessa, com um Tino de Rans a chiar, pronto a desferir voo.
Pré-match
Alberto Gonçalves
Público, 12/6/16
1. Os portugueses são os melhores, decretou o presidente Marcelo. No progresso económico? No avanço científico? Nas artes? Na indústria automóvel? Na gestão de bancos públicos? Em receitas de bacalhau, vá lá? Nada disso, que um chefe de Estado não perde tempo com ninharias: no futebol, no fundo aquilo que importa. Vem aí o Europeu da modalidade e há que "mobilizar" os cidadãos para um desígnio a que só os vende-pátrias serão alheios. Em Belém, o PR aproveitou ainda para informar a selecção de que já é campeã "à partida", uma adenda pertinente se tivermos em conta que à chegada as coisas não costumam correr bem.
2. Em vez de receber a selecção, o primeiro--ministro visitou-a. Como é hábito, levou consigo tropeções na língua e ameaças à Europa, especialmente à França, sobre a qual exigiu "vingança". Como é hábito, a Europa tremeu. À saída da Cidade do futebol (?), o dr. Costa confessou-se "menos angustiado" com a situação clínica de Ronaldo. Por mim, confesso-me angustiadíssimo com a situação clínica das pessoas que desprezam momentos assim históricos, preferindo consumir-se com o "resgate" da CGD ou similar assalto, perdão, auxílio ao contribuinte.
3. A fim de conquistar Paris, a selecção apetrechou-se com um hino. Para garantir o sucesso, trata-se de uma cantiga "adaptada" do sr. Abrunhosa, que objectivamente descreve a sua criação: "Tem um efeito coletivo inebriante e quase mágico." Com versos do calibre de "Tudo o que nos dás, nós damos-te a ti e somos Portugal!", não admira. O sr. Abrunhosa acrescenta que a cantiga "já é das pessoas, já não é minha", mas não falou em partilhar os direitos autorais. Dado que temos de pagar os salários sem tecto da administração da CGD, cada cêntimo viria a calhar.
4. Pelos vistos, o lema da selecção é "Não somos 11, somos 11 milhões", um recenseamento apressado que despertou a ira do deputado do PS Paulo Pisco (decerto um pseudónimo): "Há cinco milhões de portugueses espalhados pelo mundo que se sentem excluídos." Enquanto, com um nó no estômago, imaginamos multidões de compatriotas a sofrer os horrores da exclusão em Nova Jérsia e no Luxemburgo, consola um bocadinho ler que o sr. Pisco "já alertou o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, para esta questão, durante uma audição na comissão parlamentar de Negócios Estrangeiros e Comunidades Portuguesas". E consola imenso saber que nós pagamos o salário do sr. Pisco, aliás bastante inferior ao dos administradores da CGD.
5. Já havia o anúncio da cerveja patrocinadora da selecção da bola, onde três ou quatro moços alucinados gritavam "O futebol somos nós!" como se quisessem assassinar o espectador. Agora há o anúncio do supermercado patrocinador da selecção da bola, com imagens de tribos bárbaras, cuspidores de fogo, explosões, lobos ferozes e um tom geral de ameaça ao "estrangeiro": "Ouvem rosnar/ Sabem com quem estão a lidar/ Temos mais olhos que barriga/ E esta fome já é antiga." Para a próxima, outro patrocinador exibirá a selecção da bola a mastigar as entranhas dos adversários. Ou, se quiserem mesmo meter medo, o "buraco" da CGD.
6. Isto foi apenas o início. Seguem-se semanas de autocarros, histéricos, bêbados, sardinhas, o "melhor do mundo", mensagens das vedetas nas redes sociais, berraria, análises de peritos, a contagem do tempo que o treinador demora nos lavabos do avião (56 segundos, afiançou um "jornalista") e, se a selecção vencer, 609 milhões de euros para a economia nacional, um sétimo da nova "injecção" na CGD. Há países malucos de todo. Felizmente, não é o caso do nosso.
Segunda-feira, 6 de Junho
Uma senhora de esquerda
Graças a uma entrevista na Visão, conheci a secretária de Estado da Educação, Alexandra Leitão. Que ser humano encantador! Ela é frontal. Ela é fã de Bruce Springsteen. Ela é do Sporting. Ela é de esquerda. Ela é "mesmo lisboeta". Ela é "superavessa" (sic) a maquilhagem. Ela foi aluna (e colaboradora) de Marcelo, que lhe deu um 18. Ela tem Mandela, Soares e Salgueiro Maia como "referências políticas". Ela não tem medo. Ela tem duas filhas. Ela sonha com "igualdade e democratização" no ensino. Ela lembrou-se de acabar com os "contratos de associação" com os colégios privados. Ela mantém as filhas inscritas num colégio privado. Ela viu a aparente contradição apontada nas redes sociais. Ela explica: "As minhas filhas fizeram o jardim-de-infância e a primária numa escola pública. E agora estão na Escola Alemã. (...) tem a ver com a opção por um currículo internacional. Para mim era importante que elas tivessem uma educação com duas línguas que funcionem quase como maternas, digamos assim. Se assim não fosse, andariam obviamente numa escola pública."
Ficou claríssimo. A dra. Leitão quer providenciar aos rebentos um "currículo internacional", distinção que, no seu entender, o ensino público, "obviamente" fantástico, não assegura. Mas isso é ela, que além de dotada intelectual e financeiramente possui consciência social. Sem dinheiro nem cabeça, a ralé não pode alimentar "opções" assim. Não se espera que, em vez de patrocinar escolas e sindicatos, o Estado patrocine uma educação melhorzinha para a descendência dos simples, a qual deve saber o seu lugar e perceber que daí não sairá. De resto, ao povo basta meia língua e um currículo nacional, ou o nível de instrução suficiente para aplaudir o fervor igualitário e democrático de sua excelência, a senhora secretária de Estado.

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