domingo, 5 de junho de 2016

Quando a sátira redunda em chuchadeira




Era Zadig um caldeu rico e educado segundo os preceitos de Zoroastro, com filosofias de vida de modéstia e não saliência pessoal, homem de coragem, todavia, inteligência e sentimento, que julgava merecer o amor das mulheres que juravam amá-lo mas facilmente o trocavam por outro, ou a consideração pelo seu saber e bom-senso, mas que a inveja seguida de intriga, que já então havia no reino de Babilónia, tornavam perseguido e frequentemente maltratado, na sua viagem de fuga e busca, sempre procurando um destino mais compatível  com o seu mérito. Uma história saborosa, com que Voltaire vai satirizando a sociedade francesa invejosa do seu talento, história onde não faltam picardias e arremedos detectivescos  à Sherlock Holmes.

Uma figura simpática, para o propósito da sátira social voltairiana, bem diferente da pessoa de Donald Trump, atrevido, indiscreto, arrogante e provavelmente invejoso dos que estudaram, mas homem de sucesso financeiro, fazendo do dinheiro a sua filosofia de vida que, ao que se vai vendo, o superioriza a todos, a ponto de desejar dirigi-los, numa América que, parolamente, parece atraída pelo néctar da sua riqueza salvadora, num sonho, muito em moda, da desresponsabilização e do milagre que o “seu discurso” parece prometer, embora ficcional, pertencente a um prémio Nobel de Literatura.
É o que se subentende nos êxitos que tem obtido junto dum partido republicano que  defende as suas demagogias como salvador da pátria, o que repugna aos democratas mais ponderados, entre os quais Pedro Mexia, que utiliza, como estratagema pictural, excertos do livro «It Can´t Happen Here», do escritor norte-americano Sinclair Lewis, para retratar Donald Trump, título da sua crónica, saída na E, de 7/5/16.
 Retrato cómico, de advertência, naturalmente. Mas o que a se quer é mama, hoje em dia. E há sempre crentes das demagogias, mesmo que expressas à Tino de Rans. Mas essas apresentam, realmente, marcas de sucesso e promessas de auxílio que exigem muita ponderação.

«Caros concidadãos, como Presidente dos Estados Unidos da América quero dizer-vos que o verdadeiro New Deal começou agora, que vamos usufruir de todas as liberdades a que a História nos dá direito, e que nos vamos divertir à grande. Obrigado a todos. Quando me afastei, contra minha vontade, do meu trabalho e da minha família, tentei tornar o meu discurso tão simples e directo como o de Jesus a falar com os doutores no Templo. Talvez tenha os meus defeitos, mas estou do lado das pessoas comuns e contra as velhas e caducas máquinas políticas. Prefiro seguir o Homem Comum do que um qualquer político de vinte e quatro quilates, com um canudo e um currículo, mas que só se interessa em ter mais limusinas. O Presidente é um servidor de cada cidadão deste país, não apenas das pessoas “apresentáveis” mas de todos os “inconvenientes” que o inundam com telegramas, telefonemas e cartas. A maioria dos agricultores com hipotecas por pagar. A maioria dos operários que estão desempregados há três, quatro, cinco anos. A maioria das pessoas que dependem da sopa dos pobres. A maioria da pessoas que vivem no subúrbios e que não conseguem pagar a máquina de lavar.
Geralmente sou uma pessoa encantadora, e os meus amigos até acham os meus discursos um bocado patuscos. Mas espero que nenhum dos cavalheiros que me distinguiu com a sua inimizade imagine um só minuto que eu, quando encontro um mal verdadeiramente terrível ou um detractor verdadeiramente insistente, não esperneio como um garanhão e não urro como um urso. Conheço bem a imprensa. Quase todos os editores são homens que não pensam na família ou no interesse público ou nos prazeres simples, e que procuram impor as suas mentiras, defender a sua coutada e encher os bolsos caluniando estadistas que deram tudo pelo bem comum. É o mais desprezível, mais baixo e mais cobarde gangue de pomposos, compinchas, hipócritas, trapaceiros, falsificadores, corruptos. Uma escumalha de mentirosos e aldrabões.
Políticos e jornalistas fizeram pouco de vocês. Trataram-vos como sendo “das classes baixas”. Não vos deram emprego. Disseram-vos para desampararem a loja como se fossem vagabundos. Disseram que não valiam nada porque eram pobres. É por causa deles que quero ser como Danton e Robespierre, que em França ajudaram a tirar o poder aos aristocratas bolorentos; como Lenine e Trotski, que deram aos camponeses russos iletrados o privilégio de picar o ponto numa fábrica; e como William Randolph Hearst, que foi o Lenine de Cuba. E digo-vos que a partir de agora vocês são os senhores da terra, e que vão fazer uma nova América de liberdade e de justiça.
É convosco que quero tornar a América de novo orgulhosa e rica. Não descansarei enquanto este país não puder produzir tudo aquilo de que precisamos, até o café, o cacau, a borracha, de modo a que os nossos dólares fiquem em casa. Se conseguirmos fazer isso e se ao mesmo tempo atrairmos turistas, para que gente  de todas as partes do mundo venha ver maravilhas inacreditáveis como o Grand Canyon e Yellowstone, etc., parques, os bons hotéis de Chicago, etc., então o dinheiro não sai da América. Estamos preparados para uma guerra. E um dia destes vamos dar cabo do México. Cantem comigo: “Señorita from Guadalupe / Qui usted? / Señorita go roll your hoop, / Or come to bed! / Khaki pan, / You won’t forget! / For days you’ll holler, “Oh what a man!” /And you’ll never marry a Mexican”.
Obrigado a todos.»
(Colagem de excertos de um romance que o Nobel de Literatura Sinclair Lewis publicou em 1935 e a que chamou “It Can’t Happen Here”, isto não pode acontecer aqui).

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