sexta-feira, 15 de julho de 2016

Cemitérios, um pretexto



Nos tópicos fornecidos pela Internet sobre o artigo de Teresa de Sousa, parece faltar o nome de António Costa, como figura não de emissor de convénios  mas de receptor de uma provável sanção ou um provável perdão de um défice excessivo que não obedeceu ao estabelecido. E no entanto, António Costa figura no seu texto, nessa qualidade, vamos esperar que a omissão seja prenúncio de que também o défice irá passar despercebido até ao final do ano, segundo dá a entender António Costa com um optimismo que nos encoraja a nós, contra ventos e marés. O que ele não deve esquecer é que a via que seguiu de desprezo pelas normas de austeridade lhe foi facilitada pelo empenhamento do governo anterior de corresponder às solicitações da Europa credora, através de um FMI interveniente em força para um saldar de dívida como nos competia. A honestidade de Passos Coelho pode ter criado um clima propício à confiança na política económica de António Costa, como exige indignadamente Teresa de Sousa, perplexa ante as descomposturas de Wolfgang Schäuble ameaçadoras de um novo resgate para o nosso país.
Mas é sobre a França e a nova política francesa de François Hollande, em rodriguinhos amistosos com a Grã Bretanha, após o resultado do Brexit, que se inicia o texto de Teresa de Sousa “Os cemitérios estão lá”, com a referência à homenagem aos mortos ingleses e americanos da 1ª Guerra, os portugueses (e os demais) não contando, que também lá estiveram, bichos do sul, sem prestígio, apenas carne para canhão  nas tais trincheiras, desnecessário prestar-lhes homenagem a esses – eram muitos milhares –as homenagens da nação francesa visando sobretudo estabelecer estratégias económicas e possibilitar a via das ambições políticas dos mandatários franceses com a Grã Bretanha, isolada mais que nunca da unidade europeia, após o seu Brexit, jogando as suas cartadas e aceitando as cartadas de ex-parceiros, como as de F. Hollande, em repúdio pela srª Merkel e outros países assustados de uma União a ruir, alguns dos quais talvez também em debandada, não sabemos ainda, esperemos que a França não. Os cemitérios estão lá, em França, da homenagem aos mortos de além-Atlântico. Mas os mortos são sempre muitos nas guerras, quer se trate de soldados quer se trate de civis, bem o vimos na segunda guerra, bem o vemos na perfídia destes atentados sem tir-te nem guar-te que vão precipitando o fim da confiança. A união faz a força, vozes há assustadas com a perda da Inglaterra para a unidade europeia. Teresa de Sousa explica isso bem. Mas a mudança é a ordem natural das coisas. E, com a cremação dos corpos e a indiferença pelas vidas – apesar do aparato ainda dos funerais – a vala comum é provavelmente o que nos espera, no cataclismo universal que preparamos.

Os cemitérios estão lá
Público, 3/07/2016
1. Já nos habituámos aos campos de cruzes a perder de vista. A Europa continua a prestar homenagem às suas tragédias maiores com a dignidade exigida. François Hollande, David Cameron e os herdeiros da coroa britânica estiveram ontem no Somme onde se travou a mais mortífera e longa batalha da I Guerra. Uma guerra de trincheiras em que a arma eram os próprios soldados. A França tem a sua quota parte de cemitérios ingleses e americanos, daqueles que deram a vida por ela. É sempre bom lembrar a História nestes dias em que a Europa está à beira de mergulhar no caos. Foi no Somme que o Presidente francês voltou a insistir pela enésima vez que “a decisão foi tomada, não pode ser adiada e não pode ser cancelada”. Imagina-se que a obsessão de Hollande não seja pela sua preocupação com o funcionamento da democracia britânica. O mais provável é que tenha a ver com a sua estratégia para ganhar as primárias do PS, que já não conseguirá evitar, e as presidenciais da Primavera de 2017. O Presidente iniciou uma deriva europeia para mostrar que não está prisioneiro de Berlim. O seu primeiro-ministro, Manuel Valls anunciou que o mundo financeiro da City será “welcome” em Paris (será difícil, mas enfim, não custa tentar). Tudo leva a crer que resolveu apostar numa jogada paralela com o SPD alemão, parceiro mais pequeno da coligação que governa a Alemanha e, também ele, a tentar demarcar-se da chanceler e da sua política europeia até às eleições, em Setembro. Os dois ministros dos Negócios Estrangeiros (Frank-Walter Steinmeier é do SPD) elaboraram um extenso plano para o futuro da Europa no sentido da “ever closer union” e para tentar provar a capacidade de liderança franco-alemã, embora com protagonistas diferentes. Ainda hoje não se sabe bem a razão pela qual o chefe da Diplomacia alemã convocou para Berlim os outros cinco fundadores, a não ser um sinal de regresso ao passado. Merkel tem visto a sua popularidade relativamente desgastada pelas sucessivas crises a que tem de responder. Mesmo assim, disse o que devia sobre os refugiados e voltou a mostrar um sentido europeu ao combater o revanchismo contra Londres. O SPD continua a marcar passo nas sondagens. Depois de ter mantido o silêncio sobre as políticas de austeridade impostas por Berlim, passou agora a criticar abertamente a chanceler pela sua gestão da crise do euro. “As políticas de austeridade antes de 2013 que a chanceler promoveu enfraqueceram a solidariedade e a unidade da União Europeia”, diz Norbert Spinrath, deputado alemão social-democrata, ao site Politico. O próprio vice-chanceler e ministro da Economia, Sigmar Gabriel, reagindo ao Brexit, insistiu em que a Europa “tem de seguir um caminho que os cidadãos entendam”. Noutra declaração, defendeu a redução do número de comissários, numa altura em que, politicamente, isso é absolutamente impossível. Alinhou com a pressa francesa. Neste novo puzzle alemão, falta compreender as razões que levaram o ministro das Finanças, Wolfgang Schauble, a falar sobre um novo resgate a Portugal, a propósito de nada e com efeitos que ele próprio sabe quais são. Ameaça? Pressão? Aviso? Seja o que for, incluindo uma boa intenção para pastorear as ovelhas tresmalhadas para a relva fresquinha, Schauble tem consciências do efeito das suas palavras e no custo adicional que elas têm para um país que tenta pôr-se de pé outra vez. Dá, por vezes, a ideia de que a estável cena política alemã está a entrar numa pequena zona de turbulência, baralhando os sinais. Mas o que é de mais é de mais.
2. António Costa não podia ficar calado perante as palavras de Wolfgang Schauble. Por mais voltas que se lhes dê, não é sequer possível minimizá-las. Ninguém consegue compreender a razão de tanta sanha punitiva em Berlim e em Bruxelas contra Portugal (ou contra este Governo), depois de tantos sacrifícios, de tanta destruição, quando precisamos de reconquistar a confiança dos investidores para conseguir pôr a economia a crescer. A estranheza das suas palavras foi ainda mais evidente porque ocorreu em pleno tremor de terra do “Brexit”, com a Europa profundamente dividida quanto ao seu significado e sobre o que é preciso fazer a médio longo prazo para superar os danos. O que ganhou o ministro das Finanças alemão com os seus comentários? Mostrar que a linha dura continua, ignorando absolutamente os seus efeitos sobre a realidade política europeia em acelerada e perigosa transformação? Desviar as atenções do “Brexit”, que terá um impacte assinalável na economia alemã? Disfarçar a situação do Deutsche Bank?
3. Ninguém duvida que, no peito de Jean-Claude Juncker, bate um coração europeu. Não há porventura outro líder que tenha permanecido tanto tempo à frente do seu país e à frente de instituições europeias (o Eurogrupo e a Comissão). A boa velha Europa está-lhe no sangue. Talvez por isso não consiga entender que essa Europa já não existe e é preciso encontrar outras formas de salvá-la. Não há uma explicação cabal para que o presidente da Comissão tenha adoptado um tom conflituoso com o Reino Unido (Saíste? Agora aguenta) e que acredite que a punição vá dissuadir outros países de tentarem seguir o caminho de Londres. Em primeiro lugar, não se vislumbra essa tentação em nenhum governo europeu, mesmo nos países de Leste com governos nacionalistas. Outros, como a Holanda, são membros do euro e a saída da união monetária é muito mais complicada do que a saída da União Europeia. Juncker tem pressa para fazer o quê? Para pôr de pé um “salto em frente” em torno do qual ninguém se entende? A sua atitude só fortalece os que olham para Bruxelas como um poder centralizador e arrogante que não leva em conta o que pensam os cidadãos europeus. O presidente da Comissão perdeu, ele próprio, o controlo que deveria manter sobre o colégio de comissários, que ignoram o que ele diz e se dedicam a defender as suas posições nacionais. Juncker não quer sanções. Valdis Dombrovskis quer aplicá-las a todo o custo e quanto mais pesadas melhor. Pierre Moscovici coloca-se a meio da ponte num equilíbrio instável. O Governo português já sabe que o melhor que vai conseguir é a “pena suspensa”, ou seja, as sanções ficam suspensas até ao final deste ano e, se tudo correr bem, desaparecem.
4. “A Europa não pode salvar o Reino Unido”, escreveu Natalie Nougayrède, na sua coluna no Guardian. “Está demasiado atarefada a tentar salvar-se a si própria”. E o Reino Unido está mergulhado numa crise política profunda, sem ninguém para conduzir o barco, com os seus dois grandes partidos decapitados e sem estratégia. Entretanto, o resto de mundo olha atónito para tamanha capacidade de autodestruição. Obama avisa para os efeitos económicos do “Brexit” a médio prazo e no mundo inteiro. Xi Jinping, enquanto centraliza todo o poder nas suas mãos para controlar uma aterragem acidentada da economia chinesa, preocupa-se com a estabilidade no seu primeiro parceiro comercial. Andrew Small, do German Marshall Fund, acrescenta que “os líderes asiáticos costumam estar de acordo sobre muito pouca coisa, excepto numa: querem que o Reino Unido fique”.
Ontem Eduardo Lourenço lembrou que “a Europa não existe sem o Reino Unido”. Por tudo e mais alguma coisa, mas também porque é “a mãe da democracia europeia”. Palavras simples para descrever a Europa neste momento. Os cemitérios estão lá para nos lembrarem da nossa própria História.

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