O mesmo Portugal descrito pela
pena de um jovem – João Miguel Tavares - de indivíduos a crescerem acolitados
nas suas ambições de conquistadores de uma nova ordem, lembrando jeitos de ferrabrazes
de bravata e estridência, por “amor” a um povo deles “necessitado”, é
igualmente o Portugal descrito por Miguel Torga, nos finais dos anos 30, (A
Criação do Mundo) de um mundo de disparidades sociais, e a malandrice inata
dos da ascensão social como parasitas de um povo subserviente deles necessitando.
Um Torga, todavia, pertencendo à mesma casta da oposição actual, explicando os
motivos da sua rebeldia contínua de Orfeu pretendendo chamar à vida a sua
Eurídice morta, o “Portugal a entristecer” de Pessoa. Sem a bravata dos de hoje,
que clamam aqui d’el-rei contra uma Europa de exigência e fartura - provinda da sua inteligência e esforço - no fundo, apenas a dar-se ares de poder, na
desfaçatez atrevida de quem não tem que prestar contas nem ensinar o povo a
fazê-lo e apenas a lamuriar direitos, esse povo que Torga descreve de mão
estendida a uma classe de esperteza que dele vive - distinta da de hoje,
todavia, com o alastramento e amplitude da ambição e desprezo, que não isenta os
que do povo se servem para o seu prestígio de salvadores - como garra lacerante
desse mesmo país de eterna incapacidade
de autovalorização pelos princípios, princípios salientes no belo texto de João
Miguel Tavares.
Um excerto magistral, embora
extremamente subjectivo na generalização do retrato, do 3º Dia da Criação do
Mundo, de Miguel Torga:
«Um
Portugal velho e rotineiro, de senhores e servos, estava ali vivo e presente.
De mão vazia, ninguém pedisse justiça, conforto divino, instrução ou saúde.
Parasitas do povo, o padre, o médico, o professor e o juiz, em nome de Deus, do
saber, da lei e de Esculápio, exigiam-lhe todas as formas de preitesia, a
começar pela mais concreta: o óbolo dos frutos da terra. Cada ungido que vinha
oficiar à sua igreja, antes da primeira oração, olhava o altar das oferendas.
Crédulo e submisso como há mil anos, o camponês gemia, mas esvaziava a salgadeira,
a tulha e o curral. Cair no desagrado de tais divindades, seria a perdição
total neste mundo e no outro. O Diário do Governo e o Boletim Diocesano não
nomeavam funcionários públicos e pastores de almas. Proclamavam omnipotências.
E ai daquele que se recusasse a reconhecer-lhes a soberania!»
O artigo de um jovem da velha
guarda, racional, desassombrado, didáctico, a tentar desfazer uma crosta de encardida
e generalizada malandrice:
Patriotismo?
Tenham vergonha
Público 07/07/2016
Já ouvem ao longe as trombetas? Neste momento, a luta contra
as sanções não é apenas um combate político – é um desígnio patriótico ao nível
do ultimato inglês de 1890. É a dignidade de Portugal que está em causa! É a
obrigação de reagirmos à chantagem europeia! É a necessidade de defendermos a
alma lusitana e o espírito de Viriato! Vocês lembram-se do tempo em que o
nacionalismo era coisa salazarenta e o patriotismo uma bandeira poeirenta do
CDS? Esqueçam. O patriotismo está super-fashion e há um novo nacionalismo 2.0.
O PCP, o Bloco de Esquerda e o próprio PS estão embriagados de
nacional-patriotismo, e não é por causa do Europeu de futebol: é porque os
alemães – ou melhor: os boches – querem impor a todo o custo a ditadura da
austeridade. Em 1890 cantava-se pelas ruas “contra os bretões, marchar,
marchar”. Com o advento da República passou a cantar-se “contra os canhões,
marchar, marchar”. Chegou a hora de uma nova e imprescindível actualização:
“contra os teutões, marchar, marchar”.
O
secretário-geral do PCP pede ao Governo “brio patriótico” para informar
Wolfgang Schäuble que “no seu país manda ele, mas aqui mandam os portugueses”.
O Bloco garante que se as sanções forem para a frente ele lança contra a Europa
a sua mais recente canhoneira: o referendo-a-não-se-sabe-bem-o-quê. Já no final
do ano passado, o Bloco discutia num dos seus fóruns a candente questão: “A
esquerda deve ser patriótica?” Luís Fazenda mostrava o caminho: “Há um
nacionalismo progressivo e um nacionalismo reaccionário. Nós somos do campo do
nacionalismo progressista.” Viva, pois, o nacionalismo progressista, que o PS
tem vindo a adoptar com entusiasmo crescente, cumprindo mais uma das suas
promessas eleitorais: ser, nas palavras de António Costa, “o campeão do
patriotismo na Europa”.
A
coisa funciona assim: quanto mais a Europa se desconvence da sanidade mental
dos planos económicos de Mário Centeno, mais o fervor patriótico toma conta do
Partido Socialista. Por cada mapa Excel que se afunda há uma bandeira
verde-rubra que se ergue. Pelas ruas, estão plantados cartazes onde os
socialistas prometem “defender Portugal na Europa” e a destacada Ana Catarina
Mendes elogia a “voz grossa” do Governo e do PS. Os agudos de Pedro Passos
Coelho foram substituídos pelos baixos profundos de António Costa.
Por
favor, alguém informe os nacionalistas progressistas e os campeões do
patriotismo da figura ridícula que estão a fazer. Não por haver mal algum em
defender os interesses de um país – acho óptimo –, mas porque o único interesse
que a esquerda está a defender é a sua sobrevivência política. Isto não é um
patriotismo corajoso, de faca nos dentes. Isto é apenas um patriotismo
dependente, de chucha na boca.
Eis
a dura verdade: esta esquerda não tem qualquer projecto político plausível para
o país que tanto diz amar. Aquilo a que chamam patriotismo é o eterno
prolongamento do Portugal de mão estendida e incapaz de produzir o suficiente
para sustentar o seu nível de vida. Patriotismo é tentar quebrar esse círculo
vicioso. Patriotismo é trabalhar pelas reformas indispensáveis, é fazer
sacrifícios por um país melhor, é lutar pela nossa independência financeira.
Patriotismo não é berrar alto, a ver se nos voltam a encher a velha gamela.
Dizem por aí que o bom aluno era demasiado subserviente. Já o aluno cábula,
esse, é um grande patriota. Com uma mentalidade destas, só temos aquilo que
muito patrioticamente merecemos.
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