sexta-feira, 26 de agosto de 2016

A educação está na base



Dantes, dizia-se que o Estado pagava mal e tarde, mas pagava sempre. Lembro-me de o meu pai o dizer. O meu pai era um homem tímido e cumpridor, suponho que também por azo das suas leituras de História e de alguns clássicos moralistas que entendiam, tal o Sá de Miranda, queSem cabeça o corpo é vão”; queUm rei ao reino convém”; que Vemos que alumia o mundo /  Um sol,  (que) um deus (o) sustém”;  queCerta a queda e o fim tem /  O reino onde há rei segundo»;  queNão ao sabor das ovelhas / Arenga estudada e branda; / Abastam as razões velhas. / A cabeça os membros manda, / Seu rei seguem as abelhas»; que « Forças e condição boa / Deram ao leão coroa / Da sua grei montesinha»; que «Às aves, tamanho bando / D'outra liga e doutra lei, / Por vencer todas voando,  / A águia foi dada por rei;  / Que o sol claro atura, olhando». Mas, para tal, «Sobre obrigações tamanhas, / Velem-se contudo os reis / Dos rostos falsos, das manhas  / Com que lhe querem dar leis / Fazer teias das aranhas! 
E foi por todos esses e outros mais argumentos, concisamente apontados na sua «Carta a D. João III», que Sá de Miranda se demarca da corte e das perfídias nela processadas, com o seguinte auto-retrato:
Homem dum só parecer,  / D'um só rosto, uma só fé,  / D’antes quebrar que torcer, / Ele tudo pode ser,  / Mas de corte homem não é. 
 Um retrato que me serviu para adaptar, como preciosa definição, à imagem que guardo desse pai, que sempre admirei, mau grado certa rigidez que se compreendia pelos tratos da vida, que foi a sua desde a infância, construída a maior parte do tempo longe da mãe, num lar monoparental, como se define hoje. Mas uma vida cheia de compreensão e de amor, sem pieguice mas companheirismo educado na experiência e na leitura.
O artigo de António Barreto trouxe-me este retorno ao passado, lembrando quanto esses conceitos de liberdade e igualdade nos explodiram na cara aquando da Revolução dos Cravos. Na realidade, nunca me sentira oprimida, e vivi a minha vida dentro de uma liberdade condicionada por valores e respeito de normas. Grande foi o embate com as novas teorias, e nunca esquecerei a cena num corredor do Liceu Passos Manuel, em 76, nessa altura de puro descontrolo disciplinar, com alunos entrando e saindo das aulas  - que deixaram de o ser - com uma rapariga a escarrar-me na cara que agora éramos todos iguais…
É claro que não é esse conceito que defende António Barreto, no artigo que segue, e fixo-me no último parágrafo: A igualdade não é uma arma de luta pela liberdade. Com a igualdade, é difícil defender a liberdade. Pelo contrário, com liberdade, podemos combater a desigualdade. A liberdade é mesmo a principal arma de luta pela igualdade.
Os seus conceitos são de base económica e social, mas eu sempre julguei que era tempo de pararmos para ponderarmos. Sabemos todos que não passa de utopia esse conceito de igualdade, mesmo em relação aos direitos, mas ainda bem que eles foram registados em “Declaração Universal”, quanto mais não seja para nos rirmos da falsidade e hipocrisia escarrapachadas no papel, e agora também na Internet. Não passam de abstracções, a que facilmente se fecha os olhos, tanto mais que existem na própria gramática, nos diversos graus dos adjectivos, que estabelecem comparações e seria uma seca que assim não fosse.
Quanto à liberdade, sabemos bem ao que conduz a toleima de uma liberdade sem o controle da sensatez e do respeito próprio. Mas a educação é fundamental e a sociedade tende para a deseducação, como se vê nas más gestões das escolas, fornecedoras dos futuros chefes.
“Sem cabeça o corpo é vão”, escreveu Sá de Miranda, e isso passa-se com os animais, também, com o nobre leão, com a águia que desafia o sol, com as abelhas sujeitas a uma rainha. É verdadeiro isso sempre, mas nós embebedámo-nos com os conceitos de igualdade e liberdade e continuamos a discuti-los, como se fossem o nec plus ultra dos conceitos. E hoje, os que tomam conta da coisa pública, fazem-no na liberdade da coisa oculta. Donde se segue que já não temos a res publica, que o Estado comanda – pagando mal e tarde, mas pagando sempre, como nos meus tempos antigos, mas temos a res oculta de governantes livres, que nós, pessoas também livres e iguais, desmascaramos. E quando há um chefe que queira pegar num leme de critério e probidade, nós, pessoas livres, atiramo-lo fora. Por isso derrapamos sempre. Sem educação não pode haver liberdade nem igualdade que prestem. E a desigualdade combate-se, igualmente, com a educação, a verdadeira arma.

Liberdade e igualdade
António Barreto
DN, 21/8/16
Em Portugal, não há uma economia privada, uma sociedade civil ou uma classe dominante que dirija o país e comande o Estado. É o contrário. Sempre foi. À esquerda ou à direita, com interesses nacionais ou estrangeiros e com ou sem a Igreja, é o Estado que comanda. Por isso é tão frequente encontrar quem exerça o poder com o Estado, pelo Estado e através do Estado. É um Estado para todas as estações. E todos os azimutes. Nas últimas décadas, o Estado fez a guerra e a descolonização, fez a revolução e a contra-revolução, nacionalizou e reprivatizou a economia.
Não há "classes" que comandem o Estado e o organizem. Há, isso sim, patrícios, raiders, salteadores e piratas, vindos da economia ou da política, que se apropriam do Estado. Os últimos anos foram de excepcional valor para identificar uns e outros. Comandam temporariamente, com objectivos precisos ou na esperança de encontrar uma ligação duradoura. Assim é que o Estado assegura até algum efeito de auto-reprodução, levado a cabo sem uma orientação classista. Por isso, o Estado não é o "separador" entre esquerda e direita. O Estado já protegeu e oprimiu cidadãos, já os libertou e aprisionou. O Estado Novo serviu para o Estado democrático.
Tal como na direita, uma parte da esquerda não é democrática, nem preza a liberdade individual. À esquerda, todas as experiências comunistas mostraram como aquela pode ser antidemocrática. À direita, basta recordar as experiências fascistas, nazi e de outras variedades (salazarista, franquista, de Vichy...). Desde o século XIX, as mais duráveis e robustas experiências de poder da esquerda foram, do ponto de vista das liberdades, autênticos desastres! A longa vida dos governos comunistas, na União Soviética, na China, no Leste europeu, em Cuba, na Coreia do Norte e noutros países, foi sempre feita em ditadura. Em nome da esquerda. Em anos de vida e em população abrangida, os governos ditatoriais de esquerda foram superiores aos de esquerda democrática.
A maior parte das experiências governamentais da esquerda, no mundo moderno, é caracterizada por isso mesmo: ditadura, polícia política e supressão de direitos fundamentais. Nesses países, as vítimas mortais e os presos contam-se por milhões e dezenas de milhões. Em todas essas experiências, o valor da igualdade foi sempre dominante. Em seu nome se suprimiu a liberdade.
Na história política da Europa, a esquerda democrática teve uma vida difícil, entre as ditaduras de direita e as de esquerda, entre o capitalismo e o comunismo. Mas conseguiu durar e, em certos países, impor-se. Foi mesmo capaz de governar, nos países escandinavos e, episodicamente, em França, na Grã-Bretanha, até na Alemanha. Assim como em Portugal e na Espanha. Fê-lo quando soube denunciar a tradição autoritária comunista. Teve sucesso quando foi capaz de conquistar para o seu espaço outras políticas do centro e da direita. Teve êxito quando admitiu que o mercado e a iniciativa privada faziam parte do legado de liberdade e que eram irrenunciáveis. Venceu quando garantiu que a liberdade era a prioridade absoluta.
O trabalho, a justiça, a cultura e a igualdade são valores de esquerda. Ou antes, também são de esquerda. Mas a liberdade vem à cabeça. Pelo menos com a esquerda democrática. Quando um partido ou um governo substitui, entre as prioridades políticas, a liberdade pela igualdade, não restam dúvidas: esse partido ou esse governo está a abandonar a democracia! A igualdade não é uma arma de luta pela liberdade. Com a igualdade, é difícil defender a liberdade. Pelo contrário, com liberdade, podemos combater a desigualdade. A liberdade é mesmo a principal arma de luta pela igualdade.

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