terça-feira, 30 de agosto de 2016

Ingratidão é obra


Um texto de um juiz, para mais jubilado, para mais conselheiro.
Leio e pôr-me-ia a corar, se fosse de tez pálida e o rubor da indignação, da timidez ou da vergonha ainda conseguisse subir-me ao rosto, arrefecido dos anos. De facto, o título do seu artigo, a ser mais modesto e ponderado, deveria ser invertido nos sintagmas – Para que serve Portugal à Europa e não o contrário.
A isso, poderíamos responder, orgulhosamente, que outrora ajudámos a desbravar  os litorais do mundo e isso foi enriquecedor para os povos. Como, entretanto, nessas tarefas interesseiras, não acompanhámos o desenvolvimento cultural dos povos europeus - as classes mais cimeiras entretidas a esbanjar os ganhos ultramarinos erguendo palácios e a cuidando dos seus físicos em luxos extravagantes, mais do que em prol de todos – mas outras razões haverá da nossa apatia, que se prolongou pelos tempos – vivemos,o grosso demográfico, do desenrascanço, ou da humilhação face aos outros, e ultimamente, mais do que nunca, somos dos que se encontram enterrados numa dívida que, na opinião de alguns – suponho que do juiz-conselheiro também – não tem razão de ser, que as dívidas não são para se pagarem, nova modalidade de critério legislativo, mesmo para um magistrado ligado a criminologia, talvez disposto a alterar-lhe as leis. Bastar-nos-ia dar um piparote na adesão à União Europeia, agora que fomos servidos e mais uma vez esbanjámos, a pensar no nosso presente, não no futuro dos nossos, substituindo o actual euro pelo antigo escudo e ignorando a dívida. Suponho que Guilherme Fonseca pensa isso mesmo, ao concluir que «não tem havido, ao longo da nossa história, e não há, um contributo verdadeiramente favorável a Portugal da parte da Europa, a servir o desenvolvimento/modernidade do país, devendo gritar-se bem alto que é chegado o momento de reconquistar a soberania nacional plena, desprendendo-nos das amarras que nos prendem à UE e, para o efeito, apagando e esquecendo os comandos constitucionais referidos e que nos comprometem com a UE.»
Ou seja, agora que nos aproveitámos da Europa e dos seus dinheiros, em regabofe construidor de estradas e estádios, e fortalecedor dos bolsos de muitos, nada de pensar em saldar a larga dívida. O «Para que serve a Europa a Portugal?» dá conta das nossas intenções – ou tão só da do juiz conselheiro jubilado Guilherme Fonseca, mas com os respectivos acólitos - de aproveitadores da ajuda alheia sem a responsabilidade de a sanar. Alambazámo-nos, correu mal por culpa nossa, mas, como filhos ingratos, culpamos os pais dos nossos desmandos, pretexto para os chutarmos de nós, sem mais responsabilidade. 
Custa a crer tanta desvergonha, para mais num juiz, para mais conselheiro, para mais jubilado. Esse sim, desacredita Portugal, que não merecia gente desta a habitá-lo, sem uma Justiça a reprimi-la, pois esta se conta no meio da mesma engrenagem  de desrespeito e podridão.

Para que serve a Europa a Portugal?
Guilherme Fonseca , Juiz-conselheiro jubilado
Público, 29/07/2016

Quando se enuncia de modo interrogativo a questão, pretende-se chamar a atenção para um assunto actual, pois estamos a assistir ao confronto entre o Reino Unido e a UE, com risco da separação, consumada com o resultado do referendo "Brexit" e é indiscutível o seu significado, na situação de crise que atravessa a UE, nestes últimos anos, reflectida actualmente, além do mais, na problemática dos refugiados/migrantes. E pretende-se ainda, e de modo provocatório, buscar uma resposta que nos elucide sobre o verdadeiro contributo da Europa para o desenvolvimento/modernidade do nosso país, que todos qualificam como país da periferia do continente europeu, com índices económico financeiros e socioculturais de baixo valor, sendo poucas as excepções (sirvam de exemplo marcante a diminuta percentagem da mortalidade infantil e alguns dados interessantes em certas áreas tecnológicas e científicas).
Ora, Portugal tem mais de oito séculos de existência, atravessou já momentos difíceis de crise na sua história, até com risco da sua sobrevivência, como país soberano, constantemente acossado pela vizinha Espanha, mas soube resolvê-los ou ultrapassá-los, nunca, porém, com ajuda/apoio ou solidariedade da Europa. Pelo contrário, a Europa envolveu muitas vezes o nosso país em situações que sempre nos prejudicaram. Sem aludir à maior ou menor dependência da Inglaterra, a partir da II Dinastia, podemos lembrar, nos últimos 150 anos, o seguinte: o Ultimatum inglês de 1890, a propósito do mapa cor-de-rosa, arrastando a perda de possessões portuguesas na África, o envolvimento na I Guerra Mundial, de 1914-1918, estendida às colónias de Angola e Moçambique, com uma economia de guerra que subjugou Portugal, e as crises financeiras do final do século XIX e ao longo do século XX, com implicações no nível de vida dos portugueses. E a Europa sempre maltratou o nosso país.
E a adesão à UE, em 1985, também se inscreve ou não nesse patamar histórico negativo acabado de registar?
Mesmo admitindo que nos primeiros anos dessa adesão Portugal obteve ou conseguiu ajudas comunitárias, em dinheiro, que permitiram um aparente benefício público e uma aparente melhoria do bem-estar e do nível de vida dos portugueses, o certo é que, em pouco tempo, tudo passou a evoluir negativamente, com Portugal a aderir à zona euro, em 1999, como membro fundador da União Económica e Monetária, apesar de todas as promessas optimistas. A progressiva submissão aos desígnios europeus e a circulação da nova moeda, a partir de 2002, precipitaram a situação no século XXI, numa envolvência negativa que chegou até aos nossos dias, com os resultados que todos conhecem e sofrem.
E os compromissos com a Europa passaram a constar da Constituição da República Portuguesa (CRP), através de sucessivas revisões constitucionais, implicando o enfraquecimento ou até a perda da soberania.
Assim, a porta abriu-se para UE com a revisão constitucional de 1989, uma das mais nefastas para o texto originário da CRP, que até então apontava nos art.ºs 7.º e 8.º para um relacionamento internacional de cariz positivo, numa cumplicidade com os outros Estados, no bom sentido. É a partir dessa revisão que a linguagem da CRP muda e passa a falar-se no "reforço da identidade europeia", no "fortalecimento da acção dos Estados Europeus" (art.º 7.º, n.º 5), agravando-se o panorama com a revisão de 1992, quando se acrescenta o n.º 6 ao art.º 7.º, onde se prevê que Portugal pode "convencionar o exercício em comum dos poderes necessários à constituição da União Europeia". Mas é com o texto actual da CRP, resultando ainda de revisões constitucionais posteriores, que tudo se consumou e para pior. Assim, alterou-se aquele n.º 6 do art.º 7.º, reforçando-se a construção e o aprofundamento da UE e, perigosamente, acrescentou-se um n.º4 ao art.º 8.º, prevendo que as normas emanadas das instituições da UE "são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático", de que é exemplo recente o chamado Tratado Orçamental, que Portugal se apressou a aprovar/ratificar na Assembleia da República.
Enfim, a coberto da CRP, desfigurada, de certo modo, com as revisões constitucionais, a UE instalou-se em Portugal, a governar o país, sem que, aliás, tivesse sido dada oportunidade aos portugueses para se pronunciarem, em referendo.
E instalou-se, sem um fim à vista, de pé firme, com a aceitação do nosso país, em 2011, do chamado "memorando da troika", em permanente revisão, com sucessivas avaliações, de tal modo que verdadeiramente nunca se sabe, no momento, o que a troika quer, nem se sabe como vai evoluir proximamente o resgate a que se chegou. Instalação essa facilitada pela moeda própria, o euro, e também pelas regras próprias de ordem financeira e orçamental, implicando, por exemplo, o enfraquecimento da soberania nacional, em colisão com símbolos nacionais, como sejam a moeda e o Orçamento do Estado, ou mesmo a perda da soberania nacional, à medida do avanço da federalização da Europa, que pode ter, entre o mais, reflexos graves na representação externa do país e no modelo das Forças Armadas.
Tudo isto sem perder de vista os malefícios que a UE, aliada ao FMI, nos tem provocado a partir de 2011, como sejam a austeridade, que foi sempre mais agravada, arrastando o empobrecimento, o desemprego e a precariedade no mercado do trabalho; a emigração em subida constante; os cortes, sobretudo, à custa dos salários/remunerações, das pensões/reformas e das prestações sociais, também os cortes nos serviços públicos, com afectação da sua capacidade financeira e dos quadros dos seus trabalhadores (e na base está a dívida soberana, em montante indesejável, submetida ao pagamento de juros usurários aos nossos credores). Factores que só agora, com o XXI Governo Constitucional, parece que vão inflectir com a viragem da página que felizmente se anuncia, no fim de seis meses da governação PS.
Em conclusão, considerando todo este quadro, a resposta à questão inicialmente posta só pode ser uma: não tem havido, ao longo da nossa história, e não há, um contributo verdadeiramente favorável a Portugal da parte da Europa, a servir o desenvolvimento/modernidade do país, devendo gritar-se bem alto que é chegado o momento de reconquistar a soberania nacional plena, desprendendo-nos das amarras que nos prendem à UE e, para o efeito, apagando e esquecendo os comandos constitucionais referidos e que nos comprometem com a UE.


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