Um texto de um juiz, para mais
jubilado, para mais conselheiro.
Leio e pôr-me-ia a corar, se
fosse de tez pálida e o rubor da indignação, da timidez ou da vergonha ainda
conseguisse subir-me ao rosto, arrefecido dos anos. De facto, o título do seu
artigo, a ser mais modesto e ponderado, deveria ser invertido nos sintagmas – Para
que serve Portugal à Europa e não o contrário.
A isso, poderíamos responder,
orgulhosamente, que outrora ajudámos a desbravar os litorais do mundo e isso foi enriquecedor
para os povos. Como, entretanto, nessas tarefas interesseiras, não acompanhámos
o desenvolvimento cultural dos povos europeus - as classes mais cimeiras
entretidas a esbanjar os ganhos ultramarinos erguendo palácios e a cuidando dos
seus físicos em luxos extravagantes, mais do que em prol de todos – mas outras
razões haverá da nossa apatia, que se prolongou pelos tempos – vivemos,o
grosso demográfico, do desenrascanço, ou da humilhação face aos outros, e
ultimamente, mais do que nunca, somos dos que se encontram enterrados numa
dívida que, na opinião de alguns – suponho que do juiz-conselheiro também – não
tem razão de ser, que as dívidas não são para se pagarem, nova modalidade de critério legislativo,
mesmo para um magistrado ligado a criminologia, talvez disposto a alterar-lhe as leis. Bastar-nos-ia dar um piparote
na adesão à União Europeia, agora que fomos servidos e mais uma vez esbanjámos,
a pensar no nosso presente, não no futuro dos nossos, substituindo o actual
euro pelo antigo escudo e ignorando a dívida. Suponho que Guilherme Fonseca
pensa isso mesmo, ao concluir que «não
tem havido, ao longo da nossa história, e não há, um contributo verdadeiramente
favorável a Portugal da parte da Europa, a servir o desenvolvimento/modernidade
do país, devendo gritar-se bem alto que é chegado o momento de reconquistar
a soberania nacional plena, desprendendo-nos das amarras que nos prendem à UE
e, para o efeito, apagando e esquecendo os comandos constitucionais referidos e
que nos comprometem com a UE.»
Ou seja, agora que nos aproveitámos da Europa e dos
seus dinheiros, em regabofe construidor de estradas e estádios, e fortalecedor dos
bolsos de muitos, nada de pensar em saldar a larga dívida. O «Para que serve a Europa a Portugal?» dá conta das nossas intenções –
ou tão só da do juiz conselheiro jubilado Guilherme Fonseca, mas com os
respectivos acólitos - de aproveitadores da ajuda alheia sem a responsabilidade de a sanar. Alambazámo-nos, correu mal por culpa nossa, mas, como filhos ingratos, culpamos os pais dos nossos
desmandos, pretexto para os chutarmos de nós, sem mais responsabilidade.
Custa a crer tanta desvergonha, para mais num juiz,
para mais conselheiro, para mais jubilado. Esse sim, desacredita Portugal, que
não merecia gente desta a habitá-lo, sem uma Justiça a reprimi-la, pois esta se
conta no meio da mesma engrenagem de desrespeito
e podridão.
Para
que serve a Europa a Portugal?
Guilherme Fonseca , Juiz-conselheiro
jubilado
Público, 29/07/2016
Quando se enuncia de modo interrogativo a questão,
pretende-se chamar a atenção para um assunto actual, pois estamos a assistir ao
confronto entre o Reino Unido e a UE, com risco da separação, consumada com o
resultado do referendo "Brexit" e é indiscutível o seu significado,
na situação de crise que atravessa a UE, nestes últimos anos, reflectida
actualmente, além do mais, na problemática dos refugiados/migrantes. E
pretende-se ainda, e de modo provocatório, buscar uma resposta que nos elucide
sobre o verdadeiro contributo da Europa para o desenvolvimento/modernidade do
nosso país, que todos qualificam como país da periferia do continente europeu,
com índices económico financeiros e socioculturais de baixo valor, sendo poucas
as excepções (sirvam de exemplo marcante a diminuta percentagem da mortalidade
infantil e alguns dados interessantes em certas áreas tecnológicas e
científicas).
Ora,
Portugal tem mais de oito séculos de existência, atravessou já momentos
difíceis de crise na sua história, até com risco da sua sobrevivência, como
país soberano, constantemente acossado pela vizinha Espanha, mas soube
resolvê-los ou ultrapassá-los, nunca, porém, com ajuda/apoio ou
solidariedade da Europa. Pelo contrário, a Europa envolveu muitas vezes
o nosso país em situações que sempre nos prejudicaram. Sem aludir à maior
ou menor dependência da Inglaterra, a partir da II Dinastia, podemos
lembrar, nos últimos 150 anos, o seguinte: o Ultimatum inglês de 1890, a
propósito do mapa cor-de-rosa, arrastando a perda de possessões portuguesas na
África, o envolvimento na I Guerra Mundial, de 1914-1918, estendida às
colónias de Angola e Moçambique, com uma economia de guerra que subjugou
Portugal, e as crises financeiras do final do século XIX e ao longo do século
XX, com implicações no nível de vida dos portugueses. E a Europa sempre
maltratou o nosso país.
E
a adesão à UE, em 1985, também se inscreve ou não nesse patamar histórico negativo
acabado de registar?
Mesmo
admitindo que nos primeiros anos dessa adesão Portugal obteve ou conseguiu
ajudas comunitárias, em dinheiro, que permitiram um aparente benefício público
e uma aparente melhoria do bem-estar e do nível de vida dos portugueses, o
certo é que, em pouco tempo, tudo passou a evoluir negativamente, com Portugal
a aderir à zona euro, em 1999, como membro fundador da União Económica e
Monetária, apesar de todas as promessas optimistas. A progressiva
submissão aos desígnios europeus e a circulação da nova moeda, a partir de
2002, precipitaram a situação no século XXI, numa envolvência negativa que
chegou até aos nossos dias, com os resultados que todos conhecem e sofrem.
E
os compromissos com a Europa passaram a constar da Constituição da República
Portuguesa (CRP), através de sucessivas revisões constitucionais, implicando
o enfraquecimento ou até a perda da soberania.
Assim,
a porta abriu-se para UE com a revisão constitucional de 1989, uma das mais
nefastas para o texto originário da CRP, que até então apontava nos art.ºs 7.º
e 8.º para um relacionamento internacional de cariz positivo, numa cumplicidade
com os outros Estados, no bom sentido. É a partir dessa revisão que a
linguagem da CRP muda e passa a falar-se no "reforço da identidade
europeia", no "fortalecimento da acção dos Estados Europeus"
(art.º 7.º, n.º 5), agravando-se o panorama com a revisão de 1992, quando se
acrescenta o n.º 6 ao art.º 7.º, onde se prevê que Portugal pode "convencionar
o exercício em comum dos poderes necessários à constituição da União
Europeia". Mas é com o texto actual da CRP, resultando ainda de
revisões constitucionais posteriores, que tudo se consumou e para pior.
Assim, alterou-se aquele n.º 6 do art.º 7.º, reforçando-se a construção e o
aprofundamento da UE e, perigosamente, acrescentou-se um n.º4 ao art.º 8.º, prevendo
que as normas emanadas das instituições da UE "são aplicáveis na ordem
interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos
princípios fundamentais do Estado de direito democrático", de que é
exemplo recente o chamado Tratado Orçamental, que Portugal se apressou a
aprovar/ratificar na Assembleia da República.
Enfim,
a coberto da CRP, desfigurada, de certo modo, com as revisões constitucionais,
a UE instalou-se em Portugal, a governar o país, sem que, aliás, tivesse sido
dada oportunidade aos portugueses para se pronunciarem, em referendo.
E
instalou-se, sem um fim à vista, de pé firme, com a aceitação do nosso país, em
2011, do chamado "memorando da troika", em permanente revisão, com
sucessivas avaliações, de tal modo que verdadeiramente nunca se sabe, no
momento, o que a troika quer, nem se sabe como vai evoluir proximamente o
resgate a que se chegou. Instalação essa facilitada pela moeda própria, o euro,
e também pelas regras próprias de ordem financeira e orçamental, implicando,
por exemplo, o enfraquecimento da soberania nacional, em colisão com símbolos
nacionais, como sejam a moeda e o Orçamento do Estado, ou mesmo a perda da
soberania nacional, à medida do avanço da federalização da Europa, que pode
ter, entre o mais, reflexos graves na representação externa do país e no modelo
das Forças Armadas.
Tudo
isto sem perder de vista os malefícios que a UE, aliada ao FMI, nos tem
provocado a partir de 2011, como sejam a austeridade, que foi sempre
mais agravada, arrastando o empobrecimento, o desemprego e a precariedade no
mercado do trabalho; a emigração em subida constante; os cortes, sobretudo, à
custa dos salários/remunerações, das pensões/reformas e das prestações sociais,
também os cortes nos serviços públicos, com afectação da sua capacidade
financeira e dos quadros dos seus trabalhadores (e na base está a dívida
soberana, em montante indesejável, submetida ao pagamento de juros usurários
aos nossos credores). Factores que só agora, com o XXI Governo Constitucional,
parece que vão inflectir com a viragem da página que felizmente se anuncia, no
fim de seis meses da governação PS.
Em
conclusão, considerando todo este quadro, a resposta à questão inicialmente posta
só pode ser uma: não tem havido, ao longo da nossa história, e não há, um
contributo verdadeiramente favorável a Portugal da parte da Europa, a servir o
desenvolvimento/modernidade do país, devendo gritar-se bem alto que é
chegado o momento de reconquistar a soberania nacional plena, desprendendo-nos
das amarras que nos prendem à UE e, para o efeito, apagando e esquecendo os
comandos constitucionais referidos e que nos comprometem com a UE.
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