quinta-feira, 18 de agosto de 2016

“Mundo muito mal feito, marquês”



De Júlio Dantas, lera, na adolescência, da estante do meu pai, “A Ceia dos Cardeais”, de que gostara, no contraste entre as histórias amorosas da sua juventude, narradas pelos três protagonistas - um cardeal espanhol, espadachim, um cardeal francês, herói bem falante, e o Cardeal Gonzaga, português, sentimental à boa maneira de um segundo romantismo trágico e lacrimejante, qualquer das narrativas espelho do seu povo, segundo a tradição literária – galanteria francesa, donaire e enfatuamento espanhóis, autenticidade virtuosa na tradição portuguesa. A Internet devolveu-me a história, e revi a questão feita pelos outros dois protagonistas ao cardeal português – «Vossa Eminência o que diz? – O que pensa, Cardeal? – Penso em como é diferente o amor em Portugal» - resposta que parafraseávamos, na juventude, galhofeiramente: “Em ti, meu grande animal», embora sem conhecermos ainda o “Manifesto” de Almada Negreiros, mas refractários a uma literatura de snobismo e igualmente de pieguice pacóvia, no que nos tocava a nós, sempre distintos na humildade da condição e na virtude do sentimento. E todavia, lemos na crónica de António Valdemar que a peça – em um acto - lhe valeu fama e traduções. Nada mais li de Júlio Dantas, nem desejo  ler por, entretanto, ter enveredado por leituras de outros escritores, quer por obrigação, quer por prazer ocasional, bem mais musculadas estas, na racionalidade e dimensão humanística, arredadas do dolicodoce bonitinho e enjoativo de uma literatura fútil e artificiosa.
Mas, se o 1º Modernismo, movimento a que pertencia Almada Negreiros, fora – mais tarde - uma surpresa e um deslumbramento na sua arte provocatória de inversão das estruturas temáticas e artísticas, numa paridade ideológica com o desenvolvimento tecnológico e científico, trazendo realidades progressivamente desestabilizadoras que exerciam sobre os poetas do “Orpheu” - e mais tarde sobre nós - um fascínio, encontrado já na literatura estrangeira, os manifestos virulentos – como o “Anti-Dantas” de Almada – nunca os li senão como uma curiosidade insensata, de total desvergonha e má criação, no ataque directo insolente e desbragado, despejando ódio, um ódio gratuito, tal como se vê hoje em tantas manifestações televisivas, de adeptos do mal pelo mal. Longe, pois, dos textos citados por António Valdemar, como “Bom Senso e Bom Gosto”, contra um Castilho, que a cegueira e a qualidade linguística tornavam alvo da consideração geral, embora o ataque de Antero, sério e educado, lhe mostrasse a necessidade de modernização dos conceitos literários a que o velho mestre se opunha, no seu conservadorismo protector de uma literatura mais que ultrapassada, quando outros caminhos se ofereciam a essa Geração de Setenta que tanto daria que falar.
O desbragamento da linguagem é antigo, já a primitiva comédia clássica o utilizara, para riso dos espectadores, Rabelais, Gil Vicente, igualmente o usaram, mas por intermédio das suas personagens burlescas, quantas vezes, é certo, representativas de figuras reais, para riso franco da plateia ou do leitor, que facilmente as descodificavam. Assim são as personagens do Eça, no riso irónico da crítica indirecta, que não encontramos nos escritos neo-realistas, cujo azedume intervencionista comparamos ao que se processa hoje nos media, em que nem o próprio Ricardo Araújo Pereira escapa a uma confrontação grosseira e malcriada, que não abona a favor do seu espírito.
Este artigo de António Valdemar, mostra, todavia, o alcance de um panfleto tão acutilante, além de revelar o retrato de um homem – Júlio Dantas – bem sórdido no seu oportunismo vivencial, que eu inteiramente desconhecia. Reli o Manifesto de Almada, um dos iniciadores do “vale tudo”, na literatura como na sociedade, esta cada vez mais livre e descontrolada, que vai assassinando todos os valores, sem comedimento, assassinando a própria Terra.
Manifesto Anti-Dantas, atualidade e permanência
António Valdemar, Jornalista e investigador
Público, 12/08/2016
O Manifesto Anti-Dantas, de Almada Negreiros, insere-se na linha de intervenção da geração do Orpheu ao introduzir uma nova literatura e uma nova estética e, ao mesmo tempo, ao proceder à contestação de personalidades consagradas nas instituições oficiais. Publicado há um século — que este ano se completa —, e tendo falecido Júlio Dantas há mais de 50 anos, será legítimo falar em atualidade e permanência de um texto visceralmente panfletário, relacionado com figuras e acontecimentos pontuais, eventualmente sujeito ao esquecimento e à erosão do tempo?
É evidente que Júlio Dantas permanece ligado a uma época e às suas circunstâncias, mas, além disso, constituía um modelo social, cultural e político que não se extinguiu. Já existia antes e continuou a existir depois. Eça de Queiroz já ridicularizara e exautorara o conselheiro Acácio, o Pacheco, o Dr. Margaride, o Gouvarinho, o Steinbroken, o conde de Abranhos, o boticário Carlos e outros símbolos da presunção oficiosa e da mentalidade conservadora. Que, aliás, também, se deparam na Bíblia, no teatro de Plauto, nos autos e nas farsas de Gil Vicente...
Almada Negreiros tinha 23 anos. Encontrava-se na força da vida. Havia sido "diretor artístico" e colaborador do Papagaio Real, semanário monárquico de sátira política. Pertencia, com Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Santa-Rita Pintor, entre outros, ao grupo do Orpheu, que, ao surgir em março de 1915, desencadeou os maiores protestos. Numa crónica na Ilustração Portuguesa, Júlio Dantas fora um dos muitos que execraram o Orpheu, juntando-se aos psiquiatras que consideraram paranoicos os colaboradores da revista.
O Manifesto Anti-Dantas não é, apenas, um ajuste de contas e a escolha de um bode expiatório. Traduz o conflito de gerações e integra-se numa corrente literária e artística com orientação estética de rutura. Em 1913, Fernando Pessoa já se pronunciara contra a poesia de Afonso Lopes Vieira a propósito da publicação de Bartolomeu Marinheiro e, no mesmo texto, não deixou também de se distanciar de Júlio Dantas: "os homens do Portugal de amanhã", "educados na estupidez", "terão por Shakespeare o Sr. Júlio Dantas e por Shelley o Sr. Lopes Vieira".
O pretexto imediato do Manifesto Anti-Dantas resultou da estreia, a 21 de outubro de 1915, no Teatro Ginásio da peça de Júlio Dantas Soror Mariana. Almada era um dos que patearam a peça e, no dia 25, no jornal A Lucta, dirigido por Brito Camacho, reduziu a Soror Mariana a uma "baboseira teatral" e apontou Dantas como um "homem cuja mediocridade inchada de egotismo o levou a comparecer em cena, ao chamamento de meia dúzia de claqueurs, ignorantes e ineptos".
Mas a ofensiva implacável viria no Manifesto. Dantas estava no auge da celebridade. Com a Ceia dos Cardeais projetou-se através da Europa e das Américas e estendeu-se até ao Japão. A Ceia dos Cardeais, logo após a primeira representação, pelos maiores atores, constituiu um sucesso de livraria. Houve cinquenta edições, mais de 200 mil exemplares; traduções nas mais diversas línguas e duzentas e cinquenta imitações e paródias, em Portugal e no Brasil. A última de José Vilhena não sei se já foi publicada.
Além de Júlio Dantas, Almada disparou ataques a muitas outras figuras públicas da literatura, do teatro, da pintura, da escultura e do jornalismo. Contudo, a investida a Júlio Dantas tinha, igualmente, uma forte componente política. Atingia o Júlio Dantas que passara, sem hesitações, de um regime para outro, da Monarquia para a República. A transição política também se refletia na trajetória literária — a ligação ao poder, aos sucessivos governos, às respetivas cúpulas partidárias.
Costumo resumir o êxito de Júlio Dantas através das seguintes peças: A Ceia dos Cardeais, para deslumbrar a família real e ter acesso ao paço; Um Serão nas Laranjeiras, ao pressentir a decomposição e queda da Monarquia; Santa Inquisição, para a I República e agradar a Afonso Costa; Carlota Joaquina, para desmistificar o Integralismo Lusitano; Frei António das Chagas, para o Estado Novo, empenhado na reconciliação do Estado com a Igreja. Em 1945, ao irromper o MUD (e a situação começou a estremecer), Dantas fez uma versão da Antígona. A oposição revia no tirano e detestável Creonte o tirano e detestável Salazar.
Não se registaram sinais de mudança. Júlio Dantas assinou o protesto fabricado na União Nacional e no Diário de Notícias, contra o "obviamente, demito-o" (Salazar), declarado, sem papas na língua, por Delgado, em 1958, na apresentação da candidatura à Presidência da República.
O ponto final das versatilidades políticas e literárias de Dantas verificou-se em 1960. Tinha 86 anos. Já fora substituído na Presidência da Academia por Reynaldo dos Santos. Mas não deixava de intervir. E aceitou subscrever, ao lado dos representantes da oposição democrática, a candidatura de Aquilino Ribeiro para Prémio Nobel da Literatura. Tinha plena consciência de que se tratava de um expediente para conseguir repercussão internacional, de modo a arquivar o processo-crime devido aos ataques cerrados ao regime e ao próprio Salazar no romance Quando os Lobos Uivam. E no âmbito do centenário do Infante D. Henrique, que se comemorava na altura, Salazar avançou com uma amnistia que abrangeu Aquilino e o libertou das picardias do Tribunal Plenário (da acusação inquisitorial do Ministério Público por Lopes de Melo que, após o 25 de abril, ascendeu ao Supremo Tribunal de Justiça), das garras da PIDE, de um julgamento vexatório com pena suspensa ou efetiva.
Por tudo isto, Júlio Dantas foi tudo ou quase tudo o que quis e que é possível um intelectual exercer em Portugal: diretor e professor do Conservatório, comissário do Governo no Teatro Nacional, inspetor superior das Bibliotecas e Arquivos, deputado, dirigente partidário, ministro de várias pastas. Desempenhou, episodicamente, funções de médico da Guarda Municipal em Lisboa, antecessora da Guarda Nacional Republicana. Desejou ser médico da Casa Real, mas não havia lugar vago. Estavam preenchidos por António Lencastre e Thomaz de Mello Breyner.
Ser médico terá facilitado a adesão à República, durante as horas de expectativa revolucionária. Em vez de ir aos banhos de São Paulo, onde estava reunido o futuro governo provisório, com grandes personalidades da Maçonaria, deslocou-se a cavalo à Rotunda, oferecendo os seus serviços clínicos aos militares e aos civis armados da Carbonária. Está referido e documentado por Machado Santos no relatório acerca das fases do processo que conduziu à proclamação da República em 5 de outubro de 1910.
A Júlio Dantas faltou-lhe, apenas, ser Presidente da República, Prémio Nobel e cardeal. Soube adaptar-se às conjunturas políticas. Reunia as condições essenciais. Era filho de um general e sobrinho de outro general. Vestia com gosto. Sabia o que era um smoking e uma casaca. Nunca teve caspa na gola do casaco nem, muito menos, as unhas sujas.
Mas a maior parte dos dirigentes e responsáveis institucionais também o repescava, porque sabia cumprir a liturgia do poder, oficiar o cerimonial do Estado e conduzir o funcionamento de uma academia. Era um ritualista exímio. Um cenógrafo da língua para todas as situações, as mais solenes e as mais insólitas.
Almada, ao fazer a desmontagem dos ecletismos políticos (e faltava assistir a mais 50 anos de oportunismo), pôs o dedo na ferida: "Dantas é um habilidoso e um ciganão, (...) um pantomineiro. Para ter chegado aonde chegou basta não ter escrúpulos, nem morais, nem artísticos, nem humanos. Basta usar o tal sorrisozinho, basta ser muito delicado (...) e ter olhos meigos (...) Basta ser Judas. Basta ser Dantas."
Seja como for, o Manifesto Anti-Dantas, de Almada Negreiros, alertou uma ou duas gerações, a do Orpheu e a da Presença, e mesmo depois disso, para outros Dantas. Antes dele, Castilho foi um Dantas do século XIX. A carta de Antero de Quental Bom Senso e Bom Gosto, publicada, em 1864, contra António Feliciano de Castilho e seus discípulos, não se restringiu à luta de gerações literárias mas à denúncia da promiscuidade do elogio mútuo.
E quantos outros Dantas temos conhecido tão solícitos e ávidos de protagonismo, mas sem a inteligência e a cultura de Dantas? Infelizmente, o que nos tem faltado são manifestos de Almada contra os Dantas, e cartas de Antero contra os Castilhos. Justifica-se, portanto, a atualidade e permanência do Manifesto Anti-Dantas. O panorama que se nos depara é confrangedor: poetas e escritores em santa aliança e sagrado conluio, numa descarada troca de panegíricos. Mas é mais angustiante e deplorável em relação à política, aos partidos e à banca. As palavras incendiárias e as sínteses fulminantes de Almada Negreiros no Manifesto Anti-Dantas começam a ser insuficientes para desmascarar a progressiva confusão de valores e princípios com interesses e negócios.

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