domingo, 21 de agosto de 2016

Os complexos e a arte



Achei curiosa a tese de Reinaldo Paes Barreto sobre as consequências, para a escrita de Eça, de ter sido criado longe da mãe, com os avós paternos, num nascimento marcado pelo preconceito e o repúdio inicial, pelas circunstâncias de ser filho “natural”, como então se dizia e continuou a dizer durante muitos mais anos, só que já não como filho da mãe, mas filho de pai “incógnito” -  bem distanciado dos tempos míticos, em que, como acontecera com Baco, se podia acabar a gestação na coxa do pai Júpiter, por morte da mãe Sémele, assim provando a superioridade e a consciência do amor, nos mitos. Creio que foi o cristianismo que ajudou à criação dessas designações punitivas dos comportamentos menos castos, que tornaram as mães solteiras marcadas pelo ferrete da ignomínia popular.
Revi ontem no Canal Memória, “A filha de Ryan”, e uma vez mais me deixei seduzir e comover com o extraordinário desempenho dos vários protagonistas de uma história irlandesa independentista, e notei a semelhança entre os povos, na questão do preconceito e da crueldade populares na estigmatização dos amantes prevaricadores, como se veria em cenas posteriores na segunda guerra, para com as mulheres apaixonadas pelo inimigo alemão, às quais se rapavam as cabeças para além de outros desmandos. Também Júlio Dinis, que "escreveu leve", segundo Eça, não deixaria de focar o tema, no conto “Os novelos da tia Filomena”, novelos mais tarde decifrados, à morte desta, como o dinheiro enviado à mãe pela filha prevaricadora, e que a mãe jamais utilizara, na irredutibilidade do seu orgulho que a fizera viver infeliz, tornando igualmente infeliz a filha. São muitas as histórias – reais e fictícias. Eu própria escrevi, nos anos setenta, um texto - «O pecado» (in “Páginas Alegres e não”, 1973) - de que transcrevo alguns passos das minhas revoltas ainda juvenis, sobre as convenções sociais no caso das mães solteiras, naqueles tempos em que a luta pela emancipação das mulheres provocava sorrisos escarninhos.
«Era solteira e teve um filho. Criava-o com amor, como se nesse filho procurasse o  elo  da cadeia que ainda a prendia à vida, depois do seu «pecado». Porque, apesar da alegria comovida causada pelo pequenino ser apenas dependente dela, como reflexo do desprezo da família e conhecidos, passou a viver acabrunhada, deixando-se vencer pelos atavismos e convencionalismos de uma sociedade mais pronta sempre a atacar do que a defender e lançando geralmente o dedo acusador sobre o fraco para melhor esconder as suas próprias fraquezas. E ela bem via essa espécie de mistificação que a revoltava, mas fora criada dentro dos bons princípios, também ela criticara as que haviam escorregado na estrada lamacenta e aceitava, pois, humildemente as críticas, viessem embora, dos menos “idóneos”.
Breve, a ideia de “pecado avassalou-a e achou merecido o castigo imposto pela sociedade ao votá-la ao desprezo, tal como o fizera a 
…. A vida dela seria uma luta, um esticar da magra bolsa para sobreviver, e isso desde o nascimento do seu bebé para justificar o qual tivera que apresentar o atestado médico comprovativo de doença, pois o Estado não lhe concedera os trinta dias estipulados para as mulheres casadas legalmente. ….
Eu admirava-a, mas detestava ouvi-la falar em “pecado”. Porque ter um filho não é pecado. Seria negar a natureza e o dom divino de criar considerar um filho um «pecado». E o mais espantoso ainda é a boa fé, ou antes a ingenuidade do homem, ao incriminar a mulher que corajosamente se atreveu a deixar sobreviver o fruto amado dos seus amores.
Pecado um filho? Pecado é atraiçoar, é ser mesquinho, é deixar que a inveja nos corroa, é ser falso e desonesto, ser vaidoso e ser injusto.
Um filho é um milagre a cada passo renovado….
Não, um filho não é pecado.»

Calculo que não tenha sido fácil a vida da Srª D. Emília de Resende, a braços com um problema que nem com o casamento, poucos anos depois, com o pai de Eça, delegado em Viana do Castelo - José Maria Teixeira de Queiroz - seria de imediato solucionado para o pequeno José Maria Eça de Queirós, nascido em 1845.
É interessante a tese de Reinaldo Passos Barreto sobre as consequências, na arte literária de Eça, dos seus traumas de infância, de filho mais ou menos afastado do ambiente familiar inicial dos pais e irmãos. Mas  não sei se o apoio de Freud e o seu divã psicanalítico, de alguns anos posterior à morte de Eça em 1900 (16/8) explicaria todas essas conclusões. Primeiro, porque não é verdadeira a tese de que o universo feminino seja todo ele transgressor em Eça – a prima de José Fernandes, por exemplo, Joana, futura mulher de Jacinto - será descrita como uma jovem simples, natural, risonha e doce, que transformará o “meu príncipe” morador no palácio 202 dos Campos Elísios, desencantado da vida - por “sofrer de fartura” -  no feliz castelão do Castelo da Grã-Ventura, em Tormes, adaptado agora a um viver estável e são. É certo que “A Cidade e as Serras” é uma obra dos últimos anos, publicada postumamente, na desistência da garra lutadora de  modernização do país, e reveladora de um real afecto pela terra portuguesa e a sua gente. Mas mesmo as figuras femininas dos seus romances anteriores são transgressoras, julgo eu, na peugada de outras temáticas e outras correntes literárias – o naturalismo/realismo - apreendidas do estrangeiro, as quais inserem a mulher num mesmo contexto social ligado à “bête humaine”, tal como o homem. Não vejo tanto um caso de misoginia, mas de perscrutação social e seguidismo literário.
Quanto à obsessão pela fixação dos endereços, dos habitats dos protagonistas, eu vejo-o acima de tudo como um requinte de pormenor, que se não faz só ao nível da localização espácio-temporal, mas também dos mobiliários, louças, objectos de arte, descritivo dos interiores ou das paisagens, dos tiques das personagens, não, contudo, de verdadeiros heróis de acção mas de tipos sociais dos seus apanhados caricaturais, com algumas excepções. A perspectiva da vista de Sintra e do Palácio da Pena no capítulo VIII d’ Os Maias ou a subida da serra dos dois amigos para Tormes, são páginas de um encantamento enorme, como o é o descritivo do “arroz com favas” na casa de Tormes, ou tantas outras iguarias, como as que se apresentaram à tentação da gula, no Santo Onofre, prova do seu dom de observação, cultura, naturalmente, e fantasia estética de um autêntico virtuose da palavra escrita.
Quanto ao facto de só começar a contar de si “desde Coimbra”, não estranho. É a época da sua transformação em adulto, da sua formação e percurso viageiro, enriquecedores do seu espírito de génio e de cultura, como o tiveram esses outros como Camões, Pessoa, Miguel Torga… Da infância, conquanto encontremos imagens de infinita ternura, como n’ O Suave Milagre,  a “Rosicler” filha de Maria Eduarda Maia, será encarada pelo olho crítico de Ega/Eça como uma criança  espevitada e impudente”,  nas suas respostas de vivacidade mimada, fruto do mesmo ambiente social pervertido do mundo adulto.
Não vejo, pois, a sátira queirosiana como fruto de traumas e complexos, mas como motivos de uma arte em transformação, cultivada por um artista de génio.

Eça e a falta do divã de Freud
Reinaldo Paes Barreto , Vice-Presidente da TurisRio
Público, 16/08/2016
Faz hoje 116 anos que morreu, em Paris, aos 54 anos, Eça de Queiroz. Tinha algum dinheiro, mas estava longe de ser rico. Vivia do que lhe vinha de escritor, sempre na jugular dos editores e de diplomata, o que o delicioso trecho de sua lavra, extraído de um ensaio do embaixador português Francisco Seixas da Costa, traduz melhor do que um contracheque.
"Ontem, na rua, caiu inanimado de fome um indivíduo bem trajado. Conduzido para uma botica próxima, o infeliz revelou toda a verdade. Era embaixador de Portugal. Deram-lhe, logo, bifes. E o desgraçado sorria, com lágrimas nos olhos...”
Morreu moço, provavelmente de um câncer no estômago, o órgão de choque de um gourmet-total.  De guardanapo no pescoço ou caneta no papel. A sequência do peixe entalado no elevador de carga da mansão do Príncipe da Grã-Ventura, nos Champs Élysées, poderia ter sido filmada pelo Woody Allen. As descrições dos banquetes no Ramalhate, dos regabofes no Grémio, ou da sopa da Vicença, em Tormes, estariam em vídeo no YouTube.
No entanto, a sua outra característica — a obsessão — o fazia ter pavor de engordar. Acabava de comer e ficava de pé, ou então andava quilômetros. Ou seja: tudo, menos terminar como o seu caricato Damaso Salcede, gordo, néscio, com as calças a estalar nas coxas...
Mas a obsessão mais madrasta (com trocadilho) veio da primeira infância: a sua origem. O menino José Maria foi registrado como de “mãe ignota”, em uma sociedade agrária, preconceituosa, carola e atrasada, do interior de Portugal. Eça nasceu num vilarejo de pescadores de sardinha e carapau, na remota lua em sagitário de novembro de 1845. 
Eu não passo de um pobre homem da Póvoa do Varzim.
Três consequências.
Primeira: a ausência de uma organização familiar materializou-se, quem sabe, na fixação de endereços.Todos os seus personagens têm endereço, com nome da rua, número, etc. Endereços esses que às vezes atuam como personagens, O Ramalhate, por exemplo;
Segunda: Eça só começa a contar de si a partir de Coimbra, onde se formou com vagares.
Terceira, e a mais sofrida: inconscientemente tornou-se um misógino.
A catarse se realizou a partir do perfil de todas as suas personagens femininas. Todas elas transgressoras. O que varia é o grau, que vai da beata que exorciza os seus pesadelos eróticos, à dissimulada, à frívola, à chantasista, à adúltera... à incestuosa.
Um corte para o meu ponto de vista.
Se Eça tivesse tido acesso à psicanálise, cuja prática terapêutica da metade do século XX e em diante passou a estar disponível para a grande maioria das pessoas, teria aprendido a lidar com mais resignação "à dor de viver",  projetando menos a (sua) mãe solteira nas demais “mulheres de seus romances”?
Mas essa solução, cronologicamente, seria impossível. Eça viveu sua vida plena entre 1865 e 1900, ano de sua morte (16 de agosto). E Freud (11 anos mais velho) escreveu o seu primeiro livro neste mesmo 1900.  Um discípulo seu, Carl Jung, formou-se em 1901. E Lacan, por sua vez, nasceu em 1901.
Estranhas descoincidências.
Duas atenuantes. Como ele foi, antes de mais nada, um crítico feroz dos costumes portugueses, o aviltamento das suas mulheres não é só vingança do filho natural, mas uma denúncia do machismo corporativo dos homens (só daquele tempo?). 
Finalmente e segundo o meu amigo, médico e psicanalista Luiz Alberto Py, as neuroses não retiram ao gênio genialidade. Alteram o foco. Eça continuaria sendo, como foi, o mais fulgurante romancista português do século XIX mas, possívelmente, as améliazinhas e marias eduardas seriam menos infratoras. Quem iria para o purgatório seria o reino, o governo, o ensino, a Igreja e o Portugal a quem Neptuno e Marte não mais obedeciam...
Mas o Padre Amaro continuaria no inferno.

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