Achei
curiosa a tese de Reinaldo Paes
Barreto sobre as consequências, para
a escrita de Eça, de ter sido criado longe da mãe, com os avós paternos, num
nascimento marcado pelo preconceito e o repúdio inicial, pelas circunstâncias
de ser filho “natural”, como então se dizia e continuou a dizer durante muitos
mais anos, só que já não como filho da mãe, mas filho de pai “incógnito” - bem distanciado dos tempos míticos, em que,
como acontecera com Baco, se podia acabar a gestação na coxa do pai Júpiter,
por morte da mãe Sémele, assim provando a superioridade e a consciência do amor,
nos mitos. Creio que foi o cristianismo que ajudou à criação dessas designações
punitivas dos comportamentos menos castos, que tornaram as mães solteiras marcadas
pelo ferrete da ignomínia popular.
Revi ontem no Canal Memória,
“A filha de Ryan”, e uma vez mais me deixei seduzir e comover com o
extraordinário desempenho dos vários protagonistas de uma história irlandesa
independentista, e notei a semelhança entre os povos, na questão do preconceito
e da crueldade populares na estigmatização dos amantes prevaricadores, como se
veria em cenas posteriores na segunda guerra, para com as mulheres apaixonadas
pelo inimigo alemão, às quais se rapavam as cabeças para além de outros
desmandos. Também Júlio Dinis, que "escreveu leve", segundo Eça, não deixaria de focar o tema, no conto “Os
novelos da tia Filomena”, novelos mais tarde decifrados, à morte desta,
como o dinheiro enviado à mãe pela filha prevaricadora, e que a mãe jamais
utilizara, na irredutibilidade do seu orgulho que a fizera viver infeliz,
tornando igualmente infeliz a filha. São muitas as histórias – reais e
fictícias. Eu própria escrevi, nos anos setenta, um texto - «O pecado» (in “Páginas
Alegres e não”, 1973) - de que transcrevo alguns passos das minhas revoltas
ainda juvenis, sobre as convenções sociais no caso das mães solteiras, naqueles
tempos em que a luta pela emancipação das mulheres provocava sorrisos
escarninhos.
«Era solteira e teve um filho. Criava-o com amor, como
se nesse filho procurasse o elo da cadeia que ainda a prendia à vida, depois
do seu «pecado». Porque, apesar da alegria comovida causada pelo pequenino ser
apenas dependente dela, como reflexo do desprezo da família e conhecidos,
passou a viver acabrunhada, deixando-se vencer pelos atavismos e
convencionalismos de uma sociedade mais pronta sempre a atacar do que a defender
e lançando geralmente o dedo acusador sobre o fraco para melhor esconder as
suas próprias fraquezas. E ela bem via essa espécie de mistificação que a
revoltava, mas fora criada dentro dos bons princípios, também ela criticara as
que haviam escorregado na estrada lamacenta e aceitava, pois, humildemente as
críticas, viessem embora, dos menos “idóneos”.
Breve, a ideia de “pecado avassalou-a e achou merecido o
castigo imposto pela sociedade ao votá-la ao desprezo, tal como o fizera
a
…. A vida dela seria uma luta, um esticar da
magra bolsa para sobreviver, e isso desde o nascimento do seu bebé para
justificar o qual tivera que apresentar o atestado médico comprovativo de
doença, pois o Estado não lhe concedera os trinta dias estipulados para as
mulheres casadas legalmente. ….
Eu admirava-a, mas detestava ouvi-la falar em “pecado”.
Porque ter um filho não é pecado. Seria negar a natureza e o dom divino de
criar considerar um filho um «pecado». E o mais espantoso ainda é a boa fé, ou
antes a ingenuidade do homem, ao incriminar a mulher que corajosamente se
atreveu a deixar sobreviver o fruto amado dos seus amores.
Pecado um filho? Pecado é atraiçoar, é ser mesquinho, é
deixar que a inveja nos corroa, é ser falso e desonesto, ser vaidoso e ser
injusto.
Um filho é um milagre a cada passo renovado….
Não, um filho não é pecado.»
Calculo que não tenha sido fácil
a vida da Srª D. Emília de Resende, a braços com um problema que nem com o
casamento, poucos anos depois, com o pai de Eça, delegado em Viana do Castelo -
José Maria Teixeira de Queiroz - seria de imediato solucionado para o
pequeno José Maria Eça de Queirós, nascido em 1845.
É interessante a tese de Reinaldo
Passos Barreto sobre as consequências, na arte literária de
Eça, dos seus traumas de infância, de filho mais ou menos afastado do ambiente
familiar inicial dos pais e irmãos. Mas não sei se o apoio de Freud e o seu divã
psicanalítico, de alguns anos posterior à morte de Eça em 1900 (16/8)
explicaria todas essas conclusões. Primeiro, porque não é verdadeira a tese de
que o universo feminino seja todo ele transgressor em Eça – a prima de José
Fernandes, por exemplo, Joana, futura mulher de Jacinto - será descrita como uma jovem simples,
natural, risonha e doce, que transformará o “meu príncipe” morador no palácio
202 dos Campos Elísios, desencantado da vida - por “sofrer de fartura” - no feliz castelão do Castelo da Grã-Ventura,
em Tormes, adaptado agora a um viver estável e são. É certo que “A Cidade e as
Serras” é uma obra dos últimos anos, publicada postumamente, na desistência da
garra lutadora de modernização do país,
e reveladora de um real afecto pela terra portuguesa e a sua gente. Mas mesmo
as figuras femininas dos seus romances anteriores são transgressoras, julgo eu,
na peugada de outras temáticas e outras correntes literárias – o naturalismo/realismo
- apreendidas do estrangeiro, as quais inserem a mulher num mesmo contexto
social ligado à “bête humaine”, tal como o homem. Não vejo tanto um caso de
misoginia, mas de perscrutação social e seguidismo literário.
Quanto
à obsessão pela fixação dos endereços, dos habitats dos protagonistas, eu
vejo-o acima de tudo como um requinte de pormenor, que se não faz só ao nível
da localização espácio-temporal, mas também dos mobiliários, louças, objectos
de arte, descritivo dos interiores ou das paisagens, dos tiques das personagens,
não, contudo, de verdadeiros heróis de acção mas de tipos sociais dos seus
apanhados caricaturais, com algumas excepções. A perspectiva da vista de Sintra e do Palácio da Pena
no capítulo VIII d’ Os Maias ou a subida da serra dos dois amigos para Tormes,
são páginas de um encantamento enorme, como o é o descritivo do “arroz com
favas” na casa de Tormes, ou tantas outras iguarias, como as que se
apresentaram à tentação da gula, no Santo Onofre, prova do seu dom de observação,
cultura, naturalmente, e fantasia estética de um autêntico virtuose da palavra
escrita.
Quanto ao facto de só
começar a contar de si “desde Coimbra”, não estranho. É a época da sua
transformação em adulto, da sua formação e percurso viageiro, enriquecedores
do seu espírito de génio e de cultura, como o tiveram esses outros como Camões,
Pessoa, Miguel Torga… Da infância, conquanto encontremos imagens de infinita
ternura, como n’ O Suave Milagre, a “Rosicler” filha de Maria Eduarda Maia, será
encarada pelo olho crítico de Ega/Eça como uma criança “espevitada e impudente”, nas suas respostas de vivacidade mimada, fruto
do mesmo ambiente social pervertido do mundo adulto.
Não vejo, pois, a sátira
queirosiana como fruto de traumas e complexos, mas como motivos de uma arte em
transformação, cultivada por um artista de génio.
Eça
e a falta do divã de Freud
Reinaldo Paes Barreto , Vice-Presidente da
TurisRio
Público, 16/08/2016
Faz hoje 116 anos que morreu, em Paris, aos 54 anos, Eça
de Queiroz. Tinha algum dinheiro, mas estava longe de ser rico.
Vivia do que lhe vinha de escritor, sempre na jugular dos editores e de
diplomata, o que o delicioso trecho de sua lavra, extraído de um ensaio do
embaixador português Francisco Seixas da Costa, traduz melhor do que um
contracheque.
"Ontem,
na rua, caiu inanimado de fome um indivíduo bem trajado. Conduzido para uma
botica próxima, o infeliz revelou toda a verdade. Era embaixador de Portugal.
Deram-lhe, logo, bifes. E o desgraçado sorria, com lágrimas nos olhos...”
Morreu
moço, provavelmente de um câncer no estômago, o órgão de choque de um
gourmet-total. De guardanapo no pescoço ou caneta no papel. A sequência
do peixe entalado no elevador de carga da mansão do Príncipe da Grã-Ventura,
nos Champs Élysées, poderia ter sido filmada pelo Woody Allen. As descrições
dos banquetes no Ramalhate, dos regabofes no Grémio, ou da sopa da Vicença, em
Tormes, estariam em vídeo no YouTube.
No
entanto, a sua outra característica — a obsessão — o fazia ter pavor de
engordar. Acabava de comer e ficava de pé, ou então andava quilômetros. Ou
seja: tudo, menos terminar como o seu caricato Damaso Salcede, gordo, néscio,
com as calças a estalar nas coxas...
Mas
a obsessão mais madrasta (com trocadilho) veio da primeira infância: a sua origem.
O menino José Maria foi registrado como de “mãe ignota”, em uma sociedade
agrária, preconceituosa, carola e atrasada, do interior de Portugal. Eça nasceu
num vilarejo de pescadores de sardinha e carapau, na remota lua em sagitário de
novembro de 1845.
Eu
não passo de um pobre homem da Póvoa do Varzim.
Três
consequências.
Primeira:
a ausência de uma organização familiar materializou-se, quem sabe, na fixação
de endereços.Todos os seus personagens têm endereço, com nome da rua, número,
etc. Endereços esses que às vezes atuam como personagens, O Ramalhate, por
exemplo;
Segunda:
Eça só começa a contar de si a partir de Coimbra, onde se formou com vagares.
Terceira,
e a mais sofrida: inconscientemente tornou-se um misógino.
A
catarse se realizou a partir do perfil de todas as suas personagens femininas.
Todas elas transgressoras. O que varia é o grau, que vai da beata que exorciza
os seus pesadelos eróticos, à dissimulada, à frívola, à chantasista, à
adúltera... à incestuosa.
Um
corte para o meu ponto de vista.
Se
Eça tivesse tido acesso à psicanálise, cuja prática terapêutica da metade do
século XX e em diante passou a estar disponível para a grande maioria das
pessoas, teria aprendido a lidar com mais resignação "à dor de
viver", projetando menos a (sua) mãe solteira nas demais “mulheres
de seus romances”?
Mas
essa solução, cronologicamente, seria impossível. Eça viveu sua vida plena
entre 1865 e 1900, ano de sua morte (16 de agosto). E Freud (11 anos mais
velho) escreveu o seu primeiro livro neste mesmo 1900. Um discípulo seu,
Carl Jung, formou-se em 1901. E Lacan, por sua vez, nasceu em 1901.
Estranhas
descoincidências.
Duas
atenuantes. Como ele foi, antes de mais nada, um crítico feroz dos costumes
portugueses, o aviltamento das suas mulheres não é só vingança do filho
natural, mas uma denúncia do machismo corporativo dos homens (só daquele
tempo?).
Finalmente
e segundo o meu amigo, médico e psicanalista Luiz Alberto Py, as neuroses não
retiram ao gênio genialidade. Alteram o foco. Eça continuaria sendo, como foi,
o mais fulgurante romancista português do século XIX mas, possívelmente, as
améliazinhas e marias eduardas seriam menos infratoras. Quem iria para o
purgatório seria o reino, o governo, o ensino, a Igreja e o Portugal a quem
Neptuno e Marte não mais obedeciam...
Mas
o Padre Amaro continuaria no inferno.
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