sábado, 13 de agosto de 2016

Quo usque tandem abutere, Catilina, patientia nostra?




A Internet informa que José Pacheco Pereira está filiado no PSD, embora a sua alma continue a arrastá-lo para as ideologias que o tornaram biógrafo de Álvaro Cunhal e que o fazem arrasar figuras que lhe deveriam merecer apoio, tais como Pedro Passos Coelho e, agora, Marcelo Rebelo de Sousa, o objecto do seu ataque no texto que segue, já em segunda parte. Durante os míseros quatro anos da governação de Passos Coelho – e digo míseros, porque para terem efeitos relevantes na nação seriam necessários, pelo menos, mais outros tantos, que, de resto, lhe foram usurpados, por manobras matemáticas deficientes, dos nossos Pedro Nunes de pacotilha, de que Pacheco Pereira foi orientador-mor - nunca Pacheco Pereira deixou de o cilindrar, de todas as maneiras e feitios, rebaixando-o a ponto de introduzir – ele e os seus camaradas de apoio, (conquanto as origens aristocráticas de Pacheco Pereira que remontam ao medievo, também segundo a informação da Internet, refutem tais familiaridades terminológicas) – a ponto de introduzir novos esquemas provando que a superioridade de votos significa derrota, mas tudo isso já passou à história. Agora põe-se o problema de uma Europa que não exerceu sobre nós as sanções esperadas e o aristocrático Pacheco Pereira, ao invés de lhe apreciar o gesto, como fez Marcelo, indigna-se e informa que o facto se deve a uma viragem de posicionamento dos países pobrezinhos e pedinchas, que, pelo clamor indignado e altivo dos apoiantes de esquerda exigem referendos e mostram – sem medos! – quanto a nova Europa, de irregularidade comportamental em relação aos primitivos propósitos da União Europeia, não está ali para apoiar os pobres mas para se defender deles, o que está errado. O governo anterior, de Passos e Portas, tudo fez para ir saldando a dívida, mas isso foi mau porque empobreceu o país e as gentes, e provou que somos um povo que se rebaixa, sempre de mão estendida, embora a de Passos se estendesse para pagar a dívida como nos competia, e o país estivesse já a erguer-se na confiança de povos investidores.
Nunca, que me lembre, Pacheco Pereira referiu a nobreza de comportamento do governo do PSD-CDS, no esforço ingente de livrar o país da dívida deixada por Sócrates, à custa de muitos sacrifícios de todos, de uma austeridade que pouco a pouco ia desaparecendo, como desapareceu o jugo do FMI, de visitas macabras e imposições. Fundamental, para ele e os apaniguados – de pacotilha – seria que se continuasse a mamar da vaca europeia, há muito que isso está dito, vamos a ver se vai continuar a pegar, se bem que Pacheco Pereira, como os mais dessa esquerda, achem que não precisamos da Europa, contrariamente à opinião de Marcelo e da maioria, incluindo o PS.  Mas a economia espanhola cresce e a nossa estagnou e vai descer, com as teorias e práticas do actual governo que não se rebaixa e aponta altivamente os seus direitos a uma reformulação da dívida.
O que não desce é a verborreia contumaz nem de Pacheco Pereira, nem dos parceiros de uma esquerda ingénua que tão bem desembucha direitos.
Quanto a Pacheco Pereira, tão estudioso, tão bem falante, tão superior, porque não abranda a sua sanha contra o homem determinado do governo anterior - porque é dele que fala quando se dirige a Marcelo, num dirigismo de opinião que revela inexplicável malquerença?
Lembrei-me da primeira Catilinária de Cícero, que encontrei na Internet, com a respectiva tradução, que aqui transponho, não para desfeitear Pacheco Pereira, mas  para o homenagear, simbolicamente, com um clássico que lhe serviu de exemplo nas suas verrinas incansáveis, que, apesar de tudo, são modelo de uma oratória ou de um articulado que enriquece o nosso país. Não devem desaparecer. Poderiam, sim, tornar-se mais ponderadas. Eticamente falando.

Até quando, Catilina, abusarás da nossa paciência? Por quanto tempo a tua loucura há de zombar de nós? A que extremos se há de precipitar a tua desenfreada audácia? Nem a guarda do Palatino, nem a ronda noturna da cidade, nem o temor do povo, nem a afluência de todos os homens de bem, nem este local tão bem protegido para a reunião do Senado, nem a expressão do voto destas pessoas, nada disto conseguiu perturbar-te? Não te dás conta que os teus planos foram descobertos? Não vês que a tua conspiração a têm já dominada todos estes que a conhecem? Quem, dentre nós, pensas tu que ignora o que fizeste na noite passada e na precedente, onde estiveste, com quem te encontraste, que decisão tomaste? Oh tempos, oh costumes!

Europa vista pelo Presidente da República – (2) O lado de dentro
Público, 30/07/2016
Voltando à intervenção do Presidente da República há duas semanas e acrescentando-lhe várias outras declarações entretanto feitas sobre a mesma matéria — Marcelo produz declarações a um ritmo, digamos, de forma eufemística, acelerado —, vamos agora ver o “lado de dentro” dessas declarações, ou seja, o que elas revelam sobre Portugal e a União. Este é, aliás, o aspecto pior dessas declarações, visto que Marcelo acaba por ser o porta-voz do atentismo voluntarista que explica por que razão a nossa consciência crítica e a nossa vontade cívica soçobram face àquilo que hoje a Europa é contra os interesses nacionais, insisto, contra os interesses nacionais.
Eu sou mais europeísta do que eles, porque estou consciente do caminho para o desastre que se está a seguir e mais próximo da Europa dos fundadores, que de há muito renegaram. E, sim, o facto de não haver sanções não justifica nenhum dos elogios que estão a ser feitos à União, porque eles assentam numa análise asséptica das razões por que não houve sanções.
O facto de não haver sanções foi o resultado de um combate político que se fez exactamente contra a Europa dos europeístas, em vez da atitude de submissão que era e é a norma. Se há mérito, não é da Europa das “regras”, mas do Governo português, que a contestou, mesmo que não o diga. Este combate travado pela primeira vez por um governo do lado débil do Sul é em si uma novidade, mas está longe de significar uma mudança qualitativa da União.
Se este sucesso tem continuidade, é o que se vai ver, espero que sim, mas duvido que tenha, em particular pela reafirmação do garrote do Tratado Orçamental, um instrumento contra o desenvolvimento económico dos países da Europa que mais precisam de alguma folga prudente, consistente mas continuada. Aliás, é com ironia que vejo o FMI juntar-se aos perigosos esquerdistas que falavam da reestruturação da dívida e do desastre que foi o programa da troika e, por maioria de razão, o modo como foi aplicado em Portugal. O recente documento do FMI é um libelo contra as políticas do Tratado Orçamental impostas pelo Eurogrupo e apoiadas com entusiasmo pelo Governo PSD-CDS, que queria, de forma pouco disfarçada, que Portugal sofresse sanções... pela política de 2016.
Usar o facto de não ter havido sanções para crer em intervenções avulsas, do Presidente, do ministro de Negócios Estrangeiros e até de dirigentes europeístas de partidos como o Livre, pretender que isso significa  que a Europa afinal funciona “bem” e os que a criticam não tem razão é mais uma cegueira a acrescentar a muitas outras que se repetem há quinze anos.
Aliás, se, nesta matéria, só houvesse direito a falar caso se tivesse acertado nalguma coisinha nestes últimos anos, nenhum europeísta teria sequer a possibilidade de dizer alguma coisa. Em democracia, há o direito de errar, mas a credibilidade dos europeístas é muito escassa. Desde pelo menos o célebre discurso de Joschka Fischer de 2000, o caminho é errado, só tem conduzido a desastres sobre desastres e falar de cegueira tem todo o sentido.
A cegueira de ter contribuído para o enfraquecimento da Comissão em detrimento do fortalecimento do Parlamento e do Conselho, a cegueira da Constituição Europeia vencida pelo “canalizador polaco”, a cegueira das discussões egoístas do Tratado de Nice, aquele que está debaixo do tapete, a cegueira de um tratado como o de Lisboa que não serviu para nada nestes anos de crise, a cegueira de ir tornando a cada dia que passa a União mais desigual, mais reduzida a directórios e por fim a um só poder, a cegueira da gestão do euro, a cegueira de ter tornado a solidariedade entre os países mais ricos a favor dos mais pobres num conflito entre diligentes e preguiçosos, a cegueira de ter aberto a crise das dívidas soberanas, a cegueira e, pior do que isso, a política da canhoneira, com a Grécia, a cegueira do Tratado Orçamental, a cegueira criminosa de querer ter uma política externa agressiva sem forças armadas, na Ucrânia, na Líbia, na Síria, a cegueira de engolir uma burocracia cada vez mais arrogante, que usa e abusa das fugas de informação, a cegueira de aceitar presidentes da Comissão cada vez mais fracos, — em todos estes passos houve quem criticasse e dissesse quais eram as consequências. Foram isolados como reaccionários face à marcha progressista da engenharia política europeia, apelidados de soberanistas (agora é um insulto), nacionalistas e extremistas. De cada vez que ganham um referendo, são apelidados de populistas, face à elite das elites iluminadas, que os perde. E as consequências previstas verificaram-se todas.
Voltando ao discurso presidencial, um dos seus pontos-chave é o ataque à proposta de referendo que foi feita pelo BE, caso houvesse sanções. O BE andou para trás e para a frente com a proposta, deixou-se enredar nas críticas do Presidente e do PCP sobre a não possibilidade de haver referendos a tratados internacionais. Claro que a questão não precisa de ser constitucional ou a pergunta ser sobre um tratado, até porque há muitas maneiras de perguntar ao povo português sobre a Europa sem violar a Constituição. Marcelo deve conhecer pelo menos vinte.
O problema é outro: é a demonização do referendo cuja proposta, seja sob que forma for, é considerado quase uma proposta criminosa e antinacional, própria de fascistas, nacionalistas, comunistas e diversos extremistas. É irónico que Marcelo seja hoje um porta-voz dessa demonização, ele que fez parte do partido com mais tradição referendária e que propôs ele próprio pelo menos um referendo. É irónico, insisto, que seja alguém do PSD que acha que fazer um referendo é quase um crime, quando uma das reivindicações históricas do PPD e depois do PSD foi a realização de um referendo em matérias constitucionais, e que homens como Alberto João Jardim regularmente proponham um referendo, na tradição, aliás, de Sá Carneiro. E que se esqueça que não passou muito tempo desde que PSD e PS foram a votos com a promessa de levar a referendo qualquer novo tratado europeu que implicasse alterações na Constituição, promessa que abandonaram pela porta baixa quando os franceses queriam ultrapassar o chumbo da Constituição, para fazer a fraude que é incluir no Tratado de Lisboa aquilo que tinha sido rejeitado na França e na Holanda.
Este aspecto da crise democrática da União, que desde essa altura não fez mais do que se agravar, é algo de que os europeístas não falam nem têm em consideração. E bastava isso para olharmos com um olhar muito crítico a actual União, entregue a um efectivo poder de uma só nação e dos seus aliados, ou seja, exactamente aquilo que os fundadores da Europa não queriam que acontecesse.
A perda de poderes dos parlamentos nacionais e dos governos mais frágeis da União, substituídos pela burocracia de Bruxelas, aumentou insidiosamente na última década e meia sob um pano de fundo doloso e de mentira. Sobre isso os europeístas entregaram a reivindicação soberana aos extremos, coisa para que nunca ninguém lhes deu mandato, nem tem qualquer sentido no modelo igualitário com que se construiu a União.
Aliás, por que razão é que pensam que a reivindicação referendária tem crescido, a não ser pela consciência crescente de que o bloco PPE-PSE que domina a Europa retira o pluralismo da discussão política da União para o entregar a maiorias pouco sadias, e de costas cada vez mais voltadas para a opinião popular? É por saberem que partidos como o PS e o PSD, assim como os seus congéneres europeus, não entram em conta com o crescente sentimento hostil à União Europeia, e que nenhuma discussão parlamentar exprime os seus ponto de vista a não ser rotulando-os de nacionalistas, extremistas, quiçá fascistas, que a pressão referendária aumenta.
À medida que a democracia nacional é sugada pela burocracia de Bruxelas e pelos países mais poderosos, que os parlamentos enfraquecidos e subordinados se transformam em entidades vazias, apenas resta às pessoas a exigência referendária. Se a democracia parlamentar funcionasse como devia, representando as opiniões reais e não directórios partidários, e o Parlamento tivesse os poderes de dizer que não em muitas matérias em que foi desapossado desse poder sub-repticiamente, a pressão referendária era menor.
Foi o que aconteceu no Reino Unido, é o que acontece por regra quando se leva ao voto popular medidas propostas pela União, que ou chumbam, ou passam ao milímetro quando não tem de se repetir referendos até dar o resultado “certo”. A deslegitimação democrática do processo europeu é a fonte da pressão referendária.
E não, senhor Presidente, Portugal não “se sente bem na União Europeia”.

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