segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Não mais “A Encomendinha” de Trindade Coelho


Eu até acredito que quem faz a sua escolaridade inicial com a família pode conseguir melhores resultados do que os alunos sujeitos a cargas horárias distribuídas por grande espaço do dia a professores com maior ou menor competência pedagógica e de empatia, a turmas com uma massa escolar extremamente diversificada, num laxismo de turbulência inconcebível, dificilmente propiciador de estímulo para a aquisição de conhecimento ou mesmo para uma saudável competitividade. Ainda nestas férias, por alturas dos exames, contou-me a minha filha sobre o exame oral de uma aluna preparada em casa, realmente prestando boas provas, mas extremamente convicta da sua importância, ao considerar com desprezo, para alguém, que a mãe dela sabia mais do que as professoras da escola onde, humilhantemente, era sujeita às mesmas provas dos alunos da escola que não frequentara. Como diz João Taborda da Gama, um acompanhamento inteligente em casa por pais qualificados e estimulando a leitura como meio mais eficaz para o desenvolvimento cultural e mental é muito válido. Ainda bem que agora as Ls. já poderão desenvolver os seus raciocínios e destrezas linguísticas no remanso disciplinado, sem o afobamento dos meninos que têm que se levantar mais cedo para irem ser deixados na escola pela mãe ou pelo pai que vão para os seus serviços. Oxalá haja muitas Ls. nessas condições, orientadas pelas mães que não precisam de trabalhar fora, os pais ganhando o suficiente para prover às necessidades da família, a casa e o seu recheio já pagos, no melhor dos mundos de bom gosto e sabedoria.
Não deixo de ter pena das crianças educadas em casa, sem os recreios para a brincadeira e a comunicação, mas convenho que, se se arranjarem amiguinhos para os espaços de brincadeira, as Ls. têm todas as hipóteses de fazer um bom percurso escolar nas calmas. Nos países com maior nível cultural e económico, as mães ficam em casa nos primeiros tempos para acompanharem melhor a educação dos filhos. Dificilmente isso poderia passar-se connosco, dados os condicionalismos conhecidos. Lembro-me duma aula em que, em momento de pausa, para esclarecer os alunos de uma turma sobre a  subida do custo de vida, lhes contei os meus primeiros tempos de professora, em que alugara uma casa a estrear, que me custava 700#00 de renda, o que correspondia a 1/3 do meu vencimento de professora. Fora isto nos anos 57-59, em Aveiro, mesmo ao pé do liceu, (palavra já arcaica no nosso país). Trinta e tantos anos depois, um dos vencimentos do casal servia para pagar a casa, tinham ambos os pais que trabalhar para poderem sobreviver. Nos anos de agora, nem já isso chega. Por isso, é uma situação ideal, a referida por João Taborda da Gama. A propósito, tenho muita pena dos professores de agora, que não só enfrentam inúmeros problemas de ensino – em que não é a menos despicienda a complexidade pedante das matérias escolares – e não me refiro só ao ensino básico, em que se retirou a noção de bases  fundamentais, com o auxiliar da memória pela repetição – sofisticadaamente posta de lado como psitacismo embrutecedor, o apelo à inteligência pela compreensão dos fenómenos possuindo eficácia mais decisiva no alargamento das competências…. Dizia eu que admiro os professores de agora, vítimas de imposições de exigências  que nada têm a ver com o curso que tiraram. Tanto que eu gostava de estudar e ensinar as literaturas, na sua progressão cronológica enquadrada numa visão histórica! Que pena tenho dos professores chamados a ensinar alunos que mal sabem ler e escrever ou sequer falar, e nunca aprenderão, nos agrupamentos de escolas para retirar elitismos e cada vez mais massificar aprendizagens. E os discentes. Mas estou longe disso agora, talvez me engane. Toda esta elegia a propósito do convidativo artigo “Ficar em casa”, de João Taborda da Gama, cuja tese, em todo o caso, me parece um pouco castradora para as Ls.

Ficar em casa
João Taborda da Gama
DN 25/9/16
Neste regresso à escola, a L. não regressou à escola. Vai fazer a quarta classe em casa, a casa como escola, a mãe como professora, a mesa da cozinha como carteira, a rua como recreio. Mas isso pode-se? é legal?, é a primeira pergunta que nos fazem. Sim, a lei prevê que os pais possam educar os seus filhos em casa, e o Estado controla a coisa verificando quem é o encarregado de educação, o plano de estudos seguido e sujeitando a criança a exames. As regras estão espalhadas em vários sítios, mas são relativamente simples.
Mas no fundo, no fundo, quando as pessoas perguntam "isso pode-se", não querem saber se isso se pode ou não, porque presumem que se possa, que os pais, que até são ambos juristas, tenham visto bem isso e não queiram que a Segurança Social lhes retire a filha. No fundo, esta pergunta é mais para ganhar balanço para a que vem normalmente logo a seguir, o porquê? A L. estava na escola, mas a verdade é que não adorava. Gostava muito dos colegas, mas não de todos. Gostava da professora, das auxiliares, sem dúvida. Mas, sem ingratidão, gosta mais da mãe do que das professoras, de ler Um Atalho no Tempo quando lhe apetece, do que apenas no fim do dia cheia de sono, depois da escola, da guerra civil do deitar, do arrumar a mochila; gosta mais de cozinhar o almoço do que comer do refeitório. E ter tempo para aprender outras coisas, ao seu ritmo, trabalhar mais o que tem mais falta e o que mais gosta.
O Ministério da Educação explica: "As modalidades de ensino doméstico e a distância revestem-se de carácter excecional e visam responder a solicitações de famílias que, por razões de mobilidade profissional e outras de natureza estritamente pessoal, pretendem escolher os métodos de ensino mais apropriados para os seus educandos." É uma solicitação, e são razões de natureza estritamente pessoal - quem diz é o ministério. E são. Pessoalmente achamos que a ideia de escola é muito bonita, sem ironia, que sem escolas nada havia, e que é por isso que é bom pagar impostos, e por isso os nossos outros filhos continuam na (mesma) escola. Mas também achamos que momentos, circunstâncias e crianças diferentes recomendam caminhos diferentes.
O sistema educativo é mais do que uma escola-parede e professor - é também este sistema que permite espaços de maior liberdade em relação ao próprio Estado, em que o Estado recua ao essencial, se remete à verificação da capacidade dos pais para educar segundo um programa. Um Estado que deixa que os pais sejam plenamente o que naturalmente são, educadores, com as suas virtudes, os seus defeitos. Um Estado que deixa os filhos estarem mais tempo com os pais, mais tempo em casa. Os horários da escola, cada vez mais amplos para acudirem às necessidades profissionais sufocantes dos pais, deixam pouco tempo para coisas que não são menos importantes do que a aula de Educação Física. Almoçar e passar uma tarde com os avós, ir ao Pingo Doce, andar de bicicleta - três coisas que uma criança na quarta classe tem hoje dificuldade em fazer sem estar a faltar a qualquer coisa. Que sentido faz isto?
Há sempre o fantasma da socialização, se ela não vai sentir falta dos amigos. Temos começado por esclarecer que não a vamos fechar numa cave como o Sr. Fritzl, nem vamos viver para o Parque Natural de Montesinho, que a L. vai continuar a viver numa casa com cinco irmãos, numa rua com pessoas, que vai continuar a fazer muitas horas de desporto por semana e outras atividades. E que as amigas da escola vão continuar a falar com ela e a poderem ir lá a casa, mesmo depois dos pais lhes dizerem, quando elas lhes pediram para também ficarem em casa como a L, que a L. e os pais da L. não são bons da cabeça.
E tudo é reversível, se a coisa não correr bem, se deixarmos de achar que é o melhor, se ela deixar de querer está lá sempre a escola, o Estado, o colégio, tudo como rede, e os amigos, a família, a darem imenso apoio, com "told you" escrito na testa.
Claro que para fazer isto é preciso poder, poder ter um dos pais em casa, e que esse pai queira ensinar, e que a criança queira ficar em casa. Mas querendo e podendo, só há uma razão para não fazer, o medo do que os outros possam pensar, o desconforto, o ter de explicar, o receio de ser diferente, ou, pior ainda, de assumir e viver essa diferença. E só por isso, por essa libertação, que também queremos que seja parte da lição da L., já valeu a pena.

E, sim, vamos continuar a vacinar os miúdos.

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