terça-feira, 13 de setembro de 2016

No mundo non me sei parelha


O jornalista tem que escrever sobre o 11 de Setembro de 2001, passaram 15 anos do ataque às Torres Gémeas, muita tinta correu, a Internet dá larga conta, explica os motivos do ódio contra a América, que protege Israel e interfere largamente na zona do Médio Oriente, e a retaliação dos Estados Unidos, contra a Al-Qaeda, o Ossama Bin Laden, e outros árabes que odeiam a nação poderosa e prometem mais torres a abater…
O jornalista acha que foi tudo dito sobre esse 11 de Setembro e cria uma história fictícia que poderia ser real – uma história de amor paterno que poderia ter descambado em tragédia, se circunstâncias da sua vida não tivessem sido obstáculo à concretização do seu projecto de amor e responsabilidade educativa dos filhos, de que as viagens fazem, naturalmente, parte.
Assim, porque tem que escrever um mínimo de quatro mil e quinhentos caracteres  para a coluna do DN, de um 11 de Setembro americano, de que já tudo foi dito, em que cerca de 3000 pessoas perderam a vida, de mistura com a sua ficção do passeio a Compostela refere um 11 de Setembro português, de 1985, um desastre ferroviário em Alcafache, com cerca de 150 mortos, coisa mínima para o mundo, importante para nós, momentaneamente, apenas, no galgar de outras mais circunstâncias que tudo relativizam – menos para as famílias atingidas.
A viagem a Compostela preparada, badalada, transmitida com entusiasmo às filhas adolescentes, medianamente seduzidas, não chegará a realizar-se, devido a circunstâncias das banalidades torpes da vida que impuseram o desvio do dinheiro da viagem para outros fins bem menos aprazíveis. Obstáculo que se verificaria posteriormente ter sido uma bênção do destino, que dessa forma evitara provavelmente o desastre da família, que regressaria, na viagem projectada, no mesmo comboio Celta que fazia a ligação Vigo-Porto, cujo descarrilamento provocara mortes e feridos. E o susto, e a incompreensão, e o alívio, e as mesmas perguntas que outros fariam, de outros desastres que lhes poderiam ter sucedido a eles, porque estiveram para ir, nos aviões que rebentaram, nos comboios que descarrilaram, ou que qualquer motivo impedira de subirem às torres trespassadas…
Tudo já se dissera das Torres, e dos motivos, e das consequências, e das retaliações. João Taborda Gama relativiza os factos, mostrando como se repetem no mundo a cada passo, com maior ou menor dimensão mas igualmente valiosos para o ser humano que os viveu ou que o acaso fez deles escapar.
O seu sentido de humor e uma sensibilidade de recusa ao espectacular das tragédias – a vida tendo, naturalmente, todo um sentido trágico -  o leva a criar uma história doseada de humorismo e sentido dramático, com a necessária dose de filosofia de vida sobre as manobras do destino que favorecem momentaneamente uns tantos e retiram apoio a outros, na incompreensão humana dos “porquês”, e nas inúteis propostas dos hipotéticos “ses”.
E isso me fez lembrar, talvez um pouco puerilmente, na incompreensão da vida, o deslumbramento contido na chamada “Cantiga da Garvaia”, atribuída a Paio Soares de Taveirós, por uma Ribeirinha famosa, amante do nosso D. Sancho I, como declaração simultaneamente de amor e escárnio, ao vê-la sem manto. Como a vida: deslumbramento e sofrimento, amor e sensualidade em que vale a pena rir.  E João Taborda da Gama assim usa a sua veia humorística para desmistificar o trágico, cumprindo a obrigação dos 4.500 caracteres, sem falsear os dados. Com extrema elegância:

No mundo non me sei parelha,
mentre me for como me vai,
ca ja moiro por vós e ai!
mia senhor branca e vermelha,
queredes que vós retraia
quando vos eu vi en saia.
Mao día me levantei,
que vos entón non vi fea!

E, mia senhor, des aquelha
me foi a mí mui mal di'ai!,
E vós, filha de don Paai
Moniz, e ben vos semelha
d'haver eu por vós guarvaia,
pois eu, mia senhor, d'alfaia
nunca de vós houve nen hei
valía dũa correa.

Caminhos de fé?
DN,11/9/16
Junho-agosto de 2016. Vamos imaginar um pai que vendo as filhas mais velhas na beira da adolescência, e a si empurrado cada vez com mais força para fora da dita, decide que é desta, que é desta que vão fazer o Caminho de Santiago. Estuda, planeia, cinco dias, de Valença a Santiago, só os quatro, ida e vinda de comboio, que ele tem medo de aviões. Primeira semana de setembro, um Excel todo bonito, com as viagens, as pernoitas, as etapas, diz a toda a gente, chateia os amigos que já fizeram o caminho. Botas ou sapatos? Quantos quilómetros por dia? O Caminho português ou o francês? Saída na sexta, regresso na sexta, de dois a nove. Vai ser daquelas coisas que imaginamos que eles se vão lembrar quando morrermos. Só nós as três e o pai, daquela vez, imagens que se vão sobrepor ao quotidiano e aos horrores da conjugação do calendário e do horário escolar, e o profissional, ou da sua desarticulação.
Depois acontecem duas coisas. Uma, mais difusa, é aquele entusiasmo típico dos catorze anos com tudo o que mete pais, e em especial uma coisa estranha de ir andar a pé de um sítio para outro, "a procissão" como ficou conhecido aquilo que até lá era apenas "a caminhada" depois da revelação, ou descoberta, da natureza religiosa da coisa. O entusiasmo negativo, o equivalente no parentês do conceito de juros negativos na economia popular, preocupava apenas relativamente um pai que não é parvo. Bastaria montar uma campanha de propaganda bem feita e com meios, tipo aquelas dos medicamentos para a hepatite C, e seria debelado o spleen teen em dois tempos (oportunidades para fotos no Instagram que iam bater os likes das amigas em roupa interior, digo, de praia; promessa de guloseimas ao final do dia para dar forças; uma ida à Decathlon para comprar material; a revelação de que, dado o peso, não ia dar para levarmos livros, mas que os albergues teriam wi-fi).
Mas aconteceu outra coisa. O tal pai das tais miúdas, que até se diz fiscalista, entregou o IRS fora de prazo. Como se isso não bastasse - ia ser uma vergonha se alguém descobrisse, ia ter de pagar multa e juros -, não leu uma norma no Código do IRS que dizia que quem se atrasasse na entrega do IRS não podia entregar o IRS em conjunto, como casal. Ora isso no caso daquele casal era uma diferença astronómica. A norma, escondida, insidiosa, burocrática, desproporcional, era claramente inconstitucional, uma selvajaria fiscal, uma aberração que qualquer tribunal reconheceria, mas ia ser necessário pagar o IRS agora e discutir depois. Para aprender a ter mais cuidado daqui para a frente e entregar o IRS a tempo e ler o código de fio a pavio, o tal pai decidiu pôr-se de castigo e cancelar a ida a Caminho de Santiago (iam ser as suas únicas férias), dizer às filhas que afinal vamos precisar desse dinheiro para outra coisa. O cancelamento foi recebido com a indiferença adequada, talvez apenas um pequeno oh que sempre se solta para assinalar a posição contrária, o lugar perante a barricada.
10 de setembro de 2016, sábado. É preciso escrever a coluna do DN, quatro mil e quinhentos caracteres no mínimo. O texto vai sair a 11 de setembro e o impulso é escrever sobre os atentados de Nova Iorque, mas já foi tudo dito, nada a dizer de novo, de inteligente, problemas de quem já leu milhares de páginas sobre a coisa. Um dos ângulos possíveis seria este: a 11 de setembro de 1985 foi o desastre ferroviário de Alcafache. Morreram talvez 150 pessoas. Não se sabe ao certo. A crónica podia ser sobre isto, sobre os dois onzes de setembro e sobre a morte e a sua representação psicológica e cultural, o esquecimento de Alcafache e a hiperanálise de Nova Iorque. No fundo, a ideia a ser testada era esta: 11 de setembro de 1985, no nosso país, com 150 mortos portugueses, cerca de..., ocupa um lugar na nossa memória coletiva diferente do 11 de Setembro de 2001, um lugar com menos relevo, com menos reportagens, menos conversas; não se trata de justiça ou injustiça relativa, de respeitar ou não mais uns do que os outros mortos, mas de pensar isto, da saliência relativa das coisas, e da causa dessa relevância diferente do ponto de vista da comunidade. As vidas valem todas o mesmo - então por que razão umas mortes, umas catástrofes, ocupam mais o espaço público do que outras? Mas a ensaiar esse texto, essa ligação entre os dois onzes de setembro, o autor, que sempre que pode anda de comboio para evitar o avião, não se esquecia do acidente ferroviário da véspera, sexta dia dez, o comboio Celta, operado pela CP e pela Renfe, que fazia Vigo-Porto, que tirou a vida a quatro pessoas e feriu gravemente várias dezenas. Provavelmente, quase de certeza, o comboio de regresso onde estariam o pai e as filhas se tivessem ido fazer a tal caminhada-procissão. E que só não foram porque elas não queriam assim tanto, porque ele se atrasou no IRS e porque alguém se lembrou de enfiar no código uma norma abstrusa. E isso foi o suficiente para decidir escrever sobre isso, até porque já não conseguia escrever sobre mais nada, tudo parecia ainda pouco real, a sorte deles, o azar dos outros. Porquê o código, porquê o prazo, porquê tantos caminhos. Porquê?
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