sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Os saldos das compensações


É por todos estes dislates das políticas económicas que me habituei a ir aos saldos. Nunca como agora se preocuparam tanto com a minha bolsa e menos com a minha dieta. Até o gelado “Romântica” - de que gosto sobremaneira, sem ter em conta as calorias da obesidade – de vez em quando abate 2 euros aos mais de 5 habituais, o que me  faz levar logo dois, triste por não poder acarretar mais, por não me caberem no congelador, já ocupado por outros congelados, alguns dos quais também de saldo. Mas já tinha notado que os sumóis ou os compais nunca abatiam os preços, ao contrário dos vinhos e dos azeites, e às vezes até do peixe congelado, e fico a saber, por este artigo de João Taborda da Gama, que é por consideração pela minha estrutura corpórea, que eles - os refrigerantes - são severamente tributados, embora eu esteja especialmente votada à coca-cola, a que me habituei em África e que cá não havia nos anos cinquenta dos meus estudos nas Letras, o que me causava suspiros, como se tivesse perdido uma doce companheira, fazendo-me mergulhar num sentimento de irreparável frustração fraternal. De facto, tal era o vício, e tão maneirinhas as coca-colas individuais, que até chamavam de “coca-colas” aos africanos. Não há fome que não dê em fartura, e agora as coca-colas são de litro e mais, nunca mais encontrei as garrafas maneirinhas da minha infância, mais tarde substituídas por latas, mas somos um povo de excessos alimentares e ao litro sai mais barato além de que dessedenta toda a família. Taborda da Gama também deve ser dos que amam os refrigerantes, por isso condena o imposto sobre eles, mas cada um sabe de si, e se o governo taxa os refrigerantes é porque não pode deixar de os taxar, no desequilíbrio orçamental em que se deve encontrar para aceder às exigências dos seus apoiantes da esquerda, que dividem a sociedade em ricos e pobres, sem sequer admitirem os remediados, e por isso taxam os refrigerantes doces que são mais comprados pelos ricos. Mesmo quando há os peditórios para aqueles, julgo que ninguém se lembra de comprar refrigerantes, mas sim as massas e o feijão e o arroz que são mais substanciais e adequados ao seu estatuto. Eu nunca me tinha lembrado desses factores, e ao quilo do arroz e garrafa de azeite em saldo também costumava juntar o quilo do açúcar mas foi porque não me lembrava desses pormenores divisionistas. É por isso que discordo do que diz João Taborda da Gama e  até sugiro um slogan: ”Queres refrigerante? Só de taxa”.
Doces impostos
João Taborda da Gama
DN, 9/10/16
Tributar os refrigerantes nem emagrece as pessoas nem engorda os cofres. Então para que é que serve? Serve apenas para que não se fale do que interessa, do que preocupa, das yields da dívida, do crescimento anémico, do IVA da restauração.
Já todos sabemos que a obesidade faz mal e que o açúcar e a gordura nos tornam obesos, e que quem beber muito Sumol de ananás fica mais gordinho do que quem beber a mesma quantidade de água da torneira, de Fátima ou do Luso.
Mas tributar agravadamente um produto exige uma fortíssima legitimação de igualdade para não estarmos perante uma tributação inconstitucional, perante o arbítrio fiscal, aquela zona em que o legislador tributa mais ou menos só porque sim, porque lhe apetece, porque embirra mais ou menos com aquela empresa, setor ou produto, ou porque quer impor, à custa de um produto, uma qualquer ideia de sociedade, de mercado, ou até porque este ou aquele imposto está mais na berra. Para se tributar os refrigerantes agravadamente teria de se demonstrar inequivocamente que havia em Portugal um sobreconsumo de refrigerantes, que levavam a um problema de saúde pública de obesidade, que havia uma causa entre o sobreconsumo e a obesidade e que - o que é fundamental - a tributação agravada dos refrigerantes faria comprovadamente decair o consumo das bebidas açucaradas, que não seria substituído por consumos alternativos de calorias e que daqui resultaria a redução da obesidade. Por causa do imposto deixas o Frisumo, passas a aguinha del cano e ficas com abdominais de Ronaldo.
Começa logo por ser falso o ponto de partida: em Portugal não existe nenhum problema especial de consumo de refrigerantes. O consumo per capita de refrigerantes em Portugal no ano de 2015 foi de 66 litros, muito abaixo da média europeia de 95 litros, dos 106 litros do Reino Unido ou dos 154 litros dos Estados Unidos da América (dados publicados online pela UNESDA, associação que representa os interesses da indústria de refrigerantes em Bruxelas). Inventar um imposto para tentar eliminar uma causa de um suposto problema, causa essa que é 68% da média europeia e metade do que acontece na América do Norte, é, admitamos, forçado.
A causa não existe. E o problema existe? Existe na medida em que justifique um imposto especial para o debelar? Olhando aos números da obesidade e do sobrepeso em Portugal não parece estarmos afastados das médias da OCDE.
O que é que acontece quando se criam estes impostos? Os estudos feitos mostram que o imposto é passado para o consumidor, sobretudo ao longo de um período de tempo. Mas os resultados variam: em muitos países os preços subiram mais do que o aumento da carga fiscal, noutros não.
A terceira coisa que há a provar é saber se o imposto, com o seu impacto no preço, reduz o consumo (estamos a falar, ao que parece, em impostos na ordem dos 10%- 20% e não impostos que são mais do que metade do preço de venda como no tabaco). Olhando ao que aconteceu em outros países (México, França, Finlândia), houve uma diminuição do consumo do produto. Mas ao contrário do tabaco, nos refrigerantes há uma gama de preços muito abrangente e portanto há substituição. Basta ir ao site do Continente Online para vermos que o "Refrigerante com Gás É Cola Continente" se vende a 0,20 euros por litro, enquanto a Coca--Cola custa 0,83 euros euro por litro. Esta amplitude de mais de 400% mostra o espaço que há para os consumidores optarem por sumos mais baratos, mantendo as calorias, sobretudo os consumidores mais pobres. E há ainda um outro fenómeno, que é a substituição de calorias dos refrigerantes por outras calorias, que é frequente acontecer.
A não ser que não se trate com este imposto de salvar a saúde dos portugueses, de os emagrecer, mas apenas mais uma fonte de receita, um imposto como os outros, para engordar o Orçamento. Mas se assim é, então o quadro ainda é menos claro. Qual a expectativa de receita deste imposto? Cem milhões ou dez milhões? Qual o custo de adaptação da administração fiscal para verificar o cumprimento? Qual o custo para as empresas na adaptação para a sua cobrança e entrega ao Estado? Que impacto vai ter no pequeno e médio comércio (um dos efeitos dos soda taxes é direcionar o consumo para grandes superfícies e marcas brancas). Não parece que seja o Sucol que vai salvar o défice.
E depois há a questão da justiça e da coerência do sistema fiscal visto como um todo: que sentido faz aumentar a tributação de certos bens alimentares ao mesmo tempo que se mantém o IVA da restauração nos 13%?
A ideia de tributar as gasosas não foi de Passos (que não avançou) nem de Costa (que parece que vai avançar) - foi de Salazar em 1961. E porque é que Salazar, professor de Finanças Públicas e especialista em impostos, se lembrou, nesse ano de 1961, de tributar os refrigerantes? Não porque estivesse preocupado com a lusa pança, mas porque tinha começado a Guerra do Ultramar e nesse ano foi preciso aprovar uma série de impostos, uns para conseguir mais receita (sobretudo nos combustíveis) e outros para entreter o pagode, sobretudo para fazer crer que o esforço de guerra estava ser suportado pelos ricos, com um imposto sobre os refrigerantes e outro sobre os produtos supérfluos e de luxo. Foram impostos de pouco dura, e de receita quase nula, que foram revogados na primeira esquina, tal foi o sarilho em que meteram as empresas e o fisco para o tentar cobrar. Na verdade, Salazar já se tinha cruzado com os problemas da tributação das bebidas, na Primeira República, quando um aumento do selo das bebidas e perfumes uniu os patrões contra o regime e lhe abriu caminho, mesmo que à última da hora o governo tivesse tentado isentar os pirolitos (v. o interessante artigo de Luís Villalobos no Público de 10.9.2015).
É comum os impostos do pecado usarem a culpa dos consumidores para fins puramente de angariação de receita. Mas no caso de se quererem tributar os refrigerantes em Portugal nem há razões para ter culpas nem motivos para se esperarem receitas.


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