Um artigo que não precisa de
esclarecimentos. Claro, simples e correcto, próprio de alguém bem formado que
ousa dar o seu parecer contrário ao da trapaça cínica, e afirmar a sua
indignação perante o farfalhudo das demonstrações nacionais sobre um di-ta-dor
que morreu. João Miguel Tavares sabe que não são reais, mas estas coisas dos
funerais permitem todos excessos, como se vê
na Coreia do Norte, que é uma dor de alma assistir-se a tanta gritaria
imposta. Entre nós, nas aldeias também ainda aparecem carpideiras que muitas
vezes nem são da família e que retiram ao momento a respeitabilidade da mágoa
sincera. Mas, como dizia Cesário,
O mundo é velha cena ensanguentada.
Coberta de remendos, picaresca;
A vida é chula farsa assobiada,
Ou selvagem tragédia romanesca. … (“Manias”).
Coberta de remendos, picaresca;
A vida é chula farsa assobiada,
Ou selvagem tragédia romanesca. … (“Manias”).
Peguemos
num dos remendos – o das nossas subserviências – e admiremos a frontalidade do
texto de João Miguel Tavares:
Repitam
comigo: Fidel era um di-ta-dor
João
Miguel Tavares
Público,
29 de Novembro de 2016
Porque não começar também a elogiar Salazar ou
Pinochet, que mataram menos gente e deixaram os seus países mais desenvolvidos?
A
falta de amor que este país tem à liberdade nunca cessará de me espantar. Foram
demasiados os obituários e os comentários a propósito da morte de Fidel Castro
que me fizeram ter vergonha do país em que vivo. Do PCP, a este respeito,
ninguém espera nada. Mas receber uma newsletter da revista Visão com
o título “Hasta Siempre Comandante Fidel”, certamente escrita – vamos ser
optimistas – com a inconsciência própria de quem olha para Cuba como uma photo
opportunity, com os seus carros anos 50, as cores garridas e os charutos, não
cabe na cabeça de ninguém. Cuba não é uma conta de Instagram. Cuba é uma
ditadura. Defender Fidel, romantizar Fidel, mitificar Fidel, é defender,
romantizar e mitificar um ditador, que condenou milhares de pessoas à morte
directa por fuzilamento e à morte indirecta por afogamento no Estreito da
Flórida.
Não
há meio-termo nisto. Essa conversa de que “a História o há-de julgar”, ou de
que “para uns morreu um ditador, para outros um herói”, só pode dar a volta a
qualquer estômago democrático. Desde quando é que Fidel Castro ser um
ditador passou a questão de opinião? Fidel Castro só deixará de ser um
ditador quando a definição de ditadura for alterada nos dicionários. Cuba é
um regime onde todos os poderes do Estado estão concentrados num partido; esse
partido não admite a oposição livre às suas ideias –
“pela Revolução, tudo; contra a Revolução, nada!” –; o partido e o
seu presidente possuem poder e autoridade absolutos; não existe democracia; a
liberdade de circulação é limitada; existem presos políticos e houve pelotões
de fuzilamento que trataram de eliminar qualquer resquício de resistência nos
anos quentes da revolução. Che Guevara admitiu-o na ONU, em 1964 (há imagens):
“Sim, fuzilámos, e continuaremos a fuzilar enquanto for necessário.” Se isto
não é uma ditadura, é o quê?
A
gente já sabe que um ditador de direita é um fascista, enquanto um ditador de
esquerda é um revolucionário bem-intencionado a quem as coisas correram mal.
Mas, pelo menos, digam a palavra: di-ta-dor. Com certeza que Fidel Castro pode
ser considerado um ditador heróico pelos seus admiradores, e encaixar na
categoria do déspota iluminado. Mas digam o raio da palavra: di-ta-dor. E
admitam que estão a defender um di-ta-dor. Aquilo que não se suporta são os
textos sonsos, como aquele que Francisco Louçã escreveu neste jornal,
afirmando que “Fidel sai da vida como um vencedor”. Sim, Louçã admite que o
senhor “manteve um regime de partido único”. Mas depois lá vem o velho “mas”,
que tudo suaviza, tudo compreende, tudo desculpa: “mas”, diz Louçã, “ao
contrário da história trágica da URSS, permitiu e até estimulou formas de
diversidade cultural”, como os “livros de Leonardo Padura”. Bravo! Eis uma frase
que poderia ser aplicada, sem tirar nem pôr, a Oliveira Salazar, ou não fosse o
neorrealismo o movimento literário mais marcante do Estado Novo. Porque não
começar também a elogiar Salazar ou Pinochet, que mataram menos gente e
deixaram os seus países mais desenvolvidos?
Um
ditador é um ditador é um ditador é um ditador. Só que Louçã nunca usa a
palavra no seu texto. Tal como nunca usa uma outra: liberdade. Lamento: qualquer
pessoa que defenda Fidel e o seu legado é uma pessoa capaz, em certas circunstâncias,
de desprezar a democracia. Serem tantos a fazê-lo, no Portugal de 2016, é uma
tristeza enorme. Mas não desesperemos. Fidel morreu a 25 de Novembro, o que
só pode ser visto como um sinal dos céus.
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