sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

A voz vibrante de Passos Coelho



No meio da barafunda que ultimamente temos vivido de ataque ao PSD e sobretudo a Pedro Passos Coelho, pelos próprios do PSD - Marques Mendes até acha que Passos Coelho deu um tiro no pé, ao desdizer-se do que dantes dissera, pois já apoiara a tal TSU noutro contexto e agora que o contexto mudara já não apoiava, o que era traição aos princípios morais de seriedade que Marques Mendes acha que tem e que Passos não tem mas eu só me lembrei, ao ouvi-lo na entrevista com a Clara de Sousa, do nosso Fernão Mendes Pinto, que na sua Peregrinação contou coisas tão estapafúrdias que até o seu nome foi glosado em trocadilho: “Fernão Mentes? Minto”, tal como me pareceu, ao ouvi-lo na conversa com a Clara, que era o caso do Marques: “Marques, mentes? Minto” não por um relato estapafúrdio (perfeitamente extraordinário, embora), de aventura asiática, que o nosso clima aqui não proporciona, brando que é, e europeu, mas na saliência de bons sentimentos que por aqui, sim, abunda, que João Miguel Tavares igualmente atribui a um Silva Peneda e que as Mortáguas e Companhia também expandem, sempre soturnas e virtuosas, neste nosso clima português, propício, isso sim, à virtude embora soturna.
Mas não vou falar disso, da TSU, que me parece coisa de lana caprina ou assunto para espíritos mais esclarecidos. Na realidade, o que me deu um prazer honesto, a minha alma vibrando em uníssono - a minha alma está parva, na expressão hiperbolicamente animista da nossa amiga - foi a figura arrogantemente enérgica de Pedro Passos Coelho a informar, na sua voz bem timbrada e corajosa - que perfurou a muralha severa dos ouvidos bem formados e condenatórios dos Marques Minto da nossa história biblicamente bélica - a informar, repito, que António Costa devia entender-se com os seus apoiantes na questão da TSU, para isso fizera a coligação, era para se entender com esses e não consigo ou os seus. A TSU que apoiara divergia da TSU de António Costa, por esse motivo não a apoiava agora, para mais que o PS tinha os seus parceiros de governo, com quem se devia entender. E não consigo ou os seus, foi o que informou Passos Coelho no seu propósito esclarecedor.
Mas se não o conseguiu, temos João Miguel Tavares, a esclarecer melhor, e Francisco Assis a contribuir para a manutenção do crédito de Passos Coelho, num clima avesso à compreensão, embora o não seja à virtude soturna.
O regresso da alma Peneda
João Miguel Tavares
19 de Janeiro de 2017
Silva Peneda escreveu uma carta aberta no Diário de Notícias onde acusa Passos Coelho de estar a “ferir gravemente a identidade do PSD” por se recusar a apoiar a descida da TSU. O interesse da carta não está na acusação, que nada tem de original, mas na argumentação utilizada, que cruza uma sinopse da história do PSD com a tese de que estamos a assistir a uma traição dos “valores fundamentais” da social-democracia portuguesa. Passos Coelho, o traidor, está, segundo Peneda, a “alienar” o “património político” do partido e a promover a sua “falência”, já que a sacrossanta concertação social representa a “cultura de compromisso” que o PSD deve buscar “de forma incessante”. É caso para dizer: há certas críticas que valem mais do que mil elogios.
Vale a pena analisar a “cultura do compromisso” de Silva Peneda neste caso em concreto. Andemos dois meses para trás. A 19 de Novembro de 2016, o Expresso anunciava em manchete: “Salário mínimo de €557 em risco em Janeiro.” E justificava: “Para conseguir um acordo na concertação social, António Costa pode fasear o aumento em 2017.” Nesse mesmo dia, António Costa recorreu ao Twitter para desmentir categoricamente a notícia: “A manchete do Expresso é falsa. O programa de Governo será cumprido na atualização do salário mínimo.” Dois dias depois, o presidente do PS, Carlos César, confrontado com o protesto dos patrões, fechava a porta a qualquer negociação abaixo desse valor, numa declaração tipicamente socialista: “Não posso interpretar o que os patrões entendem. O que sei interpretar é aquilo que o Governo pretende: que em diálogo e no cumprimento do programa de Governo, seja possível o aumento do salário mínimo nas condições que nós mencionámos.” Diálogo, sim, mas nas condições impostas pelo Governo. Negociar o salário mínimo, com certeza, desde que seja 557 euros. É a isto que Silva Peneda chama “cultura de compromisso”. É esta maravilhosa “concertação social” que o PSD, terrível e despudoradamente, parece que está a trair.
Os patrões, como é óbvio, não tinham grande opção: já que o salário mínimo iria subir a bem ou a mal, aproveitaram as migalhas da TSU que lhe foram postas à disposição. Mas que a “concertação social” esteja resumida a isto, e que seja este o património que Silva Peneda acusa Passos Coelho de estar a destruir, só pode ser uma piada de mau gosto vinda de alguém para quem o Terreira do Paço é o útero do país. Razão tem Francisco Louçã: esta concertação social de 2017 parece, de facto, uma nova Câmara Corporativa. Só que o poder que ela preserva não é, como afirma Louçã, o “poder patronal”, mas sim o poder do bom e velho Estado oligárquico, para o qual Bloco e PCP também contribuem com denodo.
Chamar a isto “cultura do compromisso” é uma ofensa para a cultura e para o compromisso. Isto é tão-só a batida cultura do deixa-andar-que-assim-está-bem. É o óleo que faz girar há décadas a máquina oligárquica portuguesa, feita de respeitáveis figuras do “centrão”, como Silva Peneda. Se Passos Coelho está a levar à “falência” este “património político”, essa é uma óptima razão para gostar dele. Almas Penedas é que não – elas representam o regresso do fantasma dos natais passados, quando existia dinheiro a rodos para distribuir. Quem andava pela política nos anos 1990 e 2000 não precisava de ser competente, culto, probo ou sequer inteligente. Bastava, como os leões de pedra do Parlamento, guardar a entrada do mealheiro – e manter a pose impante da mediocridade.
As duas maiorias
Francisco Assis
19 de Janeiro de 2017
1. Com a devida vénia inicio este artigo com uma citação de Francisco Louçã. Anteontem, neste mesmo jornal, escrevia o seguinte: “A concertação social é a forma sofisticada da Câmara Corporativa, mas em vez de vénias e pedinchice ao Estado, o que, aliás, continua a fazer com garbo, mobiliza uma aura de legitimidade que pairaria sobre as instituições eleitas. É, por isso, um mecanismo para preservar o poder patronal, reclamando a força espiritual dos ‘homens do dinheiro’ e do ‘sentimento dos mercados’, nada mais do que isso. A ‘concertação’ social nem conserta nem concerta, limita-se a reproduzir o soturno direito de veto patronal, em nome da ideia de um poder social acima da esfera da deliberação pública, por exigir assentimento prévio.” Louçã não podia ser mais claro; dá provas de uma indesmentível coerência e revela uma saudável desinibição discursiva. É exactamente isto que os partidos situados à esquerda do PS pensam sobre a concertação social. Nem seria de esperar outra coisa, tendo em consideração a fidelidade que continuam a manifestar perante uma interpretação marxista da sociedade e da história.
No último fim-de-semana, a actual líder do Bloco de Esquerda deslocou-se a Berlim para, no âmbito de uma homenagem a Rosa Luxemburgo, enunciar um discurso radicalmente crítico em relação à União Europeia, acusada de todos os males possíveis e imaginários. Inspirada, decerto, pelo ambiente mental circundante, onde preponderavam os herdeiros da ditadura comunista da extinta RDA, lançou-se num desbragado ataque a tudo o que próxima ou remotamente tivesse que ver com o projecto político europeu em curso. Diga-se, de passagem, que a memória de Rosa Luxemburgo merecia melhor homenagem.
O PCP prepara-se para lançar uma campanha nacional a favor da saída da zona Euro. Para os comunistas esse constitui um novo desígnio nacional, em nome da recuperação de uma soberania monetária que consideram imprescindível para a manutenção de uma verdadeira independência nacional. Nas suas intervenções públicas, Jerónimo de Sousa não esconde a sua predilecção por um modelo económico de natureza colectivista e por um sistema de organização social baseado no primado da luta de classes.
Francisco Louçã, Catarina Martins e Jerónimo de Sousa não dizem hoje coisas substancialmente diferentes daquelas que foram reiteradamente afirmando ao longo das suas vidas. Quando reclamam para si próprios o património da coerência doutrinária e política não estão a incorrer em nenhuma mentira. São estas as suas posições políticas, assentes numa representação do mundo e da sociedade fortemente determinada pela adesão ao pensamento marxista, coisa que não só não renegam, como até notoriamente exibem.
2. A polémica criada em torno do acordo de concertação social reveste-se de enorme importância, já que proporciona uma melhor compreensão da situação política presente e permite antever a principal questão que se vai colocar no nosso futuro nacional mais imediato. A primeira ilação a retirar desta crise é a de que o executivo do Partido Socialista só está em condições de assegurar em toda a plenitude a governação do país se puder contar com o apoio parlamentar de duas maiorias alternativas e contraditórias. Em tudo o que releva da restituição de rendimentos a alguns sectores específicos da sociedade portuguesa, da concessão de novos apoios sociais ou da reversão de decisões tomadas pelo anterior governo, o actual executivo pode contar com o apoio do PCP e do BE. Já no que diz respeito a outro tipo de temas, sejam eles relacionados com a política europeia, com a necessidade de resolução de graves problemas no sector financeiro ou, como agora se viu, com a concertação social, a única parceria política viável só poderá realizar-se com os partidos do centro-direita. Ora, esta realidade é de tal forma complexa que exige muito mais do que um puro exercício de equilibrismo político.
Em boa verdade, uma situação desta natureza só poderia ser correctamente gerida se um governo do Partido Socialista mantivesse uma posição de equidistância em relação aos demais partidos políticos, dispondo-se a negociar com cada um deles, em cada circunstância precisa, o apoio de que careceria para a prossecução da sua acção quotidiana. No fundo estaríamos perante o modelo, amplamente teorizado nos primeiros anos da nossa democracia, que atribuía ao PS o estatuto de partido charneira do regime.
Ora, como é por demais evidente, a opção do Partido Socialista após as últimas eleições legislativas foi de natureza bem diferente. Optou por assumir a governação do país na base de um entendimento parlamentar inédito com o BE, o PCP e o PEV e empenhou-se especialmente em proclamar o carácter verdadeiramente histórico dessa novidade política. De então para cá assistimos a uma situação deveras curiosa: o governo dirigido com inegável talento pelo primeiro-ministro empenhou-se na execução de uma política no essencial moderada, de natureza claramente pró-europeia e de tal modo rigorosa no plano orçamental que permitiu mesmo a obtenção de um défice da ordem dos 2,3% do PIB. O próprio facto de se ter sacrificado o investimento público em prol da concretização desse mesmo objectivo revela lucidez e coragem. Aparentemente anestesiados, os partidos da extrema-esquerda parlamentar foram aceitando tudo isto – que noutras circunstâncias tão violentamente teriam vituperado – recorrendo ao discurso justificativo da recuperação de rendimentos de funcionários públicos e pensionistas. Viveu-se assim num tempo da ilusão de uma coabitação política fecunda. A partir de agora as coisas colocar-se-ão de forma bem diferente.
Por um lado – e a questão da concertação social já o indicia – quase tudo tenderá a concorrer para demonstrar a profunda inconsistência da presente maioria parlamentar. Entendem-se no que é mais conjuntural, mais popular e mais fácil, rapidamente se desentendem em tudo o que é mais exigente, complexo e estrutural. É natural que assim seja, já que entre o PS e a extrema-esquerda parlamentar subsistem radicais dissonâncias políticas e doutrinárias. Por outro lado, não é crível que se possam conceber grandes aproximações aos partidos da direita, e em particular ao PSD, dado o clima de extrema animosidade que caracteriza as relações entre os dois maiores partidos políticos portugueses. Nesse capítulo há responsabilidades de ambos os lados, o que conduz a comportamentos radicais e dificilmente compreensíveis como aquele que agora o PSD se prepara para adoptar ao inviabilizar objectivamente o acordo de concertação social. É certo que o PSD poderá alegar em seu favor que não foi tido nem achado pelo Governo, e que não está disponível para um papel incompatível com a preservação da sua própria dignidade. Apesar disso, teria sido mais correcta a opção pela inviabilização parlamentar das iniciativas da extrema-esquerda, com a simultânea apresentação das legítimas razões de queixa em relação ao comportamento do Governo.
Perante isto teremos de concluir pelo seguinte: o país parece caminhar para um impasse. Na falta das duas maiorias, que seriam simultaneamente complementares e antagónicas, o Governo corre o sério risco de se instalar numa situação de paralisia. Qual a saída para tão precária situação? Por muitos custos que possa ter, não vislumbro outra que não passe a curto ou médio prazo pela realização de eleições legislativas antecipadas. Curiosamente, se elas se realizassem no curto prazo provavelmente proporcionariam ao PS a possibilidade de obter a legitimidade que agora não tem para agir, de facto, como partido charneira nesta fase da nossa vida democrática.

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