A dimensão ética de um ser humano revela-se também na
coragem com que se ataca o ostracismo a que foi votado um amigo - ou mesmo um
inimigo a quem honestamente se reconhece mérito - e Vasco Pulido Valente teve
essa coragem, com a habitual elegância crítica a expressá-la. São de repetir as
suas palavras, comprovativas de que isso de democracia ou liberdade, que dizem
que Mário Soares implantou por cá, não passam de balela, várias vezes comprovada
junto dos patrões habituados a tornear os conceitos, de acordo com os seus
interesses. Espero que Alberto Gonçalves encontre brevemente patrões menos
tacanhos na explicitação dos direitos dos seus empregados, para mais quando
esses empregados denunciam uma capacidade intelectual e de escrita merecedora
de honrarias, não de aviltamento. Pobre país que necessita, geralmente, do
reconhecimento externo para abrir os olhos ao reconhecimento interno!
VPV: «O objectivo dos patrões do DN é
viver em boa harmonia com o governo, de maneira a conseguir um “jeitinho” ou
outro, um favorzinho ou outro. Alberto Gonçalves, um homem de convicções e com
pouca paciência para aturar idiotas, e com prosa sarcástica, penetrante e
clara, estragava este suave entendimento. A nossa direita continua
incuravelmente estúpida.»
Quanto aos demais excertos - sobre as despesas para os
divertimentos, num país empenhado, ou sobre as denguices de simpatia
mistificatória do PR, eles estão perfeitamente enquadrados na falta de decoro
da nossa pobreza parola.
O Diário de Vasco
Pulido Valente
Um
destes dias, Marcelo acaba a falar sozinho
7/1/2017
Janeiro, 2017
Sempre
gostava de saber quanto pagaram as Câmaras deste abençoado país, que
se queixa como de costume de não ter dinheiro, pelos denominados “festejos
natalícios”: iluminações, fogo de artifício, festivais, concertos, marchas,
policiamento (porque certos prazeres não vão sem policiamento) e outras folias.
Na Madeira parece que só o fogo de artifício custou um milhão e oitocentos mil
euros e custou de certeza muito mais por Portugal inteiro. As pessoas precisam
de se divertir, claro. Mas não estava ainda estabelecido que o Estado devesse
fornecer felicidade e entretenimento à cidadania. Agora, ninguém escapa a essa
dolorosa obrigação. Por causa do turismo? As receitas não chegam para as
despesas; e nada mais melancólico do que o espectáculo de 100 ou 200 mil
indivíduos no Terreiro do Paço, que precisam de se juntar para se sentirem um
pouco menos tristes. Se o Estado confiscasse às Câmaras o dinheiro que
gastaram nestas futilidades, não faltariam maneiras de o usar inteligentemente.
O ano acabou mal.
*
Quando
o papel se tornou mais barato, por volta de 1860, apareceram por toda a parte
milhares de jornais. Em Portugal também, e isso ao princípio foi
um escândalo de grandes proporções. Em Lisboa e no Porto, havia dezenas. Mas
cada distrito e quase cada concelho tinha um, ou por iniciativa local ou pago
pelos partidos políticos. Pior ainda, para se atrair o público da pequena
imprensa da província, os jornais de grande circulação passaram a contratar
correspondentes nos mais remotos cantos do país. Milhares de pessoas enchiam
diariamente toneladas de papel. De longe em longe, com boa prosa e notícias
fiáveis; diariamente, com calúnias, impropérios e demagogia, em prosa de taberna.
Como um todo, a imprensa era a versão primitiva de uma “rede social”. Ninguém
se incomodava com isso, excepto os jornalistas que se davam excessiva
importância. Num regime liberal (ou democrático), a necessidade de participar
era geralmente reconhecida e até certo ponto respeitada. As “redes sociais”
cobrem hoje muito mais gente. Ainda bem. O mal seria um público indiferente ou
apático.
Marcelo
não é um produto político, é um produto da RTP e da TVI, mas não percebeu ainda
uma das regras básicas da sua verdadeira profissão ou confundiu o papel de
Presidente da República com o seu antigo papel de entertainer. As
pessoas gostavam das conversas com Judite de Sousa porque queriam passar um bom
bocado a ouvir dizer mal dos senhores que nos pastoreiam e que todos nós
detestamos do fundo do coração. O dispensador de “afecto” (seja lá o que
isso for), com os seus beijinhos, as suas selfies, os seus beberetes, a sua
falsa naturalidade e o seu falso sorriso, também diverte e também não explica.
E pior do que isso faz com que Marcelo entre dia a dia pela nossa casa adentro,
sempre com a mesma fita e futilidade. Esta over-exposure, que o mais
mesquinho cómico tenta evitar para não perder a graça, não incomoda Marcelo.
Para ele, quanto mais melhor. Não calcula quanto tempo vai a populaça achar
graça ao espectáculo, nem mede a dificuldade de mudar de pele, quando tiver de
dizer à populaça: “Hoje, minhas senhoras e meus senhores, não estou aqui como o
Marcelo do Afecto, estou aqui como Presidente da República”. Ninguém
acredita. Mas, fora isto, o quê? E é precisa uma solução porque a cidadania
resolveu ignorar, e bem, o discurso de Ano Novo de Marcelo (?), do Presidente
(?), de quem ao certo? Só 637.000 pessoas o ouviram, a mais baixa audiência de
sempre, tirando as de Cavaco em 2013 e 2016, e longe das dele próprio na TVI
(entre um milhão e meio e dois milhões). Um destes dias, o homem acaba a falar
sozinho.
*
O
título “Diário de Notícias” é um programa. Quando o jornal foi
fundado queria dizer que só daria notícias e, principalmente, que seria
apolítico, ou seja, que tencionava ignorar as lutas partidárias do tempo. Mas
de facto o DN acabou por se tornar no órgão oficioso do governo e das dezenas
que vieram depois, durante cem anos (excepto, que me lembre, com Mário Mesquita
e, a seguir, com Mário Bettencourt Resendes). Não admira que esta
admirável instituição tenha resolvido despedir o meu amigo Alberto Gonçalves.
O objectivo dos patrões do DN é viver em boa harmonia com o governo, de
maneira a conseguir um “jeitinho” ou outro, um favorzinho ou outro. Alberto
Gonçalves, um homem de convicções e com pouca paciência para aturar idiotas, e
com prosa sarcástica, penetrante e clara, estragava este suave entendimento. A
nossa direita continua incuravelmente estúpida.
(Nota
da Redação: O que precede já estava escrito e entregue quando foi conhecida
a notícia da morte de Mário Soares. Vasco Pulido Valente tenciona escrever
longamente sobre a pessoa e o papel de Mário Soares na próxima semana.)
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