domingo, 15 de janeiro de 2017

De bem com Deus e com o Diabo



Julgo que o texto de João Taborda da Gama, um pouco ambíguo - ou sou eu que não o entendo bem - pretende, no seu título, (que acho de mau gosto, chamando a atenção para um facto que qualquer pessoa de bom senso achará improvável, fazendo parte do boatério indecoroso resultante de mesquinhez, vingança ou pura maldade - e foram muitos os que tiveram razões de queixa contra Mário Soares, pela forma descontraída com que participou na destruição pátria). Todavia, jamais acharia essa acção possível em alguém que foi educado a respeitar os símbolos da sua nação, como significativos da mesma, a não ser metaforicamente, e nesse ponto não tenho dúvidas de que a acção de Mário Soares e seus seguidores não significou mais do que um rasgar de todos esses símbolos do respeito pátrio.
Mas o que me parece ambígua é a posição de João Taborda da Gama, que escrupulosamente, ressalva a acção dos parceiros mais à direita como pertencentes ao grupo que igualmente democratizou o país - e mais o faria, não tivessem sido mortos alguns dos grandes de que trata, que trabalhavam numa dinâmica de governação mais equilibrada - Sá Carneiro e Amaro da Costa - e em todo o caso parece desculpabilizar o tal gesto do pisar a bandeira, caso tenha sido cometido, servindo-se para isso do filme do Scorsese, que, ao que parece, põe o homem perante a alternativa da apostasia para salvação, ou da recusa em pisar a imagem sagrada e condenação por isso. É sempre necessário actuar, a indiferença, a inércia é que são desprezíveis. Também foi assim que actuaram as “mães” do Salomão: uma pelo “cortar do filho ao meio”, outra pela renúncia ao filho, deixando-o viver. Mas foi esta mãe que recusou a morte do filho, que foi a premiada com ele. Mário Soares não se importou de “pisar a bandeira”, na minha opinião, apenas metaforicamente. Foi galardoado por isso. Creio que João Taborda da Gama o aprecia por esse motivo, mas de uma forma elegante, sem chegar a afirmar que é o seu herói. Com ambiguidade, pois, nem sim nem sopas. Aristocraticamente.
Vou traduzir o Dante - Inferno, Canto III, 33 e segs,, do seu exemplo. E prevenir os castigos divinos, tomando sempre posição. Senza speranza, contudo.
Começa o Canto III com os dizeres que Dante, acompanhado de Virgílio, encontrou inscritos na porta do Inferno: “PER ME SI VA NELLA CITTÀ DOLENTE… /… LASCIATE OGNI SPERANZA, VOI CH’ENTRATE”. Perante o sofrimento expresso em prantos, gritos, desesperos, em línguas várias, Dante, horrorizado, pergunta a Virgílio:
«Mestre, o que estou ouvindo? / E que gente é esta que parece submersa em dor?” / E ele explicou: “Esta mísera maneira / apresentam as almas tristes daqueles / Que viveram sem infâmia e sem louvor. / Estão misturados com aquele triste coro  /  dos anjos que não foram rebeldes / nem fiéis a Deus, mas ficaram neutros. / O céu os expulsou, para não ficar menos perfeito / nem o inferno profundo os recebe / para não ficar maculado na beleza. / E eu: “Mestre, que dor é tão grave que os faz lamentar-se assim? / Respondeu: Dir-to-ei sucintamente: / Estes não têm esperança de morte, e a sua obscura vida é tão abjecta / que mesmo os invejosos têm outro fim. / Fama deles o mundo não permite que dure ;/ a misericórdia e justiça divinas os desdenha: / Não falemos deles, mas olha e passa.»
Pisar a bandeira
João Taborda da Gama
DN, 15/1/17
Abaixo os falsos defensores da liberdade. Vivi muitos anos num rés--do-chão com esta frase pintada por debaixo da janela do meu quarto. A frase, pintada nos tórridos anos setenta, dirigida ao meu pai, tinha a assinatura clara da esquerda não democrática (mais tarde veio-se a saber quem a pintou). Para essa esquerda, o PS tinha travado a verdadeira liberdade, a liberdade de um qualquer socialismo não democrático. Era um bairro onde conviviam esses grafitos de esquerda com famílias de direita traumatizadas por Abril, que andaram de luto quanto Soares ganhou em 86, que celebraram a morte de Zeca Afonso em 87, que juravam várias vezes que Soares tinha pisado a bandeira de Portugal. Aliás, era um tempo em que era impossível andar de táxi sem ouvir o boato de Soares a pisar a bandeira.
Lembro-me muitas vezes dessa frase pintada por debaixo da janela do meu quarto, que me lembra um tempo que não vivi, um tempo em que já havia liberdade para que se pintassem paredes, mas não havia a certeza de que essa liberdade fosse amadurecer e perdurar, e foi por isso que me lembrei ainda mais dela agora na morte de Mário Soares.
E lembrei-me nesta semana da história de Soares pisar a bandeira ao ver o filme Silêncio, de Martin Scorsese. Silêncio conta a história de dois jovens padres jesuítas portugueses que no século XVII, numa época de forte perseguição aos cristãos, vão ao Japão saber de um outro padre mais velho que teria apostatado, renunciando a fé cristã, o que se fazia simbolicamente pisando uma imagem de Jesus, ou de Nossa Senhora.
Soares simboliza uma geração que defendeu a democracia da mera alternância de regimes não democráticos, uma geração que se confunde com o PS mas que só conseguiu triunfar porque também havia PSD e CDS (cuja história para a consolidação da democracia teria sido outra sem as mortes de Sá Carneiro, Amaro da Costa e Mota Pinto). Mas não foi apenas por isto que o PS simboliza mais o Portugal democrático, nem apenas porque por lá militavam mais e mais relevantes antifascistas: é porque coube ao PS estar na frente de combate ao totalitarismo que tentava forçar pelo flanco esquerdo, como só um partido de esquerda democrática podia fazer, por posição e convicção. Foi essa separação visceral uma marca fundante da nossa democracia, que levou, aliás, a que Soares tenha sido o único líder socialista a (ter de? poder? querer? conseguir?) governar com outros partidos, em concreto com o CDS e depois com o PSD quando isso era, aos olhos dessa esquerda, uma traição à revolução socialista, à verdadeira liberdade. Foi preciso por isso defender a Constituição e a Constituinte, a República e o República, os sindicatos do sindicato, abrir à Europa e à América, e não ao Leste ou ao Camboja, defender o PS do próprio PS e das derivas à esquerda para fora da democracia, sempre com essa esquerda a zurzir, a sugerir traição.
O boato da bandeira nunca deve ter preocupado muito Soares, mas percebe-se onde queria atingi-lo, antes de 74 apontando para um traidor a uma pátria que morria nas colónias, e depois de 74, aproveitado sinistramente também pela esquerda, servia para construir um perfil de oportunismo e egocentrismo que cumpria abater.
Embora religião e política tenham ambas dimensões interiores e exteriores, na política de nada vale eu ser um democrata em pensamento se não faço da liberdade o meu combate exterior. Não há democratas não praticantes. Roosevelt, Kennedy e Luther King citaram Dante dizendo que o inferno tem um lugar especialmente tórrido para aqueles que em tempo de crise moral se mantêm neutrais. Parece que Dante não disse a coisa desta forma, mas a ideia dos anjos neutrais está lá, aqueles miseráveis que não foram nem fiéis nem rebeldes, que em vida nem mereceram glória nem infâmia (Inferno, Canto 3, 33 e seguintes). Na religião há sempre um momento, um plano, de encontro a sós com Deus. Posso pisar uma imagem e continuar católico? Talvez. Mas não posso, em tempo de ditadura, ser um democrata e fazer a vidinha como de costume, ou numa jovem democracia calar perante quem a quer abafar.
No filme, o desconforto é esse: a apostasia com forma de salvação de si e de outros, e a possibilidade de mais um dia na terra, ou recusa de pisar a imagem, e a morte certa. No filme, Deus quebra o silêncio e diz para pisar, para pisar que não faz mal pisar. Mas seria Deus?
Há uns anos convidámos para padrinho de uma das nossas filhas o Hans, alemão, protestante, amigo da família. Tinha vindo para Portugal como funcionário da Fundação Friedrich Ebert logo depois do vinte cinco de Abril apoiar a transição para uma social-democracia, ficou amigo também de Mário Soares, de Portugal, do seu passado e futuro. É também ao Hans e a muitos outros estrangeiros que nessa altura para cá vieram que devemos o rumo da nossa democracia, história pouco contada, mas que nos livrou de um futuro bem pior. Tal como os missionários no Japão, acredito que esses estrangeiros também tenham sido olhados por alguns, no Portugal ideológico dos anos setenta, com desconfiança. Um dia, por ocasião do tal batizado, o Hans ofereceu-me um livro de que nunca tinha ouvido falar, o Silêncio, de Shusaku Endo.
Apenas verdadeiramente honramos o passado, as suas figuras, aquelas que viveram infâmia e glória, quando os incorporamos como critério de discernimento e decisão presentes. E eu, teria ido ao Japão, teria pisado a imagem? E eu, teria defendido sempre a verdadeira liberdade, apesar da prisão, da tortura, das frases por debaixo da janela do quarto do meu filho, da calúnia da bandeira? Ou teria ouvido um Deus que diz pisa, pisa, um Deus que diz não te metas nisso, deixa-te estar sossegado?

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