Dois artigos distantes no
tempo, próximos no conceito.O de Teresa de Sousa, de 5/11, é um
alerta sobre uma possível - na altura, improvável - eleição de Trump. O de Jorge Almeida Fernandes expõe
hipotéticas consequências sobre o governo de Trump, eleito contra as previsões.
A Europa não “sobreviverá da Trump”, “Trump promete pôr tudo em causa. Pode ser mais
destrutivo do que as guerras de George W. Bush. Se ganhar, "seria o Natal
no Kremlin" a tese de Teresa de Sousa, “Os negócios não
substituem os aliados e tweets furiosos não restauram o poder e o prestígio”,
a tese de Almeida Fernandes. Convém ler. Ambos os artigos estão apoiados
em estudos, como é normal em jornalistas de elevado gabarito.
Oremus.
A Europa dificilmente
sobreviveria (sobreviverá) a Donald Trump
Teresa
de Sousa
5
de Novembro de 2016
1. Se Trump ganhar. Se Trump
ganhasse. Se Trump ganhar. Se. A Europa vive há meses paralisada perante a
mais extraordinária das eleições presidenciais desde que foi criada a
comunidade transatlântica na sequência da II Guerra. Os governos não
mencionam o assunto, justificando o seu silêncio com a velha prática de não
interferir nas escolhas dos outros. Mas também não sabem o que dizer. Sabem
apenas que esse cenário “impensável” pode alterar radicalmente as regras do
jogo da aliança transatlântica e as perspectivas da própria economia global.
“Os mercados preparam-se para um voto que faz
o 'Brexit' parecer uma insignificância”, escreve Gillian Tett no Financial
Times. A britânica Economist, que decidiu tomar posição a favor de Hillary,
lembra o que seria Trump na Casa Branca. “A sua experiência, temperamento e
carácter tornam-no horrendamente inapto para ser o chefe de Estado de uma nação
da qual o mundo democrático espera liderança, o comandante-em-chefe das Forças
Armadas mais poderosas do mundo, e o indivíduo que controla a dissuasão nuclear
americana”. Seguem-se muitas outras razões mas, diz a revista, estas
chegam. Podemos acrescentar a sua oposição ao combate contra as alterações
climáticas ou a proliferação nuclear. É qualquer coisa de novo.
“As
eleições deste ano provocaram uma reviravolta da política externa americana,
mais dramática do que qualquer outra de que nos lembremos”, escrevem Molly
O’Tool e Dan de Luce na Foreign Policy. Preferir Obama a McCain, como
aconteceu em 2008, situava-se dentro do vasto terreno de cooperação entre os
dois lados do Atlântico. O mesmo entre Bush e John Kerry (2004), apesar do
desastre das guerras do anterior Presidente e das divisões que o “momento
unipolar da América” provocou entre os aliados europeus.
2. A Aliança Atlântica já
passou por muitas crises, já levou a cabo inúmeras missões militares desde o
fim da Guerra Fria, que venceu sem disparar um tiro. Foi tentando, com
razoável sucesso, adaptar-se às mudanças internacionais que aconteceram nos
últimos 25 anos. Já foi dada como moribunda, mas depois renasceu das cinzas.
Embora não goste de o admitir, a Europa continua a preferir viver sob
protecção americana. “A NATO é e continua a ser o principal instrumento
de segurança e defesa da Europa”, resume Mogherini na sua proposta de nova
estratégia de segurança europeia. Qualquer reforço da sua capacidade
militar autónoma (como a ideia de criar um Quartel-General em Bruxelas) não
dispensa o poder militar americano para lhe garantir a retaguarda.
E
não há, verdadeiramente, interesses fundamentais que não possam ser
partilhados. O Presidente Obama redescobriu a importância dos aliados
europeus com a crise na Síria e com a ofensiva russa na Ucrânia. A sua
preocupação estratégica com a China tem fundamentos sólidos, mas não chegou a
pôr em causa a importância da Europa para a manutenção de uma ordem
internacional favorável às democracias. O mundo tornou-se mais hostil aos
Estados Unidos. A Aliança sobreviveu sempre.
3. Os governos europeus
aprenderam com o "Brexit" que os cálculos lhe podem sair
completamente errados. Não perceberam os sinais. Estão pessimistas. Em
contrapartida, Hillary Clinton é uma velha conhecida. Os europeus precisam dela
para lidar com a Rússia e evitar as divisões europeias face a Putin. Mas também
precisam dela, embora não o admitam, para tentar evitar uma “descida aos
infernos”, que se arrisca e destruir um legado de 60 anos de integração e de
democracia.
Os
Estados Unidos foram uma poderosa força motora da integração europeia, porque
não queriam ter de voltar uma terceira vez ao velho continente para salvá-lo de
si próprio. Hoje, continuam a desempenhar esse papel unificador. Com tantos
problemas internacionais para resolver, Clinton, se ganhar, não quer ficar com
mais um. Dirá a Angela Merkel e a Theresa May para se entenderem rapidamente
sobre uma solução qualquer que não signifique o risco de desagregação ou uma
ainda maior fraqueza política e militar da Europa. Resumiu a sua visão da NATO
numa frase: a aliança é “um dos melhores investimentos que a América jamais fez”.
Se Trump ganhasse, disse ainda, “seria o Natal no Kremlin”.
Trump
pode ser mais destrutivo do que as guerras de Bush. O anterior
Presidente dividiu profundamente a Europa, provocando aquela que foi a maior
crise da relação transatlântica. Abriu feridas que pareciam incuráveis. Pouco
tempo depois, a Europa reconciliou-se com os Estados Unidos, a NATO sobreviveu
à fractura e desempenhou um papel relevante em Cabul e em Bagdad.
4.
Resta o “factor Putin”. A Aliança Atlântica chegou a criar
uma parceria com o Kremlin (1997), incluindo um Conselho NATO-Rússia criado
ainda no tempo de Ieltsin. Mas a ideia (que Putin chegou a admitir) de
construir uma arquitectura de segurança europeia que prescindisse da NATO (e
dos Estados Unidos) e englobasse todos os países, incluindo a Rússia, nunca
teve qualquer ressonância na Europa Ocidental.
Em
Maio de 2010, numa cimeira em Lisboa, a Aliança Atlântica convidou o Presidente
(intercalar) Dmitri Medvedev para sanar o mal-entendido sobre a questão da
defesa antimíssil que os americanos queriam instalar na Europa “por causa do
Irão” e criar um ambiente propício a uma coabitação pacífica. Obama e os
seus aliados proclamaram o fim da Guerra Fria. A então secretária de Estado
americana, Hillary Clinton, já tinha anunciado o “reset” nas relações com
Moscovo.
Foi
sol de muito pouca dura. Putin regressou em 2012 para anunciar uma política
revisionista da ordem internacional, proclamando que tencionava recuperar a
zona de influência da antiga União Soviética. Os aliados não tinham prestado
a devida atenção aos efeitos da invasão da Geórgia em 2008, embora tivessem
prometido uma pausa no alargamento da NATO, na última cimeira de Bush em
Bucareste. Foi preciso a crise ucraniana para tocar todos os alarmes.
Berlim alinhou com Washington na necessidade de levar a sério uma nova “ameaça”
à segurança europeia. As divisões quanto ao grau de reacção ocidental foram
silenciadas.
5. A NATO volta a ser olhada
pelos europeus como uma aliança essencial para garantir a sua segurança.
Nas duas últimas cimeiras (País de Gales e Varsóvia), a Aliança voltou a
tomar medidas para conter a ameaça na sua fronteira Leste, reforçando a
capacidade dissuasora. Admite ter de rever de novo o seu conceito
estratégico. Vê-se obrigada a tomar decisões que, sem serem exageradas, tentam
responder a cada escalada de Moscovo, sem se deixar cair na retórica da Guerra
Fria que Putin ressuscitou. Não é fácil.
São
múltiplas as sensibilidades dentro da própria Aliança. O equilíbrio da resposta
tem de ser milimetricamente avaliado. O Conselho da NATO acaba de aprovar um
conjunto de medidas destinadas a tranquilizar os países que estão sob a ameaça
mais directa de Putin, especialmente os Bálticos, funcionando como dissuasor de
qualquer aventura. Ter tropas da NATO e dos Estados Unidos nos Bálticos,
na Polónia ou na Roménia fará certamente Putin pensar duas vezes. “As novas
medidas defensivas serão um passo importante para reduzir as oportunidades da
Rússia para provocar instabilidade”, escreve Keir Giles, da Chatham House. O
número de soldados não é o mais importante. A presença de tropas alemães ou
britânicas e, sobretudo, americanas nesses países “torna muito mais complicado
para a Rússia decidir uma qualquer operação militar contra eles, sem envolver
imediatamente o resto da NATO”. Os factos consumados de Putin serão menos
tentadores. A Aliança não quer voltar a ser apanhada de surpresa, como
aconteceu na Crimeia.
É
neste quadro que as eleições americanas chocam de frente com a nova realidade
europeia. Trump promete pôr tudo em causa. O que quer isto dizer? Que
as tropas americanas saem da Europa? Que a corrida ao armamento nuclear
regressa sob a forma de proliferação? Ninguém tem a certeza de nada. Na
eventualidade de vencer, o “melhor” dos cenários seria uma América virada para
dentro de si própria, indiferente à sorte do mundo ou ao comércio
internacional. Até ao primeiro ataque terrorista. Até à derradeira provocação
de Putin. Até à completa fragmentação da União Europeia. Até…
Donald Trump, negócios e
alianças
14
de Janeiro de 2017
1. Nunca nos tempos modernos um
candidato venceu as presidenciais americanas com um programa tão vago
como o de Donald Trump. E raros terão suscitado tanta preocupação a
nível internacional. Que será a política America First? Nas primeiras
audiências no Senado, os ministros por ele escolhidos divergiram e deram a
ideia de uma teia de contradições e de nenhuma estratégia desenhada. Um dos
temas quentes é a questão das alianças e a própria concepção da política
externa. Ninguém sabe ao certo o que Trump fará, uma vez instalado na Casa
Branca.
A
campanha de Trump espalhou incerteza e insegurança, designadamente na Ásia e na
Europa, onde a maior potência do mundo surge como imprevisível e não fiável.
Durante a transição, Trump mudou ligeiramente de tom, o que o não impediu de
lançar um tweet “assassino” sobre os serviços secretos americanos: “Estamos a
viver na Alemanha nazi?” A CIA paga os seus erros sobre Saddam Hussein. Mas
que chefe de Estado se dá ao luxo de descredibilizar um dos instrumentos
básicos da sua política externa e de segurança — a informação?
“Com
este homem entramos em território desconhecido”, diz Elaine Karmack, da
Brookings Institution. “O mais interessante será ver se Trump dará atenção ao
que o seu Governo [pensa fazer].”
2. Dois exemplos do que se ouviu no
Senado. Rex Tillerson, indigitado para o Departamento de Estado, evitou
responder às perguntas mais embaraçosas, por precisar de conhecer “mais
factos”, e procurou manter-se alinhado pelas promessas de Trump. Mas
reconheceu que a espionagem russa durante a campanha não poderia ter sido feita
sem a aprovação de Vladimir Putin, condenou a invasão da Crimeia, defendeu a
manutenção das sanções à Rússia, apesar de prejudicarem a economia americana.
Deu a entender que a Rússia é a sua prioridade diplomática. Foi agressivo em
relação à China, o que provocou um azedo aviso de Pequim. Contornou a questão
da NATO, centrando-se na exigência de os aliados investirem mais na Defesa.
Quanto ao Irão, quer rever “profundamente” o acordo sobre o nuclear. Não
discorda do Acordo Trans-Pacífico (TPP) que o Presidente eleito prometeu
denunciar. Reconheceu ainda a importância das questões ambientais que Trump
despreza.
O
general James Mattis, escolhido para a Defesa, fez lembrar um “anti-Trump”.
Sublinhou a rigorosa fidelidade às alianças: “As nações com fortes aliados
prosperam, as que os não têm declinam.” Afirmou que o objectivo de Putin “é
tentar romper a Aliança Atlântica”. Condenou em “absoluto” a tortura e defendeu
o cumprimento do acordo nuclear com o Irão.
3. Um terceiro exemplo dos dilemas que
atravessam Washington. Thomas Graham, antigo diplomata e especialista na
Rússia, que fez parte do staff de George W. Bush e é director da Kissinger
Associates (consultoria internacional), tem sido apontado como um dos nomes
possíveis para embaixador em Moscovo. Não está eufórico com o rumo
das coisas. Disse ao The Washington Post: “Compreenderá Trump que as
negociações com a Rússia têm de ser feitas numa posição de força? Isto
significa que precisa de ter os aliados por trás de si. Estará Trump tão enamorado
de Putin que pense que basta sentar-se à sua frente e ter uma conversa, ou
deverá fazer como os outros presidentes? Deveria ir vê-lo no fim de uma viagem
à Europa, onde falaria com os aliados, estipulando como vai negociar com ele.
Para dizer a Putin: estamos preparados para ter em conta os seus interesses,
mas precisamos de que tenha em conta os nossos.”
4. A diplomacia clássica parece
muito longe da “diplomacia do negócio” (transactional diplomacy) preconizada
por Trump. Anota a revista The National Interest: “Ao contrário dos negócios
internacionais, a política externa e a segurança nacional envolvem questões de
guerra e paz e, por extensão, de vida e morte.”
Trump
e Tillerson, homens de negócios, partilham da moda da política
“transacional” ou contratual. Em lugar de se fundarem em instituições,
princípios e alianças estáveis, preferem os acordos ad hoc e temporários.
“É o método do business aplicado à diplomacia”, resume a analista italiana
Marta Dassù. “O deal com um adversário — a Rússia de Putin — pode ter
prioridade sobre a defesa de um aliado. Contam os interesses próprios
americanos; e conta menos a salvaguarda geral do sistema ocidental, com os seus
valores liberais e as instituições multilaterais.” O Ocidente contemporâneo
assenta nos compromissos americanos de defesa dos seus aliados. Ou seja: sem
liderança americana a noção de Ocidente arrisca-se a perder o sentido.
5. A conclusão das ideias que Trump
defendeu na campanha já produziram um efeito: “As garantias americanas
deixaram de ser fiáveis”, resume Mark Leonard, director do European
Council on Foreign Relations.
A
promessa de uma linha dura em relação à China é uma política arriscada.
Como único potencial candidato a disputar aos Estados Unidos a hegemonia
regional, Pequim dispõe de meios de retaliação perante Washington — não é
apenas uma “grande fábrica” exportadora, detém uma grande parte da dívida
americana.
A
política americana tem consistido em conter a hegemonia chinesa no Pacífico.
Este é o verdadeiro tabuleiro do “grande jogo” no Extremo-Oriente. O acordo
comercial TPP era um dos instrumentos dessa política. A perda de confiança
nas garantias americanas pode ter efeitos traumáticos no Japão e na Coreia do
Sul, acelerando a corrida aos armamentos. E ter ainda outro efeito perverso: a
tentação de aproximação à China por vários países do Sueste Asiático, como as
Filipinas e a Tailândia.
Acrescento
uma nota cáustica de Stephen Walt, da escola “realista” americana: “Negociar
com a China eficazmente exige resolução, julgamento ponderado, uma diplomacia
inteligente e consistente perante os vizinhos e um paciente trabalho
preparatório. É uma tarefa para profissionais experientes, e não para amadores
bombásticos viciados no Twiter.”
6. Se Trump conseguir realizar a
sua política russa, a primeira “baixa” será a Europa: ficará marginalizada.
Tenderá a dividir-se. Moscovo não apenas tentará restaurar a sua “esfera de
influência” nos países da antiga URSS como tentará ser um actor influente na
Europa Central e Oriental.
Os
próximos anos são perigosos. A começar por 2017, com o insolúvel problema da
imigração, o “Brexit”, a vaga populista e eleições na França e na Alemanha. As
capitais europeias tendem a dividir-se sobre a política russa. Estará Putin
presente nestas campanhas eleitorais?
Enfim,
a moeda tem um reverso. “Os ‘negócios’ [deals] não substituem os aliados e
tweets furiosos não restauram o poder e o prestígio”, conclui o analista Philip
Stephens no Financial Times. E pode acabar por se voltar contra os próprios
Estados Unidos: “America First parece-se muito com America Alone.”
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