sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Frei Bento Domingues O. P.



Na onda de espiritualidade favorecida pela leitura da descodificação da Bíblia, em tradução directa do grego, pela palavra elegante e criteriosa de Frederico Lourenço,  aliada à quadra natalícia que acabámos de passar, senti-me mais motivada para a leitura dos textos de Frei Bento Domingues publicados no Público, aos domingos, que geralmente ignorava, e encontro o que segue, de 30 de Novembro passado. A forma simples mas desassombrada de nele criticar o fundamentalismo religioso, mesmo da Igreja católica, despertou-me a curiosidade sobre a pessoa e procurei na Internet algum esclarecimento sobre Frei Bento. Leio que Frei Bento Domingues foi e é um religioso pouco submisso, mesmo aos convencionalismos da tradição católica - de obediência estrita aos ditames rigorosos e hirtos dos dogmatismos cristãos - o que confirmou a impressão colhida na leitura do artigo, sobre um espírito livre, com propostas próprias que passam pela reflexão das suas muitas fontes de conhecimento, como revela no seu texto  - “Não invocar o nome de Deus em vão”. Condena os fundamentalismos disparatados e medievalistas sobre os castigos divinos como forma de retaliação dos pecados, condena os populismos políticos que levaram à eleição assustadora de Trump, compara os textos das homilias litúrgicas com os textos de teor político do jornal “Público” (14/11/2016), anunciadores de catástrofe.
Curiosas e arrojadas as afirmações como “seguindo Tomás de Aquino, não temos nenhum conceito adequado para falar de Deus. A nossa linguagem é e permanece limitada. É uma linguagem terrestre para coisas terrestres.” ou “ é inexprimível: nós não sabemos o que é Deus em si mesmo; dele captamos, apenas, um esplendor fraco através do mundo criado e no decurso da nossa história no mundo, história feita de acontecimentos felizes e de tragédias. Não é só o Deus incognoscível, mas também as expressões ou os dogmas sobre Deus que pertencem, à sua maneira, ao objecto da fé.” ou “A auto-revelação de Deus é dada em experiências humanas interpretadas. Nunca temos acesso à “Palavra de Deus” de modo imediato. Estritamente falando, a Bíblia não é a Palavra de Deus, mas um conjunto de testemunhos de fé de crentes que se situam numa tradição particular da experiência religiosa.”É por isso que E. Schillebeeckx, no uso litúrgico, utiliza, o menos possível, a conclusão solene: “palavra do Senhor”, precisamente porque Deus nunca fala assim. São crentes que falam.” ou “A experiência cristã de Deus também não pode ser transmitida” e finalmente “Em qualquer caso, não podemos usar o nome de Deus em vão como legitimação das afirmações, frutos da nossa responsabilidade ou irresponsabilidade.»
É, realmente, um texto muito curioso, revelador de um espírito aberto e sábio.

Não invocar o nome de Deus em vão
Frei Bento Domingues
1. Apesar do Papa Francisco e das suas intervenções carregadas de humanidade divina, o fundamentalismo religioso, mesmo no seio da Igreja católica, não desarma. Panfletos como o da folha dominical de uma paróquia da Califórnia - votar no Partido Democrata é pecado mortal; declarações como a do padre italiano à emissora católica Rádio Maria- os sismos, em Itália, são um castigo divino pelas uniões civis dos homossexuais, ou as expressas à revista Família Cristã pela responsável da Associação de Psicólogos Católicos - um filho homossexual é como ter um filho toxicodependente, são afirmações que não pecam por muito inteligentes. Infelizmente há outras mais tóxicas. Cresce um mal-estar muito vasto não só em relação ao tom e ao conteúdo fundamentalista das homilias dominicais, como acerca das desastradas atitudes no acolhimento aos pedidos de baptismo e de casamento. Em certos casos, em vez de constituírem uma oportunidade de evangelização, resultam em afastamento e azedume contra a Igreja.
Talvez mais perigoso ainda, sob todos os pontos de vista, é o populismo político que tomou proporções alarmantes com a eleição do pobre Trump. Geralmente, há sempre queixas por os eleitos não cumprirem as promessas eleitorais. Neste caso, até os republicanos gostariam que ele não as cumprisse todas. O homem é um susto e a aliança com o Putin faz aquecer a guerra fria. A Europa, que teve momentos de lucidez, já não tem certezas de nada. Tudo pode acontecer.
Com perspectivas diferentes, existe uma curiosa coincidência de desassossego entre os textos de encerramento do ano litúrgico e os textos políticos do PÚBLICO [1] desta segunda-feira, em que escrevo.
2. Não vou regressar ao meu texto do Domingo passado. Dizem-me que gozei com a exclusão definitiva das mulheres ao sacerdócio, embora pelo baptismo sejam tão sacerdotes como os homens. As minhas razões eram e são de ordem teológica. Não são apenas minhas, que não teriam importância nenhuma. Como diz Edward Schillebeeckx[2], seguindo Tomás de Aquino, não temos nenhum conceito adequado para falar de Deus. A nossa linguagem é e permanece limitada. É uma linguagem terrestre para coisas terrestres.
Deus é inexprimível: nós não sabemos o que é Deus em si mesmo; dele captamos, apenas, um esplendor fraco através do mundo criado e no decurso da nossa história no mundo, história feita de acontecimentos felizes e de tragédias. Não é só o Deus incognoscível, mas também as expressões ou os dogmas sobre Deus que pertencem, à sua maneira, ao objecto da fé. Isto não implica, porém, de modo nenhum, que devam ser tratados em pé de igualdade.
A auto-revelação de Deus é dada em experiências humanas interpretadas. Nunca temos acesso à “Palavra de Deus” de modo imediato. Estritamente falando, a Bíblia não é a Palavra de Deus, mas um conjunto de testemunhos de fé de crentes que se situam numa tradição particular da experiência religiosa. É por isso que E. Schillebeeckx, no uso litúrgico, utiliza, o menos possível, a conclusão solene: “palavra do Senhor”, precisamente porque Deus nunca fala assim. São crentes que falam.
Isto significa que, se em todo o dogma uma verdade se exprime de facto, fá-lo, no entanto, sempre de modo defeituoso e historicamente condicionado. Enquanto expressão verbal da fé, o dogma pode mudar no decurso do tempo. A partir das nossas questões, a fidelidade ao Evangelho e aos dogmas da Igreja pode, por vezes, exigir de nós romper com a imagem ultrapassada do ser humano e do mundo, na qual a verdade evangélica foi outrora expressa.
Há aí uma missão importante de diálogo no seio do cristianismo, missão que constitui uma missão própria para os teólogos. O que nos é transmitido a partir do Antigo e do Novo Testamento são interpretações de experiências de Deus. Ora, experiências não podem ser comunicadas a outros enquanto experiência. Cada geração deve, ela mesma e de modo pessoal, fazer a experiência. A experiência cristã de Deus também não pode ser transmitida. Podemos apenas permitir que essas expressões e descrições se abram, em nós, como experiência pessoal. Só a partir do ponto de falhanço de todas as nossas palavras é que podemos falar do mistério divino. Mas nessa palavra, decifração rigorosa e tacteio razoável no seio das possibilidades culturais de compreensão, o Deus vivo já “se dirigiu” silenciosamente a nós, antes mesmo de termos podido exprimir a nossa experiência. São experiências humanas que são, no entanto, realmente suscitadas pelo Deus incompreensível, esse Deus activo, embora não intervenha nem se imponha.
3. E. Schillebeeckx, neste texto, como em várias das suas obras, diz as razões pelas quais um dogma pode mudar. A sua expressão já não serve para defender o que estava em causa quando foi formulado. Mas se um dogma pode mudar, quanto mais uma declaração que só é definitiva porque foi declarada como tal, mesmo que pretenda interpretar uma tradição secular.
Em qualquer caso, não podemos usar o nome de Deus em vão como legitimação das afirmações, frutos da nossa responsabilidade ou irresponsabilidade.

Nenhum comentário: