terça-feira, 17 de janeiro de 2017

O pão nosso de cada dia nos dai hoje



Estranho artigo o que segue, de António Barreto, feliz com uma paz de aparências, uma paz de corda bamba, sem rede, o estatelanço sempre previsível, uma paz de toda a maneira podre, num povo manietado em afectos e sorrisos, com muitos coelhos na manga e lencinhos variegados a sair da cartola ou da própria boca do histrião, que assim vai alimentando a nossa fé messiânica e desculpabilizante da nossa apetência pelas sopas e descanso, os mais activos e sabidos usando os seus próprios recursos ambiciosos, sem querer saber dos igualitarismos sociais ou do “amai-vos uns aos outros” da cartilha. Realmente, sente-se uma maior tranquilidade nas ruas, os sindicatos manipulados pelas esquerdas, menos irrequietos, agora que as esquerdas têm poder. O que prova que as esquerdas são o grande motor dos distúrbios, que não deixam governar, se estiver a “direita” ao comando, boicotando e desestabilizando. Não é o caso agora, diz António Barreto, que acha que a paz é mais construtiva.
E todavia, parece-me falsamente democrática, o que significa que não é pacífica, pois ostracizante, sob os nossos olhares indiferentes. É o caso de Alberto Gonçalves, retirado do seu lugar de cronista do mesmo jornal onde António Barreto exerce o seu lugar com a correcção necessária e por isso necessariamente e felizmente estável. Talvez por ser menos amante da paz, apesar do brilho de uma inteligência original, Alberto Gonçalves é despedido, sem respeito pelos cidadãos que lhe sentem a falta e que são muitos, e com idêntico desgosto ao que eu sinto, como se o DN dos domingos, tivesse perdido a auréola que me fazia ler em primeiro lugar, com avidez, a crónica de Alberto Gonçalves. Expulso sem guerra, com a frieza - e o cinismo - da paz superior, ou o mesmo maquiavelismo justificativo de todas as ditaduras, mesmo as dos falsos sorrisos democráticos exigentes de idênticos servilismos aos daquelas.
Desta vez gostei menos da crónica de António Barreto, do politicamente correcto, mas sem ter em conta as mutilações que vão sendo traçadas no nosso mundinho das conveniências, em que “É possível que a política actual saia muito cara. Que os problemas aumentem. Que não haja condições para o investimento futuro. Que os défices piorem. Que as taxas de juro aumentem. Tudo isso é possível. Mas é melhor chegar lá em paz do que em guerra social, em piores condições para resolver os problemas. O "quanto pior, melhor" nunca teve bons efeitos. Nunca resultou. A não ser para pior.”
Amen.

A luta e a paz
António Barreto
DN, 15/1/16   -  Sem Emenda
É uma velha questão política, filosófica e até estética. A paz é mais importante do que a guerra, tal como a unidade e o diálogo são mais necessários do que a luta e o combate. Mas a luta e a guerra merecem mais admiração do que a paz. Há frases e momentos na nossa história cultural bem reveladores desta dualidade. Por exemplo, o dito de Brecht segundo o qual "é violento o rio que tudo arrasta consigo, mas ninguém se lembra de dizer que são violentas as margens que o apertam". É uma espécie de emblema para a luta de classes e o combate permanente.
Aliás, são vários os hinos nacionais que, em vez de festejar a paz, o trabalho e a comunidade, glorificam o heroísmo bélico. O nosso louva a guerra e ordena cruamente que, "contra os canhões", se deve "marchar, marchar"... É o resultado da inspiração francesa, sempre a mesma, da horrenda A Marselhesa que promete que um dia "o sangue impuro" dos inimigos estrangeiros "encharque o nosso solo"!
De Mário Soares, nestes dias de homenagem, festejou-se a luta, raramente a paz. O combate, não o diálogo. É pena. Na verdade, o seu contributo para a paz foi o decisivo e o mais durável.
Os que alimentam esta obsessão pela luta garantem que com ela virá a libertação, a salvação, a dignidade e a liberdade... Mas esquecem evidentemente que a luta também dá guerra, violência, desordem, motim e morte de inocentes...
Vive-se em Portugal, há cerca de um ano, um agradável clima de paz social. Greves e perturbações diminuíram drasticamente com a tomada de posse deste governo. Foram desmobilizadas as brigadas de contestação espontânea e os grupos de arruaceiros que fizeram a vida negra a Passos Coelho e a Cavaco Silva. Eram poucos, mas eficientes. A cumplicidade das televisões, que necessitavam de material, era trunfo inestimável. O silêncio do PS, que esperava dividendos, ajudou à manutenção do clima de crispação.
Verdade seja dita que a situação económica e social, assim como a falta de perícia do governo, eram de molde a criar descontentamento. Mas já tínhamos vivido situações igualmente difíceis sem movimentos contestatários similares.
Passado pouco mais de um ano depois das eleições, a paz social é a regra. Os cuidados médicos ainda não melhoraram, mas a contestação é agora cordata. O funcionamento das escolas não é muito diferente, nem mais favorável ou eficaz, mas a controvérsia é agora afável. Os transportes públicos não conheceram uma evolução positiva, mas a perturbação no sector é inexistente. Em muitas áreas de altercação tradicional, como no universo dos precários, na função pública, nos portos ou nas universidades, vive--se pacificamente. Ainda bem. É melhor para o trabalho e a produção, para a qualidade de vida e a produtividade.
O Bloco tem grande influência nos meios de comunicação, na imprensa e nas televisões. E influencia os socialistas, sobretudo por razões culturais. Mas também por uma espécie de ciúme: os socialistas gostariam de parecer tão inteligentes quanto os bloquistas. Já o PCP tem indiscutível influência nos sindicatos e nas instituições públicas como os serviços de saúde e de educação, os funcionários, as magistraturas ou as polícias. Em conjunto com o PS e o governo, Bloco e PCP têm contribuído para criar um clima excepcional de paz social. O que é bom. Com ou sem crise, a paz social é sempre melhor do que a luta de classes, o conflito regional ou a guerra de religiões.
É possível que a política actual saia muito cara. Que os problemas aumentem. Que não haja condições para o investimento futuro. Que os défices piorem. Que as taxas de juro aumentem. Tudo isso é possível. Mas é melhor chegar lá em paz do que em guerra social, em piores condições para resolver os problemas. O "quanto pior, melhor" nunca teve bons efeitos. Nunca resultou. A não ser para pior.

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