sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Soares é fixe



Dois textos de João Miguel Tavares que o identificam como pessoa bem formada, pois, reconhecendo embora tantos erros e defeitos na figura de Mário Soares, soube valorizá-lo naquilo que nele foi mais significativo para a nação portuguesa - o ter sido o padrão da tal liberdade que ele sempre procurou e que implantou no país. De resto, pouco mais me pareceu ter sido, limitado nos seus discursos que não ultrapassavam o que se lhe pediu que dissesse, homem contente, que viveu com esses palavrões-chave do nosso status: democracia e liberdade.
Lembro-me duma entrevista a Felipe Gonzalez e a ele próprio, em que o discurso do primeiro ministro espanhol logo se superiorizou em conteúdo programático e eu senti íntima vergonha com o balbucio repetitivo de Mário Soares a respeito das conquistas do 25 de Abril, único alvo buscado, ao que parecia. E de facto, as tais democracia e liberdade logo fizeram despenhar o país no caminho da penúria, provavelmente por má direcção do bote, que tantos marinheiros se aprestaram a conduzir, nunca sem proveito próprio, contrariamente ao mesquinho do Salazar que do erário público apenas colheu aquilo a que tinha direito, ao que se diz, como funcionário probo de um país de penúria endividada, que convinha erguer do caos económico.
Mas são águas passadas. Mário Soares, quanto a mim, não foi mais do que o semeador de uma viragem de que foi símbolo, embora limitado, viageiro convicto, à custa do património, contador de histórias, avidamente colhidas por quem se lhe soube colar à ilharga, em subserviência admirativa ou apenas interesseira.
De qualquer maneira, também reparei na falta de comparência do povo português à última chamada, o que me fez pensar que o povo português é razoavelmente são de espírito. De facto, a Amália Rodrigues teve um funeral mais apoiado pelo amor de todos, mesmo dos que assistiam pela televisão. Apesar das lágrimas sinceras de muitos, embalados pelas referências que os meios mediáticos amplamente propalaram, escondendo sempre os lados negativos, endeusando a figura do bom “pastor”, só aparentemente paternalista, consumido que foi de ambição e azedume ou capricho disfarçados pelas conveniências sociais, que nos anos finais completamente se desmanchou em discursos pueris, convenientemente aceites pela imprensa servil.
De toda a maneira, concordo com João Miguel Tavares. Tão arreigado temos o sentimento da sua representatividade na transformação da nação, que também entendo que devíamos ter sido mais solidários, assistindo-o no último cortejo. Afinal, eu própria também chorei quando, de chofre, a minha filha me informou de que Mário Soares havia morrido, meia hora antes. Julgava-o imortal. Mas vai sê-lo.
Lembremos, uma vez mais, e em homenagem, Reinaldo Ferreira:

Receita para fazer um herói
Tome-se um homem,
Feito de nada, como nós,
E em tamanho natural.
Embeba-se-lhe a carne,
Lentamente,
Duma certeza aguda, irracional,
Intensa como o ódio ou como a fome.
Depois, perto do fim,
Agite-se um pendão
E toque-se um clarim.

Serve-se morto.

Por que foi tão pouca gente ao funeral de Soares?

É muito triste esta incapacidade de nos sentirmos em dívida para com os melhores de nós. E de lhes prestarmos o justo tributo enquanto tal.

João Miguel Tavares
Público, 12 de Janeiro de 2017

Não faltou nada ao funeral de Mário Soares. Honras de Estado. Três dias de luto nacional. Fotografias espalhadas pela capital. Altos dignitários. O rei de Espanha. Uma cerimónia impecavelmente organizada. Momentos íntimos e comoventes. A voz de Maria Barroso a declamar “Os dois sonetos de amor da hora triste”: “Quando eu morrer – e hei-de morrer primeiro/ Do que tu – não deixes de fechar-me os olhos / Meu Amor.” O belíssimo discurso de Isabel Soares. As televisões e as rádios em directo. Jornais e revistas desdobrando-se em homenagens. Não faltou nada. Excepto gente.
A desproporção entre a cerimónia oficial e a cobertura mediática, por um lado, e o número de pessoas na rua, por outro, foi tão gritante que Ferro Rodrigues veio justificar a falta de povo com o facto de ser “dia de trabalho” e de muitos estarem ali “em pensamento”. Mas quando os campeões europeus chegaram a Portugal a 11 de Julho também era dia de trabalho, e nem por isso o país deixou de sair à rua. “Hoje é feriado!”, proclamou Éder na Alameda. Não era. Mas parecia. Com Soares não se passou nada disso, e o argumento de que só o futebol faz mover multidões não colhe: o funeral de Cunhal, em 2005, foi acompanhado por um banho de gente, e as fotos da Avenida Morais Soares apinhada de bandeiras vermelhas impressionam. Como justificar este abismo na adesão popular?
Claro: existe a extraordinária capacidade de mobilização do PCP, e o facto de a devoção comunista estar mais próxima de um fenómeno religioso do que político. Mas existe um outro problema, mais complexo, e, a meu ver, mais grave: a incapacidade da nossa democracia em produzir os seus próprios heróis. Talvez como reacção ao excesso de ganga nacionalista do Estado Novo, e ao facto de a guerra colonial ter sido assimilada como desonra (e com boas razões para isso), nós olhamos para o século XX português e não encontramos vestígio de heróis políticos ou militares. Em parte, porque eles não existem. Em parte – Salgueiro Maia será o caso mais evidente – porque não fomos capazes de os construir e promover.
A monarquia acabou sem glória. A Primeira República foi um caos. A participação na Primeira Guerra foi patética. O Estado Novo foi uma ditadura de 40 anos. E a guerra colonial foi injusta. Qual é, afinal, o último grande herói político ou militar português? Talvez Mouzinho de Albuquerque, e mesmo esse matou-se a tiro na Estrada das Laranjeiras. Os meus filhos estão condenados a viverem com os heróis dos outros. Eles sabem quem foi Lincoln, Churchill e Roosevelt, em breve saberão quem foi De Gaulle ou Luther King, mas nenhum deles é capaz de nomear um herói português com menos de 400 anos.
Por muito que nos desmereçamos enquanto povo, não é possível que em meio milénio não tenhamos produzido figuras admiráveis e merecedoras da nossa devoção. Simplesmente, não fomos capazes de as inserir na narrativa do novo regime, seja através de livros, filmes, séries, monumentos, celebrações ou museus. Há um meio termo entre a propaganda patriótica à António Ferro e o nada – mas nós ainda não o encontrámos. Talvez seja o trauma pela perda do império. Talvez seja a falta de sucesso económico em democracia. Talvez seja a eterna desconfiança face ao Estado e a ausência de uma verdadeira sociedade civil. Não sei o que é. Mas sei que é muito triste esta incapacidade de nos sentirmos em dívida para com os melhores de nós. E de lhes prestarmos o justo tributo enquanto tal.

O meu Soares não foi o melhor Soares
Soares não teve sempre razão, mas teve razão nos momentos fundamentais, e essa é uma dívida inestimável que o país tem para com ele.

João Miguel Tavares
Público, 10 de Janeiro de 2017
Quando comecei a ouvir fado e a gostar de fado, no final dos anos 80, Amália Rodrigues era já uma sombra da extraordinária artista que revolucionara a canção de Lisboa nas décadas de 50 e 60. Os seus espectáculos ao vivo eram penosos e o que a minha geração conhecia dela eram as paródias nos programas do Herman – cabeleira postiça, braços abertos, queixo levantado, “palminhas, palminhas”. A grande Amália, a maior artista portuguesa do século XX, tinha de ser procurada nos discos antigos.
Quando comecei a escrever artigos de opinião, em 2003, Mário Soares era já uma sombra do extraordinário político que esteve na primeira linha da luta pela democracia e pela liberdade nos anos quentes da revolução, e que nunca abdicou de sonhar com um Portugal europeísta. A guinada à esquerda da década final da sua vida é tão penosa quanto os últimos espectáculos de Amália, e tenho muita pena que tudo o que eu próprio escrevi sobre Soares tenham sido textos ácidos e críticas virulentas. Ele incomodava-me tanto mais quanto o seu presente me parecia em total contradição com o seu passado. O grande Soares, o maior político da democracia portuguesa, pertence a uma História à qual já pouco assisti – mas é lá que ele tem de ser procurado.
Não digo isto por desrespeito à sua memória. Bem pelo contrário: é para que a minha geração, e as gerações mais novas do que a minha, que apenas conheceram ao vivo o fervoroso defensor de Hugo Chávez e de José Sócrates, mais os discursos apocalípticos sobre o Portugal da troika, a caminho de uma nova ditadura (dizia ele) e onde já havia mais pobreza do que no tempo do Salazar – o Soares da Aula Magna, enfim, e de tantos artigos inconcebíveis no Diário de Notícias –, esse Mário Soares não é aquele que mais importância tem, nem aquele que vai ficar nos livros de História. Pelos jornais, pelas rádios e pelas televisões só têm praticamente desfilado pessoas que o conheceram nas décadas de 60, 70 ou 80. Abaixo dos 40 anos de idade, e muito em particular à direita, aquilo que eu noto é uma cortina de silêncio incómodo, composta por gente que não está para o elogiar porque não suportou os seus últimos 20 anos de vida, mas também não o quer criticar por respeito à sua morte.
Ora, Soares merece muito mais do que esse silêncio compungido, atitude que sempre declinou. Há que recusar a tese idiota de que Soares teve sempre razão, mesmo quando não o compreendíamos – porque Soares nem sempre teve razão, e no final da vida quase nunca teve razão –, tal como há que recusar a menorização do seu papel histórico, como se não tivesse sido ele a construir a primeira linha de resistência ao comunismo. Soares não teve sempre razão, mas teve razão nos momentos fundamentais, e essa é uma dívida inestimável que o país tem para com ele. Claro que é possível compor uma longa lista de amigos desagradáveis, favores suspeitos e casos mal explicados, tal como é possível considerar que Soares sempre agiu como pai do regime, e que – pior – o regime sempre o tratou como pai, dispensando-o de um escrutínio que reservava aos outros. É triste, mas é humano. O mais importante está longe de ser isso. O mais importante é aquilo que está escrito na nota que o Partido Comunista Português escreveu acerca da sua morte. Soares, lamenta o PCP, destacou-se “no combate ao rumo emancipador da Revolução de Abril”. Acreditem: não há mais belo obituário. É por causa desse combate que todos devemos tanto a Mário Soares.

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