Foi
o que disse a nossa amiga em largos gestos e a voz ampla, como é seu hábito,
quando expõe uma surpresa importante. Falou-se dos próximos peregrinos de
Fátima que passarão os nove milhões, o que se vai tornar extremamente perigoso,
sabendo-se que não somos muito mais do que dez milhões cá, e nem todos
nacionais. Eu senti-me esmagada, mas ela repetiu radiante: «É o nosso
petróleo!» É certo que depressa abandonarão o terreno, quantos deles até
sem pagarem estalagem, que não deve haver albergues para todos. O Papa
Francisco não se demora, vem só para a missa e o sermão, segundo explicou, e
certamente que os peregrinos irão depois dele, esperemos que sem grandes
atropelos. Foi por isso que eu contestei a questão do petróleo, embora a
minha irmã, com simplicidade, também tenha
frisado que as aparições verdadeiras ou falsas de Fátima desde sempre se tornaram
uma mina para o Estado Português. Eu aproveitei para falar na canonização
próxima da irmã Lúcia, e a nossa amiga referiu coisas que tinha apanhado na
Sic, primeiro, sobre uma jornalista que escreveu um livro chamado “Fátima.
Os pastorinhos e a construção”, julgo que destruidor do mito, sobre o
que os pastorinhos viram de facto e o que se recriou a propósito disso,
aproveitando-se os seus criadores da ignorância do povo, como a nossa amiga
frisou com alguma ferocidade; segundo, falou nas cartas que a Irmã Lúcia recebeu
em vida - “Era tanto o papel que tiveram que o queimar” o que eu achei
uma profanação, pois algumas das cartas deveriam conter referências a milagres
por intermédio dela, que serviriam de fontes para investigações biográficas futuras.
Na questão do petróleo, afirmei ainda que, se Fátima nos fornecia assim
dinheiro, era esse um verdadeiro milagre e só lamentei não sermos nós as três beneficiadas
do turismo evangélico miraculoso, mas a sorte não é para todos, é mais que
sabido, não devemos queixar-nos, que até parece mal, quando há tanta gente em
situações afrontosamente mais tramadas, além de que no meu caso pessoal o
dinheiro esvair-se-ia rapidamente, como de costume, e nem valeria a pena
recolhê-lo.
Falou-se
também da morte, das pessoas que continuam a arrastar-se de joelhos, lá em
Fátima, o que a minha irmã considerou coisa impossível para ela, por lhe doerem
os joelhos e eu coisa impossível para mim, a quem o peso e a idade impedem que
me arraste assim, ou sequer mesmo só o ajoelhar-me, ou subir a uma cadeira, eu
que fui corredora de pé cheio! Quanto à
nossa amiga, embora mais disponível fisicamente, não parece disposta a arrastar-se, ainda hoje
adepta dos passeios a pé, para manutenção da forma invejável que apresenta. Mas a
propósito de morte, logo ela, sempre de estilete afiado, acrescentou:
-
Não há ninguém que consiga ficar cá, apesar de ir a Fátima. Nem a Lúcia.
Ainda repontei que se vai a Fátima não para se não morrer
mas para se não sofrer tanto, ou para escapar só dessa vez, ou mesmo para
agradecer a cura, conquanto seja esta por vezes da responsabilidade do médico,
nunca se sabe bem. A minha irmã também lá foi quando o meu pai adoeceu e
trouxe-nos estatuetas da Nossa Senhora de
Fátima, que eu tenho em profusão, por ter herdado as dos meus pais, e uso-as no
meu quarto a resguardar os filhos e netos nas suas fotos, em fila arredondada,
mesmo sem as coroas, que se perderam nas mudanças, mas como vivemos em
democracia, a Nossa Senhora não estranhará, tal como a da ceia do Garrinchas.
De qualquer modo, acho a figura da Senhora muito bonita, mesmo sem coroa, a
lembrar-me os versos de Antero: «Ó
visão, visão triste e piedosa! / Fita-me assim calada, assim chorosa… / E
deixa-me sonhar a vida inteira!”, embora não fosse esta ainda do
conhecimento de Antero. Mas falou-se outra vez de Lúcia, prestes a ser
canonizada, e eu lembrei a sua vida de carmelita, sempre prisioneira. E a nossa amiga, uma vez mais, fez
transparecer o seu ateísmo ferrenho de moça que teve uma mocidade alegremente
descontraída, de reuniões e danças e matinés e mergulhos com os seus amigos e
amigas na piscina dos Velhos Colonos:
-
Sim, os outros dois pastores morreram cedo, mas esta, lá no convento, sem poder
sequer apanhar ar!
Julgo
que é este mundo em que vivemos o responsável pela sua ironia, de receio amargo
do futuro.
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