O
Público não permite mais a reprodução dos seus artigos por
transposição imediata através dos espaços cibernéticos, e tenho pena. E nem mesmo
a sua leitura. Agarro neste que a minha irmã me trouxe, de 7 de Fevereiro, que
vem cheio daqueles nomes e daqueles textos em que conviria meditar, pelas
mensagens de sabedoria ou de reflexão moral que se coadunam com o nosso
pensamento e não posso transcrevê-los na íntegra, por indisponibilidade de
tempo, na sequência de uma imediata adesão e prazer que me fariam guardá-los no
meu blogue. Em próximo texto expurgarei aqui e ali alguns passos desses
autores, e reservo para hoje Bagão Félix e a cópia, na íntegra, do seu
texto sobre a eutanásia, pela prioridade de um tema que, como sempre, as
intelectualidades avançadas, que prezam muito, ao que dizem, a liberdade do
Homem - (no caso em foco, não se sabe bem qual é esse Homem, se o moribundo se o que o assiste) - querem trazer à baila para aceitação pública, por muito que isso repugne
os espíritos da maioria dos mortais, para todos os efeitos obrigando alguém -
quanto mais não seja o médico que assiste ao passamento - a assumir o estatuto
de assassino, pese embora os
considerandos piedosos ou puramente egoístas da família exausta do doente
terminal. Não me alargo em considerandos, Bagão Félix é suficientemente claro,
na sua análise elegante e serenamente contida, mesmo na indignação, para
justificar os seus pontos de vista íntegros, que, em qualquer outra pessoa da
mesma opinião mas de menos porte superior e mais inclinada às expressões
emotivas de desagrado, logo descambariam
em doestos do tipo dos do romântico Tomás de Alencar, no jantar do Hotel Central,
falando da escola naturalista: “Rapazes não se mencione o excremento!”,
ou: “Vocês estão gastando cera com ruins defuntos, filhos. O realismo
critica-se deste modo: mãos no nariz! Eu quando vejo um desses livros,
enfrasco-me logo em água de colónia. Não discutamos o “excremento” (Eça de Queirós, "Os Maias", cap. VI).
Mas
tal como o realismo se impôs, por muitos volteios que a literatura tenha seguido,
posteriormente, é possível que os mentores da eutanásia consigam impor na nossa
sociedade lusíada modernizada a legalização da eutanásia, como já o fizeram com
a do aborto, sem que lhes pese na consciência um sentimento de repúdio pelo
crime implícito legalizado e descartável para cima do médico, que em juramento de
formatura afirmara o seu respeito pela vida humana.
A
título de curiosidade, transcrevo da Internet um passo do “Juramento de
Hipócrates” da versão original de 1771, segundo o modelo grego (séc. V
a. C), atribuído ao “pai da Medicina”, escrito em Lausanne, do original do grego:
«A vida que professar será para benefício dos doentes e para o meu
próprio bem, nunca para prejuízo deles ou com malévolos propósitos. Mesmo
instado, não darei droga mortífera nem a aconselharei; também não darei
pessário abortivo às mulheres. E, na versão de 1983, usada atualmente
em Portugal no momento em que o clínico é admitido como Membro da Profissão
Médica: «Guardarei respeito absoluto pela Vida Humana desde o seu início,
mesmo sob ameaça e não farei uso dos meus conhecimentos Médicos contra as leis
da Humanidade.»
Leiamos António Bagão Félix:
No princípio era a eutanásia…
Porquê tanta pressa? Temos a figura do “testamento vital”,
ainda a dar os primeiros passos e quer acelerar-se tudo isto em nome de quê?
7 de Fevereiro de 2017
Eutanásia.
Assunto transversal à ética, medicina, filosofia, ciência, direito, religião. À
vida, em suma. Complexo, pela sua própria natureza e pela discussão em
abstracto, face ao enfrentamento em concreto.
Numa visão Cristã, a vida é um dom de Deus.
Somos usufrutuários, não donos do nosso corpo. A vida é para a pessoa, mas não
pertence à pessoa. Porém, não se trata de um assunto que se
esgote no plano religioso. Longe disso.
O
que mais confrange nestes debates é o simplismo, a superficialidade, a
trivialização, a generalização abusiva.
Escreveu
Jean Guitton: «Há boas mortes, acolhidas e preparadas na
sabedoria e na esperança, e más mortes impostas na revolta e no medo. Sim, a
maneira de preparar a morte é verdadeiramente uma virtude ou o seu contrário.»
A
eutanásia tem sido definida como “uma intervenção ou omissão deliberadas,
com a intenção de terminar a vida de alguém, a seu
pedido
(informado, consciente e reiterado), quando este apresente sofrimento
intolerável, estando em fim de vida (sublinhados meus).
Os defensores da legalização da eutanásia
falam de evitar sofrer inutilmente através de uma morte digna e assistida.
Por
mais cuidado do legislador, são facilmente perceptíveis a ambiguidade de
conceitos, a ténue linha entre uso e abuso, e a corrosão da fronteira entre a
ética e deontologia do cuidar e a de não matar. É que não se trata só da
liberdade de morrer, mas da necessidade de alguém que mate, decretada pelo
Estado. É isto avanço civilizacional? Inconstitucional, é-o, sem dúvida (“a
vida humana é inviolável, artº 24 da CRP).
O
que é sofrimento intolerável? Como se mede? O que comporta para além da dor?
E diante de cuidados paliativos mais eficazes e do avanço da medicina,
como se define a fronteira do sofrimento inútil? Estes conceitos, aliás, resvalam danosamente,
como o comprova o abuso da lei na Holanda (não esquecendo que, também aqui, a “oferta” aumenta a “procura”).
E estará o legislador tão seguro de formular uma norma inatacável sobre a
natureza livre, consciente e informada do pedido de eutanásia? O desabafo da “vontade de morrer” não exprime,
por omissão, o pedido de ser eutanasiado.
Tem
havido muita confusão de conceitos, pondo tudo no mesmo saco: eutanásia
activa e passiva, ortotanásia, obstinação terapêutica. Sobre esta, cito a
própria posição da Igreja Católica: «A cessação de tratamentos médicos
onerosos, perigosos, extraordinários ou desproporcionados aos resultados
esperados pode ser legítima. É a rejeição do “encarniçamento terapêutico”. Não
que assim se pretenda dar a morte; simplesmente se aceita o facto de a não
poder impedir. As decisões devem ser tomadas pelo paciente se para isso tiver
competência e capacidade; de contrário, por quem para tal tenha direitos
legais, respeitando sempre a vontade razoável e os interesses legítimos do
paciente (…). O uso dos analgésicos para aliviar os sofrimentos do moribundo,
mesmo correndo-se o risco de abreviar os seus dias, pode ser moralmente
conforme com a dignidade humana, se a morte não for querida, nem como fim nem
como meio, mas somente prevista e tolerável como inevitável.»
Porquê tanta pressa? Temos a figura do “testamento vital”, ainda a
dar os primeiros passos, e quer acelerar-se tudo isto em nome de quê?
Face à “inutilidade do sofrimento” na “sociedade de cansaço”, quem
garante que certas expressões de envelhecimento e dependência não se seguirão,
em nome de um pretenso “avanço civilizacional”?
Nestas matérias, sabe-se como se começa, nunca como se acaba.
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