quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Eutanásia, um nome bonito para uma prática assassina



O Público não permite mais a reprodução dos seus artigos por transposição imediata através dos espaços cibernéticos, e tenho pena. E nem mesmo a sua leitura. Agarro neste que a minha irmã me trouxe, de 7 de Fevereiro, que vem cheio daqueles nomes e daqueles textos em que conviria meditar, pelas mensagens de sabedoria ou de reflexão moral que se coadunam com o nosso pensamento e não posso transcrevê-los na íntegra, por indisponibilidade de tempo, na sequência de uma imediata adesão e prazer que me fariam guardá-los no meu blogue. Em próximo texto expurgarei aqui e ali alguns passos desses autores, e reservo para hoje Bagão Félix e a cópia, na íntegra, do seu texto sobre a eutanásia, pela prioridade de um tema que, como sempre, as intelectualidades avançadas, que prezam muito, ao que dizem, a liberdade do Homem - (no caso em foco, não se sabe bem qual é esse Homem, se o moribundo se o que o assiste) - querem trazer à baila para aceitação pública, por muito que isso repugne os espíritos da maioria dos mortais, para todos os efeitos obrigando alguém - quanto mais não seja o médico que assiste ao passamento - a assumir o estatuto de assassino, pese embora  os considerandos piedosos ou puramente egoístas da família exausta do doente terminal. Não me alargo em considerandos, Bagão Félix é suficientemente claro, na sua análise elegante e serenamente contida, mesmo na indignação, para justificar os seus pontos de vista íntegros, que, em qualquer outra pessoa da mesma opinião mas de menos porte superior e mais inclinada às expressões emotivas de desagrado,  logo descambariam em doestos do tipo dos do romântico Tomás de Alencar, no jantar do Hotel Central, falando da escola naturalista: “Rapazes não se mencione o excremento!”, ou: “Vocês estão gastando cera com ruins defuntos, filhos. O realismo critica-se deste modo: mãos no nariz! Eu quando vejo um desses livros, enfrasco-me logo em água de colónia. Não discutamos o “excremento” (Eça de Queirós, "Os Maias", cap. VI).
Mas tal como o realismo se impôs, por muitos volteios que a literatura tenha seguido, posteriormente, é possível que os mentores da eutanásia consigam impor na nossa sociedade lusíada modernizada a legalização da eutanásia, como já o fizeram com a do aborto, sem que lhes pese na consciência um sentimento de repúdio pelo crime implícito legalizado e descartável  para cima do médico, que em juramento de formatura afirmara o seu respeito pela vida humana.

A título de curiosidade, transcrevo da Internet um passo do “Juramento de Hipócrates” da versão original de 1771, segundo o modelo grego (séc. V a. C), atribuído ao “pai da Medicina”, escrito em Lausanne, do original do grego: «A vida que professar será para benefício dos doentes e para o meu próprio bem, nunca para prejuízo deles ou com malévolos propósitos. Mesmo instado, não darei droga mortífera nem a aconselharei; também não darei pessário abortivo às mulheres. E, na versão de 1983, usada atualmente em Portugal no momento em que o clínico é admitido como Membro da Profissão Médica: «Guardarei respeito absoluto pela Vida Humana desde o seu início, mesmo sob ameaça e não farei uso dos meus conhecimentos Médicos contra as leis da Humanidade.»

Leiamos  António Bagão Félix:
No princípio era a eutanásia…
Porquê tanta pressa? Temos a figura do “testamento vital”, ainda a dar os primeiros passos e quer acelerar-se tudo isto em nome de quê?
7 de Fevereiro de 2017
Eutanásia. Assunto transversal à ética, medicina, filosofia, ciência, direito, religião. À vida, em suma. Complexo, pela sua própria natureza e pela discussão em abstracto, face ao enfrentamento em concreto.
 Numa visão Cristã, a vida é um dom de Deus. Somos usufrutuários, não donos do nosso corpo. A vida é para a pessoa, mas não pertence à pessoa. Porém, não se trata de um assunto que se esgote no plano religioso. Longe disso.
O que mais confrange nestes debates é o simplismo, a superficialidade, a trivialização, a generalização abusiva.
Escreveu Jean Guitton: «Há boas mortes, acolhidas e preparadas na sabedoria e na esperança, e más mortes impostas na revolta e no medo. Sim, a maneira de preparar a morte é verdadeiramente uma virtude ou o seu contrário.»
A eutanásia tem sido definida como “uma intervenção ou omissão deliberadas, com a intenção de terminar a vida de alguém, a seu
pedido (informado, consciente e reiterado), quando este apresente sofrimento intolerável, estando em fim de vida (sublinhados meus).
 Os defensores da legalização da eutanásia falam de evitar sofrer inutilmente através de uma morte digna e assistida.
Por mais cuidado do legislador, são facilmente perceptíveis a ambiguidade de conceitos, a ténue linha entre uso e abuso, e a corrosão da fronteira entre a ética e deontologia do cuidar e a de não matar. É que não se trata só da liberdade de morrer, mas da necessidade de alguém que mate, decretada pelo Estado. É isto avanço civilizacional? Inconstitucional, é-o, sem dúvida (“a vida humana é inviolável, artº 24 da CRP).
O que é sofrimento intolerável? Como se mede? O que comporta para além da dor? E diante de cuidados paliativos mais eficazes e do avanço da medicina, como se define a fronteira do sofrimento inútil? Estes conceitos, aliás, resvalam danosamente, como o comprova o abuso da lei na Holanda (não esquecendo que, também aqui, a “oferta” aumenta a “procura”). E estará o legislador tão seguro de formular uma norma inatacável sobre a natureza livre, consciente e informada do pedido de eutanásia? O desabafo da “vontade de morrer” não exprime, por omissão, o pedido de ser eutanasiado.
Tem havido muita confusão de conceitos, pondo tudo no mesmo saco: eutanásia activa e passiva, ortotanásia, obstinação terapêutica. Sobre esta, cito a própria posição da Igreja Católica: «A cessação de tratamentos médicos onerosos, perigosos, extraordinários ou desproporcionados aos resultados esperados pode ser legítima. É a rejeição do “encarniçamento terapêutico”. Não que assim se pretenda dar a morte; simplesmente se aceita o facto de a não poder impedir. As decisões devem ser tomadas pelo paciente se para isso tiver competência e capacidade; de contrário, por quem para tal tenha direitos legais, respeitando sempre a vontade razoável e os interesses legítimos do paciente (…). O uso dos analgésicos para aliviar os sofrimentos do moribundo, mesmo correndo-se o risco de abreviar os seus dias, pode ser moralmente conforme com a dignidade humana, se a morte não for querida, nem como fim nem como meio, mas somente prevista e tolerável como inevitável.»
Porquê tanta pressa? Temos a figura do “testamento vital”, ainda a dar os primeiros passos, e quer acelerar-se tudo isto em nome de quê? Face à “inutilidade do sofrimento” na “sociedade de cansaço”, quem garante que certas expressões de envelhecimento e dependência não se seguirão, em nome de um pretenso “avanço civilizacional”?
Nestas matérias, sabe-se como se  começa, nunca como se acaba.

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