terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Não é de estranhar



Sempre houve distinções na sociedade, é um facto. A própria matemática, que se baseia na Natureza, tem diferentes sinais para indicar os tamanhos, de árvores gigantes e outras raquíticas ou médias, de flores airosas e outras mais humildes, embora com a sua beleza e o seu perfume próprios. Diferem os tamanhos entre o infinitamente grande e o infinitamente pequeno, já nem é preciso irmos a Pascal para o percepcionarmos, e até porque também os antigos já tinham chegado ao átomo. Por isso não devíamos ser tão exigentes na questão das igualdades, com que nos deslumbrámos quando instituímos a democracia, em que tudo quisemos demolir e aplainar para ficar tudo semelhante, num meio termo viscoso e flácido, sem altos nem baixos de muita evidência, adeptos que somos do meio termo modesto e virtuoso. Eu volto a lembrar, a propósito, a conclusão de uma peça que escrevi, (que a democracia em que nos mantemos não permite erguer da obscuridade), e que foi escrita por alturas da época a que se refere António Barreto, sobre o panorama que então vivíamos, de atropelamento e extorsão e reforma agrária de ocupação. Chama-se a peça Exercício Escolar, que incluí nos meus Cravos Roxos, única forma de a ver publicada, embora a Santelmo, que publicou o Livro, tenha encerrado, e me devolvesse os livros, cuja edição paguei com a ajuda materna, o meu pai já tendo falecido, a quem eu tantas vezes lia esses textos ditados pela mesma excitação nervosa que dita hoje os de António Barreto, numa seriedade de muita tristeza. Repito, pois, em harmonia com a sua indignação:
«FINAL: Coro do Partido: “Neste país transformado / Por revolução de flores / Que aniquilou prepotências / E irmanou ricos e pobres /Trabalhadores e gestores / Num ideal renovado / De comum realização / Só se escuta o martelar / Dos malhos dos ferradores / Dos maços dos calceteiros / E os gritos dos operários / E os olés dos boieiros / E o chocalhar das ovelhas / E os protestos dos doutores / E os risos dos proletários / E os discursos partidários / E o gorjear dos cantores. / Pelas ruas transformadas / Em caminhos pedregosos / Onde as flores são espontâneas / E os frutos tão saborosos, / Brotam as almas mais cândidas / E os sentimentos mais soltos. Eis a mensagem, senhores, / Da nossa festa das flores. (Assim fenece a farsa)»
Não é verdade, contudo, isso que escrevi. Os caminhos não se tornaram pedregosos, antes pelo contrário, até se fizeram muitas vias e se alindou o país. É certo que com dinheiros estrangeiros de uma Europa milagrosa então, que possibilitou, naturalmente, cada vez mais desigualdades, pela tendência à fuga à massificação igualitária, que os franceses defenderam e a nós chegaram dois séculos mais tarde. Não vamos explorar isso.
O certo é que as nossas encrencas pecuniárias, juntamente com a arrogância que faz que os donos do poder tomem as decisões da sua desonestidade - foi assim no absolutismo, no desequilíbrio das classes sociais, é assim hoje, no desequilíbrio das contas, que permitem vencimentos indecorosos e outros de miséria - resolvam penetrar nas contas dos milionários, muitas das quais resultam de trabalho sério, que deviam ser tomadas a sério e não pesquisadas como hoje se faz nos julgamentos miseráveis televisivos de um país que continua a alimentar-se espiritualmente de programas festivaleiros - de comezainas, de devassas nas vidas, de palhaçadas tribunícias sem nenhum pudor.
Julgo que tudo isso vem de uma falta de preparação já muito antiga, faz parte do nosso carisma provinciano, não há que fugir. António Barreto explica.
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Fora da Caixa
António Barreto
DN, 19/2/2017,   SEM EMENDA
Com, provavelmente, mais revelações inesperadas e, certamente, mais uma comissão de inquérito, teremos folhetim por muito tempo. Até que algo importante e perigoso aconteça e o governo tenha medo, as oposições, esperança e os aliados, dúvidas, altura em que todos esquecerão a Caixa e navegarão para novos mares. Como é costume, deixarão, então, armários cheios de esqueletos incólumes, ilesos e inocentes. Até lá, ainda teremos réplicas ad nauseam...
Tentando pensar out of the box, como se diz. É preocupante saber que haja quem entenda, nas esferas poderosas, que se pode não respeitar a lei ou fazer uma lei que se aplica para trás ou aprovar uma lei para contemplar um caso. É inquietante ver como a algazarra sobre este assunto passa por cima de princípios fundamentais e se aceitam dogmas horríveis mas comummente aceites. Por exemplo, a ideia de que o poder político está acima de tudo, do poder económico, da moral, da religião e do direito. Para não dizer da palavra dada e da honra. Outra, a ideia de que os direitos individuais estão abaixo dos direitos colectivos. Dito de outra maneira, o interesse da comunidade está acima dos direitos individuais. Estas ideias não nasceram lá, mas foram alimentadas pelas "luzes", pela Revolução Francesa, pelo jacobinismo e pelo comunismo. E parecem hoje reinar, sem obstáculos, na política contemporânea, sendo esta uma mistura de nobres ideias (a democracia por exemplo) com nefastos valores (a cupidez e o poder absoluto da decisão política).
Tem-se tratado do governo, isto é, dos últimos governos, incluindo o actual, como se tivessem toda a legitimidade para intervir na banca e nas finanças, como se tivessem a obrigação de intervir, como se fosse necessário tomar conta, proteger, esbulhar, nacionalizar... Fizeram o que quiseram com o BES, a Caixa, o BPN e outros bancos e deixaram fazer o que lhes convinha. Deixaram correr o marfim em casos excepcionalmente graves, até ao afundamento de algumas das melhores empresas portuguesas. Compraram e venderam, deixaram comprar e vender, conforme lhes interessava politicamente (e talvez pessoalmente, nunca saberemos...).
De modo semelhante, pede-se ao governo e às autoridades constitucionais que tenham uma intervenção nas empresas e na vida das pessoas. Que se exija a declaração de rendimentos em cargos eleitos parece uma regra razoável, embora já intrusiva. Que essa exigência se estenda aos gestores é já problemático. O governo solicita a colaboração de pessoas, fica-lhes a dever um contributo valioso (caso contrário não teria pedido...) e depois põe condições que ultrapassam os quadros e o tempo dessa colaboração? E por que não aos 700 mil funcionários públicos? E por que não a todos os cidadãos e empresas que têm relações com o Estado?
A verdade é que reconhecemos ao Estado cada vez mais poderes, competências intrusivas e capacidades de condicionamento da vida dos cidadãos. Como lhe conferimos o direito de taxar o que, como e quando os governantes entenderem, para tanto basta precisar de dinheiro! Como ainda lhe atribuímos faculdades para interferir na vida económica dos cidadãos, das famílias e das empresas, sob o signo de princípios tão doces como o de "ir buscar o dinheiro onde ele está" ou "ir tirar o dinheiro a quem o tem". Como aceitamos, em nome do interesse geral, que os governantes possam preferir capitalistas, seleccionar bancos, chegar-se a predadores e liquidar empresas outrora poderosas.
Abusar dos indivíduos, a título do interesse comum. Condicionar a vida privada dos cidadãos, em nome do bem de todos. Pôr em risco poupanças pessoais, como se fossem fortunas ilegítimas. Desrespeitar os bens de cada um, como se tudo fosse de todos. Retorcer o Estado de direito, a benefício da política. Eis algumas regras de vida, insuportáveis, que estão a forjar um mundo detestável.


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