Sempre houve distinções
na sociedade, é um facto. A própria matemática, que se baseia na Natureza, tem
diferentes sinais para indicar os tamanhos, de árvores gigantes e outras raquíticas ou médias,
de flores airosas e outras mais humildes, embora com a sua beleza e o seu
perfume próprios. Diferem os tamanhos entre o infinitamente grande e o
infinitamente pequeno, já nem é preciso irmos a Pascal para o percepcionarmos, e
até porque também os antigos já tinham chegado ao átomo. Por isso não devíamos
ser tão exigentes na questão das igualdades, com que nos deslumbrámos quando
instituímos a democracia, em que tudo quisemos demolir e aplainar para ficar
tudo semelhante, num meio termo viscoso e flácido, sem altos nem baixos de
muita evidência, adeptos que somos do meio termo modesto e virtuoso. Eu volto a
lembrar, a propósito, a conclusão de uma peça que escrevi, (que a democracia em
que nos mantemos não permite erguer da obscuridade), e que foi escrita por
alturas da época a que se refere António Barreto, sobre o panorama que
então vivíamos, de atropelamento e extorsão e reforma agrária de ocupação.
Chama-se a peça Exercício Escolar, que incluí nos meus Cravos Roxos, única
forma de a ver publicada, embora a Santelmo, que publicou o Livro, tenha
encerrado, e me devolvesse os livros, cuja edição paguei com a ajuda materna, o
meu pai já tendo falecido, a quem eu tantas vezes lia esses textos ditados pela
mesma excitação nervosa que dita hoje os de António Barreto, numa seriedade de muita tristeza. Repito, pois, em
harmonia com a sua indignação:
«FINAL: Coro do
Partido: “Neste país transformado / Por revolução de flores / Que
aniquilou prepotências / E irmanou ricos e pobres /Trabalhadores e gestores
/ Num ideal renovado / De comum realização / Só se escuta o martelar / Dos
malhos dos ferradores / Dos maços dos calceteiros / E os gritos dos operários /
E os olés dos boieiros / E o chocalhar das ovelhas / E os protestos dos
doutores / E os risos dos proletários / E os discursos partidários / E o
gorjear dos cantores. / Pelas ruas transformadas / Em caminhos pedregosos /
Onde as flores são espontâneas / E os frutos tão saborosos, / Brotam as almas
mais cândidas / E os sentimentos mais soltos. Eis a mensagem, senhores, / Da
nossa festa das flores. (Assim
fenece a farsa)»
Não é verdade, contudo,
isso que escrevi. Os caminhos não se tornaram pedregosos, antes pelo contrário,
até se fizeram muitas vias e se alindou o país. É certo que com dinheiros
estrangeiros de uma Europa milagrosa então, que possibilitou, naturalmente,
cada vez mais desigualdades, pela tendência à fuga à massificação igualitária,
que os franceses defenderam e a nós chegaram dois séculos mais tarde. Não vamos
explorar isso.
O certo é que as
nossas encrencas pecuniárias, juntamente com a arrogância que faz que os donos do
poder tomem as decisões da sua desonestidade - foi assim no absolutismo, no
desequilíbrio das classes sociais, é assim hoje, no desequilíbrio das contas,
que permitem vencimentos indecorosos e outros de miséria - resolvam penetrar
nas contas dos milionários, muitas das quais resultam de trabalho sério, que
deviam ser tomadas a sério e não pesquisadas como hoje se faz nos julgamentos
miseráveis televisivos de um país que continua a alimentar-se espiritualmente
de programas festivaleiros - de comezainas, de devassas nas vidas, de palhaçadas
tribunícias sem nenhum pudor.
Julgo que tudo isso
vem de uma falta de preparação já muito antiga, faz parte do nosso carisma
provinciano, não há que fugir. António Barreto explica.
.
Fora da Caixa
António Barreto
DN, 19/2/2017, SEM EMENDA
Com,
provavelmente, mais revelações inesperadas e, certamente, mais uma comissão de
inquérito, teremos folhetim por muito tempo. Até que algo importante e perigoso
aconteça e o governo tenha medo, as oposições, esperança e os aliados, dúvidas,
altura em que todos esquecerão a Caixa e navegarão para novos mares. Como é
costume, deixarão, então, armários cheios de esqueletos incólumes, ilesos e
inocentes. Até lá, ainda teremos réplicas ad nauseam...
Tentando
pensar out of the box, como se diz. É preocupante saber que haja quem
entenda, nas esferas poderosas, que se pode não respeitar a lei ou fazer uma
lei que se aplica para trás ou aprovar uma lei para contemplar um caso. É
inquietante ver como a algazarra sobre este assunto passa por cima de
princípios fundamentais e se aceitam dogmas horríveis mas comummente aceites.
Por exemplo, a ideia de que o poder político está acima de tudo, do poder
económico, da moral, da religião e do direito. Para não dizer da palavra dada e
da honra. Outra, a ideia de que os direitos individuais estão abaixo dos
direitos colectivos. Dito de outra maneira, o interesse da comunidade está
acima dos direitos individuais. Estas ideias não nasceram lá, mas foram
alimentadas pelas "luzes", pela Revolução Francesa, pelo jacobinismo
e pelo comunismo. E parecem hoje reinar, sem obstáculos, na política
contemporânea, sendo esta uma mistura de nobres ideias (a democracia por
exemplo) com nefastos valores (a cupidez e o poder absoluto da
decisão política).
Tem-se
tratado do governo, isto é, dos últimos governos, incluindo o actual, como se
tivessem toda a legitimidade para intervir na banca e nas finanças, como se
tivessem a obrigação de intervir, como se fosse necessário tomar conta,
proteger, esbulhar, nacionalizar... Fizeram o que quiseram com o BES, a Caixa,
o BPN e outros bancos e deixaram fazer o que lhes convinha. Deixaram correr o
marfim em casos excepcionalmente graves, até ao afundamento de algumas das
melhores empresas portuguesas. Compraram e venderam, deixaram comprar e vender,
conforme lhes interessava politicamente (e talvez pessoalmente, nunca
saberemos...).
De
modo semelhante, pede-se ao governo e às autoridades constitucionais que tenham
uma intervenção nas empresas e na vida das pessoas. Que se exija a declaração
de rendimentos em cargos eleitos parece uma regra razoável, embora já
intrusiva. Que essa exigência se estenda aos gestores é já problemático. O
governo solicita a colaboração de pessoas, fica-lhes a dever um contributo
valioso (caso contrário não teria pedido...) e depois põe condições que
ultrapassam os quadros e o tempo dessa colaboração? E por que não aos 700 mil
funcionários públicos? E por que não a todos os cidadãos e empresas que têm
relações com o Estado?
A
verdade é que reconhecemos ao Estado cada vez mais poderes, competências
intrusivas e capacidades de condicionamento da vida dos cidadãos.
Como lhe conferimos o direito de taxar o que, como e quando os governantes
entenderem, para tanto basta precisar de dinheiro! Como ainda lhe
atribuímos faculdades para interferir na vida económica dos cidadãos, das
famílias e das empresas, sob o signo de princípios tão doces como o de "ir
buscar o dinheiro onde ele está" ou "ir tirar o dinheiro a
quem o tem". Como aceitamos, em nome do interesse geral, que os
governantes possam preferir capitalistas, seleccionar bancos, chegar-se a
predadores e liquidar empresas outrora poderosas.
Abusar
dos indivíduos, a título do interesse comum. Condicionar a vida privada dos
cidadãos, em nome do bem de todos. Pôr em risco poupanças pessoais, como se
fossem fortunas ilegítimas. Desrespeitar os bens de cada um, como se tudo fosse
de todos. Retorcer o Estado de direito, a benefício da política. Eis algumas
regras de vida, insuportáveis, que estão a forjar um mundo detestável.
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