terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Somos muito insaciáveis





É como na questão dos beijos, João de Deus sabia. O mal está em começar, sempre com delicadeza, é certo, no caso de João de Deus, e muitas sequências vocálicas e jogos aliterantes, a condizer com o anseio. No caso do governo PS, que cospe mais do que beija, os jogos são outros, embora não faltem as sibilantes dos cinismos melífluos, a delicadeza dando lugar à conveniência, temos visto, a insistência tornando-se mais premente, a aleivosia, pressentida por todos, os da esquerda e os da direita, conduzindo a chantagens, negociações, finuras, mistificações, borboleteamentos - mais com a esquerda, que se contenta com as migalhas para a sua representatividade estrebuchada mas apetecida, de modo que o descambar para uma esquerda desejosa de figurar no palco da nossa pequenez não tarda que se acentue, apesar das acusações europeias de lixo na questão das contas. Mas o ministro das economias acha que não, seguidor de Pangloss no cultivo dos biscates na nossa horta, e o retrato que do PS faz António Barreto, mostra bem a capacidade de adaptação e metamorfose do partido-charneira só para manter a sua representatividade extorquida à força, em tempos.


Um governo alterno
António Barreto
DN, 22/1/2017
Até há pouco, a extrema-esquerda não entrava na equação do governo. Verdade. Mas recorde-se que esta exclusão tinha sido ditada pelo PS. Agora, depois de acusar os "outros" da sua autoria, o PS decidiu incluí-la na área do governo.
É a mais persistente tentação do PS: governar sozinho, mas alternar políticas, conforme as necessidades e os interesses, fazendo aprovar umas leis com os comunistas e outras com a direita. É um sonho adolescente, mas um sonho perene. Desde sempre o PS convenceu-se de que era o centro de gravidade da democracia portuguesa, o partido do regime ou o partido charneira, designações que fizeram história. Foi por causa desse sonho que os socialistas inventaram a moção de censura construtiva, uma bizantinice jurídica que obriga a que só possa derrubar o governo quem tenha uma maioria pronta. Foi por causa desse sonho que os socialistas perderam vários governos e momentos históricos. Estamos a chegar lentamente a uma fase parecida. Enquanto o PS puder contar com a extrema-esquerda, vai governando. O pior é que a extrema-esquerda também já percebeu. E, depois de ser muleta, não está pronta a suicidar-se. Foi por causa deste estilo de governo, com a mão esquerda de manhã e a direita à tarde, que os governos socialistas de Soares, de Guterres e de Sócrates caíram em seu tempo.
O PS tem de facto várias identidades. Com dificuldade em assumir a sua própria síntese (poderia ser a social-democracia de países mais desenvolvidos), sensível à mitologia revolucionária e à ilusão estatal, muda de roupa com facilidade. A liberdade, o pluralismo, o mercado e a iniciativa privada levam-no a fazer políticas consideradas de direita. A igualdade, o Estado social, o dirigismo e a empresa pública conduzem-no para a esquerda. Quando não há síntese superior, fica este verso e reverso de oportunidade. Até há pouco, a extrema-esquerda não entrava na equação do governo. Verdade. Mas recorde-se que esta exclusão tinha sido ditada pelo PS. Agora, depois de acusar os "outros" da sua autoria, o PS decidiu incluí-la na área do governo. Nada pareceu muito complicado, para um partido que já se disse "partido marxista" e condenou a social-democracia, que chegou a designar como "antecâmara do nazismo"!
O episódio recente da taxa única e do salário mínimo, de ínfimos valores e reduzida despesa, tem a importância de revelar a fraqueza dos arranjos políticos e a fragilidade das soluções encontradas. Não se trata, evidentemente, de uma questão de tempo. É indiferente que este governo dure mais seis, doze ou trinta meses. O que realmente importa é a força política e social para governar, reformar, ajudar o país a investir e preservar um Estado social decente. O que parece faltar.
Todo este assunto desempenhou o papel de revelador do "jogo" ou da "jogatana", de que todos se acusaram reciprocamente. Verdade é que uns e outros fizeram tudo para sair bem e enfraquecer o adversário. Mas é possível medir o que podemos esperar, o que serão os próximos episódios, como vai funcionar o governo e os governos paralelos, o Parlamento e os parlamentos informais, a administração e as instituições alternas.
É estranho que o governo, ao subsidiar o salário mínimo, reconheça que está a obrigar os empresários a pagar mais do que podem. É ainda mais estranho que os contribuintes recompensem a ineficiência das empresas que recorrem ao salário mínimo! De qualquer maneira, o baixíssimo salário mínimo, o reduzido aumento e o insignificante subsídio mostram bem o mísero estado em que se encontra a economia portuguesa!
O governo sabe e pensa que, relativamente às possibilidades e à produtividade, o salário mínimo foi aumentado de mais. Sabe e pensa, mas foi obrigado a aceitar imposições. O governo pensa e sabe que é errado subsidiar as empresas que pagam o salário mínimo. Pensa e sabe, mas foi obrigado a aceitar exigências. Corrige um erro com outro erro.
Numa sociedade democrática, a alternativa é indispensável. A alternância também. Mas um governo alterno de si próprio não é recomendável.

Beijo
Beijo na face
Pede-se e dá-se:
             Dá?
Que custa um beijo?
Não tenha pejo:
             Vá!

Um beijo é culpa,
Que se desculpa:
             Dá?
A borboleta
Beija a violeta:
             Vá!

Um beijo é graça,
Que a mais não passa:
             Dá?
Teme que a tente?
É inocente...
             Vá!

Guardo segredo,
Não tenha medo...
             Vê?
Dê-me um beijinho,
Dê de mansinho,
             Dê!

    ……………………..

Como ele é doce!
Como ele trouxe,
             Flor,
Paz a meu seio!
Saciar-me veio,
             Amor!

Saciar-me? louco...
Um é tão pouco,
             Flor!
Deixa, concede
Que eu mate a sede,
             Amor!

Talvez te leve
O vento em breve,
             Flor!
A vida foge,
A vida é hoje,
             Amor!

Guardo segredo,
Não tenhas medo
             Pois!
Um mais na face,
E a mais não passe!
             Dois...

     …………………..

Oh! dois? piedade!
Coisas tão boas...
             Vês?
Quantas pessoas
Tem a Trindade?
             Três!

Três é a conta
Certinho, e justa...
             Vês?
E que te custa?
Não sejas tonta!
             Três!

Três, sim: não cuides
Que te desgraças:
             Vês?
Três são as Graças,
Três as Virtudes;
             Três.

As folhas santas
Que o lírio fecham,
             Vês?
E não o deixam
Manchar, são... quantas?
             Três!
João de Deus, in 'Campo de Flores'

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