domingo, 12 de fevereiro de 2017

Valha-nos Nossa Senhora



A todo o gás, é o que revelam estes escritos de Alberto Gonçalves, mais mordaz do que nunca, quer nos exemplos que cita, quer nos conceitos que expende, condenado de antemão a jamais receber avença que preste, na liberdade que tomou como lema de optar por uma via de sacudir tanta teia de aranha do nosso património humano, que ele certamente gostaria que fosse mais equilibrado, quer nos valores intelectuais, quer nos valores morais. E não pára de zurzir, de modo agudo e certeiro, figuras cuja desfaçatez, desvergonha ou desvario contribuem para destruir a sua/nossa ânsia de equilíbrio moral, económico e social num país que amamos, como ele próprio o ama, pese embora a irreverência - ou antes, violência -  analista dos seus escritos de contundência satírica.
Não, Alberto Gonçalves não se parece com Antero nem com José Régio nos gritos lancinantes de uma melancolia que o sem-sentido da vida lhes pode merecer, com eles divergindo em forma e conteúdo, o sociólogo mais debruçado sobre o espectáculo do mundo que vai estrebuchando à sua volta e dele discorda no procedimento e no pensamento. Mas, apesar da divergência, e pese embora a pieguice que repudiaria, lembrei-me do poema “Colegial” de José Régio, nos laços familiares maternos, como fonte apaziguadora, embora o sociólogo não esteja para aí virado, ágil como é e interventivo na condução da opinião pública, como tanto nos apraz. Mas, afinal, “Colegial” serve a toda a gente, talvez, nos seus primórdios etários, não podemos deixar de nele nos revermos um pouco, Alberto Gonçalves sempre tão outro, mas igualmente gritante:

Colegial
José Régio
Em cima da minha mesa,
Da minha mesa de estudo,
Mesa da minha tristeza
Em que, de noite e de dia,
Rasgo as folhas, leio tudo
Destes livros em que estudo,
E me estudo
(Eu já me estudo…)
E me estudo,
A mim,
Também,
Em cima da minha mesa,
Tenho o teu retrato, Mãe!
À cabeceira do leito,
Dentro dum lindo caixilho,
Tenho uma Nossa Senhora
Que venero a toda a hora…
Ai minha Nossa Senhora
Que se parece contigo,
E que tem, ao peito,
Um filho
(O que ainda é mais estranho)
Que se parece comigo,
Num retratinho,
Que tenho,
De menino pequenino…!
No fundo da minha mala,
Mesmo lá no fundo, a um canto,
Não lhes vá tocar alguém,
(quem as lesse, o que entendia?
Só riria
Do que nos comove a nós…)
Já tenho três maços, Mãe,
Das cartas que tu me escreves
Desde que saí de casa…
Três maços – e nada leves! –
Atados com um retrós…
Se não fora eu ter-te assim,
A toda a hora,
Sempre à beirinha de mim,
(Sei agora
Que isto de a gente ser grande
Não é como se nos pinta…)
Mãe!, já teria morrido,
Ou já teria fugido,
Ou já teria bebido
Algum tinteiro de tinta!

Os avençados da vida
11/2/2017
As autoridades condenam é que se receba dinheiro para dizer bem do eng. Sócrates. Já para mim, com dinheiro sujo ou limpíssimo, o que me parece incompreensível é que se elogie o eng. Sócrates de borla.

Ao longo dos anos, percebi que o argumento mais recorrente dos que, imprudentemente, discordam de mim é a alusão a misteriosas avenças. Se digo que o PS tem certa tendência para afundar a economia, sou um avençado da “direita”. Se duvido da bondade intrínseca do islão, sou um avençado de Israel. Se confesso passar férias nos EUA, sou um avençado da CIA. E se me desse para achar o presidente do Sporting uma figura divertidajuízo que pela minha saudinha nunca fiz ou farei – é porque apresentaria despesas a Benfica ou Porto. Até aqui, tudo bem. A partir daqui, tudo mal: é que a fama de avençado nunca se traduziu em benefícios materiais. Ou seja, andei imenso tempo à espera das transferências bancárias e, salvo as das publicações que me contratam, não chegava nenhuma. Aos poucos, já começava a acreditar que a história das avenças seria um mito indígena, como o Milagre de Ourique ou a lucidez das gémeas Mortágua.
Sucede que não é. Há meses, o país em peso conheceu o “caso” do Câmara Corporativa. Durante uma década, e através de milhares de “posts”, esse empenhado blogue praticara a nobre tarefa de aplaudir o génio de José Sócrates e denunciar a velhacaria intrínseca dos seus adversários. Os textos eram assinados por Miguel Abrantes, que uma jornalista de “causas”, à época próxima do ex-primeiro-ministro, afiançou ser um sujeito real (prova cabal: a senhora almoçou com ele). Entretanto, uma das pontas da Operação Marquês apurou tratar-se de um sujeito imaginário, pseudónimo de pelo menos um tal António Peixoto (possivelmente, a jornalista de “causas” esteve sozinha à mesa e nem reparou – é por causa destas cedências à fantasia que algum jornalismo perde a alegada credibilidade). Segundo o Ministério Público (MP), o sr. Peixoto auferia 3.500 euros mensais pelo fervor patriótico demonstrado no blogue. Eis, afinal, a célebre avença. O MP suspeita da origem das verbas (a do costume) e suspeita que outros indivíduos recebiam pelos mesmos meios para os mesmos fins. Hoje, em suma, a investigação pondera a existência de crime.
É neste ponto que eu e a investigação divergimos. Pelos vistos, o que as autoridades condenam é que se receba dinheiro para dizer bem do eng. Sócrates. Independentemente de o dinheiro ser sujo ou limpíssimo, o que me parece incompreensível é que se elogie o eng. Sócrates de borla. A primeira hipótese, não sendo um modelo de ética, ainda revela vestígios de racionalidade utilitária. A segunda revela um quadro psiquiátrico assustador. Dito de maneira diferente, uma coisa é ser mercenário, outra é ser maluco. Em vez de perseguir os infelizes que tentavam ganhar a vida – e que tinham pudor suficiente para ocultar nome e rosto –, o MP devia inventariar os que glorificavam o ex-primeiro-ministro por pura convicção. E encaminhá-los para avaliação no SNS.
A terminar, juram-me que também há gente a louvar o actual governo sem acolher uns trocos por fora. O quê, criaturas que crêem de facto na bondade ou no talento da frente de esquerda? Peço desculpa, mas não caio nessa, que isso é forçar a nota e até a loucura tem limites. Uma réstia de crença na humanidade leva-me a partir do princípio de que todos, todos, todos os entusiastas da “geringonça” são directa ou indirectamente avençados. E, se possível, tão imaginários quanto o amigo da jornalista de “causas”.
Notas de rodapé:
1. Enquanto o senhor Presidente da República recebe aos saltinhos de alegria, às vezes literais, cada notícia devastadora sobre o “desempenho” da nossa economia, ainda há pessoas que não engolem os mitos & lendas da propaganda. Infelizmente, são quase sempre refugiados sírios. Semana sim, semana sim, conhece-se a história de outra família de imigrantes que, depois de uns dias em Portugal, percebe a essência do lugar e volta a fugir apavorada rumo à civilização. A mais recente aconteceu em Alcanena, onde, a 25 de Janeiro passado, a autarquia instalou o casal e quatro filhos num apartamento do bairro Timor Lorosae (nem comento). A 6 de Fevereiro, a presidente da Câmara, que surgira em fotografias a distribuir prendas aos recém-chegados e tudo, admitiu que estes vão a caminho da Alemanha. Que se saiba, o senhor Presidente da República continua por cá.
2. Claro que há exagero nas acusações do dr. Centeno sobre a tentativa de “assassinato” do seu “carácter”. Este, coitado, faleceu há muito, soterrado pelas patranhas com que o proprietário justifica as trapalhadas em que se envolve. Nada disto, porém, justifica as exigências de demissão do ministro. Por um lado, porque, dado o peculiar governo em questão, seria impossível que o sucessor se distinguisse do actual em competência ou vergonha na cara: nenhum cidadão decente, formado em Harvard ou no Centro de Formação Profissional do Cacém, aceitaria integrar semelhante agremiação. Por outro lado, porque o estilo calamitoso do dr. Centeno começa a ter a sua graça, e o episódio da CGD é apenas um exemplo das alturas a que a baixa comédia pode chegar. O homem – uma “referência de confiança” na opinião do dr. Costa – passou mais de um ano a rir vá-se lá saber do quê. Agora é a nossa vez, e isso não tem preço. Ou tem, por acaso altíssimo, mas merecemos um luxo ocasional.

Nenhum comentário: