A todo o gás, é o que revelam
estes escritos de Alberto Gonçalves, mais mordaz do que nunca, quer nos
exemplos que cita, quer nos conceitos que expende, condenado de antemão a
jamais receber avença que preste, na liberdade que tomou como lema de optar por
uma via de sacudir tanta teia de aranha do nosso património humano, que ele
certamente gostaria que fosse mais equilibrado, quer nos valores intelectuais,
quer nos valores morais. E não pára de zurzir, de modo agudo e certeiro,
figuras cuja desfaçatez, desvergonha ou desvario contribuem para destruir a
sua/nossa ânsia de equilíbrio moral, económico e social num país que amamos,
como ele próprio o ama, pese embora a irreverência - ou antes, violência - analista dos seus escritos de contundência
satírica.
Não, Alberto Gonçalves não se
parece com Antero nem com José Régio nos gritos lancinantes de uma melancolia
que o sem-sentido da vida lhes pode merecer, com eles divergindo em forma e
conteúdo, o sociólogo mais debruçado sobre o espectáculo do mundo que vai
estrebuchando à sua volta e dele discorda no procedimento e no pensamento. Mas,
apesar da divergência, e pese embora a pieguice que repudiaria, lembrei-me do
poema “Colegial” de José Régio, nos laços familiares maternos,
como fonte apaziguadora, embora o sociólogo não esteja para aí virado, ágil
como é e interventivo na condução da opinião pública, como tanto nos apraz. Mas,
afinal, “Colegial” serve a toda a gente, talvez, nos seus
primórdios etários, não podemos deixar de nele nos revermos um pouco, Alberto
Gonçalves sempre tão outro, mas igualmente gritante:
Colegial
José Régio
Em cima da minha mesa,
Da minha mesa de estudo,
Mesa da minha tristeza
Em que, de noite e de dia,
Rasgo as folhas, leio tudo
Destes livros em que estudo,
E me estudo
(Eu já me estudo…)
E me estudo,
A mim,
Também,
Em cima da minha mesa,
Tenho o teu retrato, Mãe!
À cabeceira do leito,
Dentro dum lindo caixilho,
Tenho uma Nossa Senhora
Que venero a toda a hora…
Ai minha Nossa Senhora
Que se parece contigo,
E que tem, ao peito,
Um filho
(O que ainda é mais estranho)
Que se parece comigo,
Num retratinho,
Que tenho,
De menino pequenino…!
No fundo da minha mala,
Mesmo lá no fundo, a um canto,
Não lhes vá tocar alguém,
(quem as lesse, o que entendia?
Só riria
Do que nos comove a nós…)
Já tenho três maços, Mãe,
Das cartas que tu me escreves
Desde que saí de casa…
Três maços – e nada leves! –
Atados com um retrós…
Se não fora eu ter-te assim,
A toda a hora,
Sempre à beirinha de mim,
(Sei agora
Que isto de a gente ser grande
Não é como se nos pinta…)
Mãe!, já teria morrido,
Ou já teria fugido,
Ou já teria bebido
Algum tinteiro de tinta!
Da minha mesa de estudo,
Mesa da minha tristeza
Em que, de noite e de dia,
Rasgo as folhas, leio tudo
Destes livros em que estudo,
E me estudo
(Eu já me estudo…)
E me estudo,
A mim,
Também,
Em cima da minha mesa,
Tenho o teu retrato, Mãe!
À cabeceira do leito,
Dentro dum lindo caixilho,
Tenho uma Nossa Senhora
Que venero a toda a hora…
Ai minha Nossa Senhora
Que se parece contigo,
E que tem, ao peito,
Um filho
(O que ainda é mais estranho)
Que se parece comigo,
Num retratinho,
Que tenho,
De menino pequenino…!
No fundo da minha mala,
Mesmo lá no fundo, a um canto,
Não lhes vá tocar alguém,
(quem as lesse, o que entendia?
Só riria
Do que nos comove a nós…)
Já tenho três maços, Mãe,
Das cartas que tu me escreves
Desde que saí de casa…
Três maços – e nada leves! –
Atados com um retrós…
Se não fora eu ter-te assim,
A toda a hora,
Sempre à beirinha de mim,
(Sei agora
Que isto de a gente ser grande
Não é como se nos pinta…)
Mãe!, já teria morrido,
Ou já teria fugido,
Ou já teria bebido
Algum tinteiro de tinta!
Os avençados da vida
11/2/2017
As autoridades condenam é que se receba dinheiro para
dizer bem do eng. Sócrates. Já para mim, com dinheiro sujo ou limpíssimo, o que
me parece incompreensível é que se elogie o eng. Sócrates de borla.
Ao
longo dos anos, percebi que o argumento mais recorrente dos que,
imprudentemente, discordam de mim é a alusão a misteriosas avenças. Se
digo que o PS tem certa tendência para afundar a economia, sou um
avençado da “direita”. Se duvido da bondade intrínseca do islão, sou
um avençado de Israel. Se confesso passar férias nos EUA,
sou um avençado da CIA. E se me desse para achar o presidente do
Sporting uma figura divertida – juízo que pela minha saudinha nunca fiz
ou farei – é porque apresentaria despesas a Benfica ou Porto. Até
aqui, tudo bem. A partir daqui, tudo mal: é que a fama de avençado nunca se
traduziu em benefícios materiais. Ou seja, andei imenso tempo à espera das
transferências bancárias e, salvo as das publicações que me contratam, não
chegava nenhuma. Aos poucos, já começava a acreditar que a história das avenças
seria um mito indígena, como o Milagre de Ourique ou a lucidez das gémeas
Mortágua.
Sucede
que não é. Há meses, o país em peso conheceu o “caso” do Câmara Corporativa.
Durante uma década, e através de milhares de “posts”, esse empenhado blogue
praticara a nobre tarefa de aplaudir o génio de José Sócrates e denunciar a
velhacaria intrínseca dos seus adversários. Os textos eram assinados por Miguel
Abrantes, que uma jornalista de “causas”, à época próxima
do ex-primeiro-ministro, afiançou ser um sujeito real (prova cabal: a senhora
almoçou com ele). Entretanto, uma das pontas da Operação Marquês apurou
tratar-se de um sujeito imaginário, pseudónimo de pelo menos um
tal António Peixoto (possivelmente, a jornalista de “causas”
esteve sozinha à mesa e nem reparou – é por causa destas cedências à
fantasia que algum jornalismo perde a alegada credibilidade). Segundo o
Ministério Público (MP), o sr. Peixoto auferia 3.500 euros mensais pelo fervor
patriótico demonstrado no blogue. Eis, afinal, a célebre avença. O MP
suspeita da origem das verbas (a do costume) e suspeita que
outros indivíduos recebiam pelos mesmos meios para os mesmos fins. Hoje, em
suma, a investigação pondera a existência de crime.
É
neste ponto que eu e a investigação divergimos. Pelos vistos, o que as
autoridades condenam é que se receba dinheiro para dizer bem do eng. Sócrates. Independentemente
de o dinheiro ser sujo ou limpíssimo, o que me parece incompreensível é que se
elogie o eng. Sócrates de borla. A primeira hipótese, não sendo um
modelo de ética, ainda revela vestígios de racionalidade utilitária. A segunda
revela um quadro psiquiátrico assustador. Dito de maneira diferente, uma
coisa é ser mercenário, outra é ser maluco. Em vez de perseguir os
infelizes que tentavam ganhar a vida – e que tinham pudor suficiente para
ocultar nome e rosto –, o MP devia inventariar os que glorificavam o
ex-primeiro-ministro por pura convicção. E encaminhá-los para avaliação no SNS.
A
terminar, juram-me que também há gente a louvar o actual governo sem acolher
uns trocos por fora. O quê, criaturas que crêem de facto na bondade ou
no talento da frente de esquerda? Peço desculpa, mas não caio nessa, que isso é
forçar a nota e até a loucura tem limites. Uma réstia de crença na humanidade
leva-me a partir do princípio de que todos, todos, todos os entusiastas da
“geringonça” são directa ou indirectamente avençados. E, se possível, tão
imaginários quanto o amigo da jornalista de “causas”.
Notas de rodapé:
1. Enquanto
o senhor Presidente da República recebe aos saltinhos de alegria, às vezes
literais, cada notícia devastadora sobre o “desempenho” da nossa economia,
ainda há pessoas que não engolem os mitos & lendas da propaganda. Infelizmente,
são quase sempre refugiados sírios. Semana sim, semana sim, conhece-se a
história de outra família de imigrantes que, depois de uns dias em Portugal,
percebe a essência do lugar e volta a fugir apavorada rumo à civilização. A
mais recente aconteceu em Alcanena, onde, a 25 de Janeiro passado, a autarquia
instalou o casal e quatro filhos num apartamento do bairro Timor Lorosae (nem
comento). A 6 de Fevereiro, a presidente da Câmara, que surgira em fotografias
a distribuir prendas aos recém-chegados e tudo, admitiu que estes vão a caminho
da Alemanha. Que se saiba, o senhor Presidente da República continua por
cá.
2. Claro que há exagero nas acusações
do dr. Centeno sobre a tentativa de “assassinato” do seu “carácter”. Este,
coitado, faleceu há muito, soterrado pelas patranhas com que o proprietário
justifica as trapalhadas em que se envolve. Nada disto, porém, justifica as
exigências de demissão do ministro. Por um lado, porque, dado o peculiar
governo em questão, seria impossível que o sucessor se distinguisse do actual
em competência ou vergonha na cara: nenhum cidadão decente, formado em
Harvard ou no Centro de Formação Profissional do Cacém, aceitaria integrar
semelhante agremiação. Por outro lado, porque o estilo calamitoso do dr.
Centeno começa a ter a sua graça, e o episódio da CGD é apenas um exemplo das
alturas a que a baixa comédia pode chegar. O homem – uma “referência de
confiança” na opinião do dr. Costa – passou mais de um ano a rir vá-se lá saber
do quê. Agora é a nossa vez, e isso não tem preço. Ou tem, por acaso altíssimo,
mas merecemos um luxo ocasional.
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