Um artigo de um homem sábio - Francisco Assis -
que, pertencendo ao partido socialista, aparenta uma lisura de comportamento e
discurso sério que se impõe não só pela educação como pela inteligência e
honradez do seu espírito esclarecido. Não esqueço que foi o único socialista
(julgo), que se opôs à mascarada da eleição fraudulenta de António Costa, sem
receio de condenações ou marginalizações dos seus confrades. Alguém independente
capaz de valorizar os outros, independentemente da cor partidária, e apenas por
afinidade de pensamento. É o caso da defesa do posicionamento de Rui Tavares
relativamente aos problemas de intolerância xenófoba dos novos populismos
antidemocráticos, e que direciona a sua tese para um entendimento com a direita
europeia numa tentativa de criar uma maior justiça social. Caso igualmente do seu
apreço pelo desafio de Rui Pena Pires lançado à esquerda, de “recusa
da anatematização do capitalismo e economia de mercado, com o que isso
significa de valorização da livre iniciativa individual como factor concorrente
para o desenvolvimento das sociedades”.
Quanto
à questão da Venezuela, merece-lhe naturalmente uma síntese de alerta e preocupação,
pela sua extrema gravidade, num mundo que vai deixando passar impunes tais
desmandos, como acontece em tantas outras partes da esfera.
ESQUERDA CONTRA-CORRENTE
Francisco Assis
Público,quinta-feira,
10 de Março de 2017
Seria dramático que a social-democracia no séc. XXI
perdesse contacto com o que significa inovação
1- Esta semana fica a meu ver
marcada pela publicação neste jornal de dois excelentes artigos da autoria de articulistas que,pertencendo ao partido
socque se integram no espaço público e doutrinário da esquerda democrática. Rui
Tavares e Rui Pena Pires, abordando assuntos diferentes, demonstraram
como é possível elaborar uma análise e um pensamento nos antípodas do
estereotipado discurso dominante, o qual se limita a reproduzir a monocórdica
litania antiliberal. Pelo contrário, nos textos em apreço descortina-se uma
compreensão da presente realidade histórica com outro grau de elaboração
intelectual.
Em
“De que se queixam os Holandeses” (Público,15-03-2017), Rui Tavares,
a propósito das eleições ontem realizadas na Holanda, lembra que o crescimento
de um certo populismo nacionalista e xenófobo ocorre em sociedades bastante prósperas,
dotadas de um Estado-Providência muito forte e com níveis de desemprego
especialmente baixos. Daí conclui, quanto a mim acertadamente, que o
recurso às explicações de base exclusivamente económica e social não permite a
correcta apreensão da origem desse fenómeno e ,como tal, acaba por impedir o
adequado combate ao mesmo. Ao situar o centro da discussão no plano de uma disputa de valores, reconduzida a
uma oposição entre nacionalistas e cosmopolitas, Tavares contribui para um
melhor discernimento de que se passa hoje não só na Holanda mas em vários
outros países Europeus.
Na
verdade, como já aconteceu no caso do “Brexit”, estão a surgir novas
linhas de fractura política que, não subvertendo totalmente as tradicionais, obrigam
a uma redefinição significativa da natureza do próprio campo da discussão
política.
Nesse
sentido ,será útil indagar o que aproxima e afasta o cosmopolitismo de direita,
e, de igual modo, o que relaciona as posições nacionalistas de um lado e outro
lado desta dicotomia política clássica. Isso leva-nos directamente para a
discussão do problema europeu e confronta-nos com a necessidade de
estabelecer um novo modelo de interpretação dos consensos e dissensos que em
torno dele se geram.
Para
bem das nossas democracias, seria bom que a esquerda democrática assentasse em duas
ideias básicas: a de que pode e deve convergir com a direita democrática e
liberal no domínio da formatação jurídico-institucional do espaço político
europeu, e a de que deve garantir claramente a sua autonomia no âmbito das
políticas concretas, nomeadamente daquelas que mais têm a ver com a promoção da justiça social. A partir
daí poderá ser possível uma discussão útil com a direita europeia sobre a natureza
das reformas institucionais a levar cabo, de modo a que se criem condições
mais propícias à afirmação das divergências no plano da política quotidiana, as
quais são imprescindíveis para o próprio bem-estar da democracia. Trata-se de
um caminho difícil, exigindo apurado sentido de responsabilidade de todas as
partes envolvidas, mas que aparenta ser o único capaz de permitir a
superação dos bloqueios actualmente existentes no espaço político europeu.
Já
Rui Pena Pires , num artigo de invulgar ousadia nos tempos que correm,
intitulado “Outubro de 1917”(PUBLICO,12-03-2017), formula, sob a forma
de um repto ao Bloco de Esquerda, uma série de considerações sobre a renovação
da social-democracia deveras interessantes. O que mais singulariza o seu
texto é a sua explícita recusa da anatematização do capitalismo e economia
de mercado, com o que isso significa de
valorização da livre iniciativa individual como factor concorrente para o
desenvolvimento das sociedades. Esta perspectiva tem sido excessivamente
desvalorizada por uma nova esquerda que, no seu afã de se distanciar de
qualquer suspeita colaboração com o pensamento económico liberal, acaba por
deitar fora o menino com a água do banho. Uma das principais questões que
se coloca hoje à esquerda europeia é precisamente a de não ceder à tentação
de se transformar numa ampla provedoria de múltiplos interesses corporativos,
na maior parte dos casos com grande ligação ao Estado. Seria dramático
que a social-democracia no séc. XXI perdesse contacto com tudo o que significa
inovação e transformação nos mais diversos planos da vida económica, social e
política. É por isso mesmo que são importantes reflexões doutrinárias que
apontem no sentido contrário.
2- O que se está a passar na Venezuela, com o
silêncio cúmplice de alguns e a adesão entusiástica de outros, reveste-se de
excepcional gravidade. O regime bolivariano confiscou as liberdades
públicas, controlou o poder judicial, anulou a autonomia parlamentar e provocou
um desastre económico e social que já atingiu as dimensões de uma verdadeira
crise humanitária. A subnutrição galopante e a falta de acesso a
medicamentes conduz a mortes evitáveis. A situação nas prisões, onde se
encontram detidos centenas de presos políticos, atingiu tal estado de
degradação que já há alertas para a prática de canibalismo entre a população
prisional. Até agora todas as tentativas levadas a cabo por diversas instâncias
e personalidades internacionais, desde o Papa Francisco a José Rodriguz
Zapatero, têm esbarrado com a intransigência autoritária do regime de Maduro. É assim que acabam as revoluções populistas.
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