sábado, 22 de abril de 2017

Apenas pagamos bem, sem nos darmos conta



E reclamamos sempre, sem nos lembrarmos de que, com a explosão demográfica, se não conseguirmos converter as águas salgadas, ou mesmo as dos charcos  em águas potáveis, em breve secaremos todos, em aridez definitiva, esgotada essa fonte de vida imprescindível. Vale a pena meditarmos no texto que segue, vale a pena nós próprios fazermos a gestão da água nas nossas casas, não por receio da factura, mas por respeito pela água que nos chega comodamente por canos, permitindo um esbanjamento criminoso, de imprudência e egoísmo. Não era assim dantes no tempo da cantarinha nas aldeias, ou do aguadeiro nas cidades. Os tempos e os costumes! Leiamos o texto de pessoas que sabem:
O retrocesso da gestão dos recursos hídricos portugueses
O país tem recentemente vivido num grande alheamento, parecendo estar-se a recuar 30 anos. Isso é surpreendente, porquanto as leis da Água e da Titularidade dos Recursos Hídricos de 2005 tinham criado um sistema de gestão moderno e eficaz.
Público, 22 de Março de 2017
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O debate que tem vindo a público na comunicação social sobre a descentralização e a transferência de competências para as autarquias locais e CCDR [Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional], veio chamar a atenção para uma surpreendente quase total omissão de referência aos recursos hídricos portugueses, apesar da enorme relevância destes para o desenvolvimento do país.
A importância dos recursos hídricos é ímpar dados o seu caráter transversal relativamente a todos os setores económicos e a sua relevância para a qualidade de vida dos cidadãos, factos cada vez mais reconhecidos a nível internacional onde se assiste a um multiplicar de iniciativas que valorizam a gestão da água como recurso primordial. O tema da “Segurança Hídrica” está na ordem do dia e a sua importância é realçada pelas preocupações relativas às alterações climáticas. Neste contexto, assume particular destaque o chamado nexus “água-energia-alimentação” e é dada atenção crescente aos fenómenos extremos, como as cheias e secas.
E em Portugal o que se passa? O país tem recentemente vivido num grande alheamento, parecendo estar-se a recuar 30 anos na forma como as questões dos recursos hídricos são abordadas. Isso é surpreendente, porquanto as Leis da Água e da Titularidade dos Recursos Hídricos de 2005, aprovadas na Assembleia da República por uma muito larga maioria, em conjunto com vários Decretos-Lei que as regulamentam, publicados até 2009, tinham criado um sistema de gestão moderno e eficaz. Esse sistema era composto por uma Autoridade Nacional da Água (INAG), e por cinco Administrações de Região Hídrográfica (ARHs) dotadas de autonomia administrativa e financeira. Estava previsto também um papel destacado para as Associações de Utilizadores (incluindo as Associações de Regantes), num quadro de descentralização contratualizada de competências, e a formulação de soluções ajustadas aos Empreendimentos de Fins Múltiplos. A Taxa de Recursos Hídricos foi racionalizada e colocada integralmente ao serviço do setor no recentemente extinto Fundo de Proteção dos Recursos Hídricos, dando-lhe capacidade financeira, permitindo a sua sustentabilidade, e assegurando assim a satisfação das exigências da Diretiva-Quadro da Água. O regime de acesso ao domínio público hídrico foi completamente revisto e desburocratizado com a criação ou consolidação das figuras da concessão, da licença e da autorização por mera comunicação do uso.
Todas estas reformas foram o corolário da atenção dada em Portugal desde a década de 70 do século passado aos problemas dos recursos hídricos e da sua gestão. No entanto, de forma algo surpreendente, desde 2011 foi assumida uma perspetiva retrógrada de subalternização desta temática, claramente em contraciclo com as tendências internacionais. A referida legislação foi truncada e revista de forma fragmentada e questionável, as cinco ARHs e o INAG foram extintos e, de forma menorizadora, integrados na Agência Portuguesa do Ambiente. Entretanto a Taxa de Recursos Hídricos perdeu a consignação à temática da água e, portanto, a sua natureza sinalagmática, própria de qualquer taxa.
As estruturas criadas pela Lei da Água entre 2005 e 2009 funcionaram em pleno, apenas durante cerca de dois anos. Não obstante, nesse curto período atuaram de forma eficiente e granjearam o respeito e a confiança dos stakeholders, nomeadamente Câmaras Municipais e Associações de Regantes. As razões falsamente evocadas para a sua extinção e subalternização foram de índole financeira, quando, afinal, elas tinham sido desenhadas para ser largamente autossuficientes.
Em suma, foi dado um gigantesco passo atrás com o desmantelamento e descaracterização do sistema institucional, o que, entre outros aspetos negativos, tem levado a uma destruição de capacidade de pensamento e ação, a uma generalizada desmotivação dos quadros técnicos do Estado com formação específica nestas áreas e a uma saída de muitos desses quadros. Este retrocesso coloca-nos também numa posição de menoridade face a Espanha onde a gestão por bacias é feita pelas Confederações Hidrográficas que, no dia a dia, deixaram de ter interlocutor equivalente do lado português. Esta situação é particularmente grave, tendo em conta que 50% dos recursos hídricos superficiais em Portugal são afluentes do país vizinho e que 2/3 do país estão inseridos em bacias transfronteiriças.
É consensual a nível internacional que a água deve ser gerida com base nas bacias hidrográficas sempre que estas tenham expressão territorial significativa. Por isso, a Diretiva-Quadro europeia aponta muito claramente nesse sentido, embora não o imponha taxativamente porque em alguns países, ao contrário do que acontece na Península Ibérica, a fisiografia dominante pode conduzir a outras soluções. Existe sempre, porém, a preocupação de fazer prevalecer uma gestão integrada por bacias hidrográficas, enquanto quadro natural para a gestão dos recursos hídricos.
Qualquer ideia de que essa gestão contraria um processo de regionalização não faz qualquer sentido e é desmentida de forma eloquente por países como, por exemplo, a Espanha ou o Brasil em que, apesar do grande peso político das Autonomias ou dos Estados, prevalece claramente o primado da bacia hidrográfica. A questão não consiste, de forma alguma, em retirar essa competência às regiões, mas antes em encontrar a forma como os poderes regionais de natureza político-administrativa participam na gestão dos recursos hídricos.
Por isso, qualquer hipótese de transferir as ARHs para as CCDRs é contraproducente e será sempre fonte de problemas e de aumento potencial de conflitualidade. Desde logo, as áreas das regiões-plano não coincidem com as áreas das bacias hidrográficas, sendo Lisboa e Vale do Tejo um caso particularmente expressivo dessa dissemelhança. Que as CCDRs e os municípios tenham uma importante palavra a dizer, é óbvio e indispensável. Que a gestão das bacias seja repartida por várias CCDRs, quebrando a lógica da unidade de gestão, é um enorme passo atrás que a ninguém traz benefícios, nem mesmo aos municípios ou às CCDRs.
Assim, é necessário e urgente assegurar o restabelecimento de uma entidade a nível nacional, que desempenhe as funções de Autoridade Nacional da Água e que trate de forma especializada das diversas e complexas temáticas da gestão dos recursos hídricos. Igualmente necessário e urgente é restituir às cinco ARHs o estatuto de dignidade que lhes conferia a Lei da Água de 2005, por forma a que possa ser assegurada uma estreita articulação com as autarquias e outras entidades de âmbito regional, contando também com a participação ativa dos stakeholders. Só assim se poderá garantir a plenitude dos benefícios que o património hídrico nacional pode e deve proporcionar ao nosso país e aos seus cidadãos.

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