domingo, 16 de abril de 2017

Não só, mas também



Como pessoa inteligente que é, de escrita servida por um dom de observação e uma experiência que um mundo em mutação veloz tem contribuído para dilatar em análise acrescida de um sarcasmo corajosamente e crescentemente provocador, Alberto Gonçalves pega no tema do terrorismo islâmico para desmascarar a obstrução à verdade que, de facto, ultimamente, se tem feito sentir nos media, dentro de um esquema noticiarístico que se processa em várias fases, que vão desde a dúvida inicial sobre a hipótese de se tratar de terrorismo islâmico até à constatação de, a ser assim, os que lamentam as vítimas, se afirmarem como corajosos e patrióticos confrontadores do perigo, entoando o respectivo hino nacional conforme o espaço territorial europeu onde o acidente teve lugar, seja com o camião rasgando muros, seja com os explosivos do atentado suicida ou das armas automáticas. Um artigo feroz que, como sempre, provoca reacções múltiplas, a maior parte das quais raivosamente contrárias à opinião realista do temerário jornalista e sociólogo A. G..
De facto, os comentaristas afluem, geralmente para ironizar e entrar, muitas vezes, em despiques com os outros comentaristas do seu conhecimento, fugindo ao tema central, por incapacidade de argumentação, talvez, e para se invectivarem em ataques e ironias pessoais com algum critério ou sem nenhum, o que parece despiciendo. Todavia, esses que defendem os jihadistas terroristas, são os que instauraram esse clima de solidariedade, conhecidos como de esquerda, amicíssimos de todos os meninos sem condição, irmãos de todos os nus, que merecem a simpatia de todos os que estão vestidos, e que o são também esses da tal esquerda que em latim se diz sinistra, embora se pretenda virtuosa, nem se percebe o desvio semântico do adjectivo. São os rapazes alegremente reclamantes dos seus direitos nos inícios da revolução de Abril, são os filhos desses provavelmente, seguidores da educação transmitida - por vezes inexistente - são os que se atiram ferozmente contra os do capital adquirido pelo trabalho ou não, são os da magnanimidade para com todos os sofredores, eles próprios também se julgando dignos de todos os direitos, os deveres competindo aos outros, os do esforço próprio positivo. Digo isto, depois de ler alguns desses comentários, em que raros foram os que se referiram ao texto de Alberto Gonçalves, e, se o fizeram, para o desapoiarem geralmente, com o facciosismo do santo desvelo fraterno parcial, um deles sublinhando mesmo que, sem jihadistas, Alberto Gonçalves não ganharia para as sopas, o pobre, era graças aos jihadistas que Alberto Gonçalves locupletaria a sua mesa de jantar.
Mas de facto, ainda não há muito, a fúria contra os jihadistas era patenteada nos espectáculos televisivos, com homens ajoelhados, a quem os de cara tapada iam cortar as cabeças. Esses espectáculos deram lugar a actos terroristas generalizados pela Europa, com as respectivas reacções, depressa eliminadas dos noticiários, a dúvida surgindo agora sobre quem os perpetraria, para que os braços europeus continuem a abrir-se à recepção das vítimas da fome e da guerra, e de caminho, à aceitação do terrorismo islâmico inuosamente infiltrado nas hordas migratórias, que, segundo esclarecem os comentadores de Alberto Gonçalves, não provoca tantos danos como os desastres rodoviários diários nem sequer tantos como os exercidos outrora pelos cristãos ao Islão  - do que, aliás, a própria Igreja até já se penitenciou cristãmente, na pessoa do Papa João Paulo II. Creio que o Papa Francisco também subscreveria o pedido, caso não tivesse já sido efectuado, mas agora ele pode manifestar o seu acolhimento a todos os que procuram fugir para a Europa, terroristas ou apenas gente em fuga aflitiva.
Por isso, o título de Alberto Gonçalves “O terrorismo islâmico nunca existiu”, provocantemente irónico, não só é falso, como, pelo contrário, o terrorismo vai perdurar por longo tempo, Deus nos acuda. Pelo menos enquanto a terceira guerra não vier minimizá-lo, e bem assim os furores unilaterais da esquerda democrática.
Quanto ao exemplo da Venezuela, agora é o ponto de vista de um seguidor de Hugo Chavez, tão falador aquele, que até foi mandado calar por uma majestade real. Do ponto de vista de Maduro e Companhia, é a direita, com a bênção dos EUA, que está a provocar a revolta e a crise, Alberto Gonçalves explica, Deus lhes acuda.
O terrorismo islâmico nunca existiu
OBSERVADOR, 15/4/2017,
Se tudo ficar secreto e os deixarmos à vontade com os seus alvos, os terroristas acabam por desistir. Isto se antes não acabarem os alvos, e desistirmos nós. Em qualquer dos casos, é assunto arrumado.
A divulgação das proezas do terrorismo islâmico exige uma considerável quantidade de burocracia. A mera descrição desta exige fôlego e paciência, pelo que conto com o empenho do leitor. Vamos a isso? Vamos.
Sempre que meia dúzia de transeuntes são trucidados numa cidade europeia, a primeira fase consiste em proclamar que nada indica tratar-se de um acto terrorista. Numa segunda fase, aceita-se que, se calhar, até foi um acto terrorista. A terceira fase implica atribuir a matança exclusivamente à arma utilizada, seja um pechisbeque explosivo, uma faca ou um camião (a frase “camião abalroa X pessoas” tornou-se um clássico do jornalismo cauteloso e da dissimulação). Na quarta fase, descobre-se, não sem algum espanto, que o explosivo, a faca ou o camião tinham alguém a manobrá-los, embora haja pressa em adiantar que as motivações do manobrador permanecem obscuras. Na quinta fase, o espanto redobra quando se percebe que o nome do homicida é Abdullah, Ahmed, Ali, Assan, Atwah, Aymen (noto que ainda não chegamos aos “bb”) ou algo com ressonância pouco latina, anglo-saxónica ou asiática. A sexta fase envolve um questionário aos conhecidos de Abdullah, que o caracterizam como uma jóia de rapaz. Na sétima fase, suspeita-se que a jóia afinal viajara recentemente para a Síria e participava em “sites” de ligeira influência “jihadista”, onde jurava matar os infiéis que se lhe atravessassem à frente (uma promessa literal no caso da utilização de camiões). A oitava fase decide que Abdullah se “radicalizara”, ou seja, jurara devoção ao Estado Islâmico, a que chamamos Daesh só por pirraça. A nona fase estabelece que Abdullah, ele mesmo um infeliz afectado por distúrbios psiquiátricos ou discriminação social ou ambos em simultâneo, não representa o islão, por muito que o próprio afirme aos berros o contrário. A décima fase é essencial: aos tremeliques, o poder político declara que nunca cederá ao medo; os jornais desenham capas giras e vagas a propósito; o povo sai à rua a cantar o “Imagine” ou fica no Facebook a “solidarizar-se” com as vítimas sem referir os culpados.
Talvez para evitar esta trabalheira, certa escola de “pensamento” propõe com crescente insistência uma nova forma de noticiar o terrorismo islâmico: além de se negar que é islâmico, convém nem sequer noticiar o terrorismo. O argumento é o de que a informação sobre um atentado serve os interesses de quem o comete. Parece-me razoável, cabendo apenas aos editores sérios escolher se, doravante, responsabilizam o explosivo/faca/camião, ou sugerem que os mortos tombaram graças a forças sobrenaturais ou simplesmente não tocam no tema e aproveitam espaço precioso para debater o vídeo-árbitro.
Há, nisto, uma vantagem e um problema. O problema de reescrever o presente é a necessidade de, em prol da coerência, reescrever o passado. Urge lançar uma multidão de revisores para cima dos livros de História, dado que, daqui para a frente (ou para trás, para ser exacto), as cinzas em Auschwitz foram o resultado de combustão espontânea, o canibalismo na URSS deveu-se a péssimas empresas de “catering” e a escravatura resumiu-se à vontade dos africanos em conhecer o mundo. O fundamental é não propagandear ideais nazis, comunistas ou supremacistas em geral.
Já a vantagem de reescrever o presente é a simplicidade em reescrever o futuro: de modo a não publicitar a toleima dos autores, os crimes “ideológicos” passam a dispor de autoria indeterminada ou, preferencialmente, autoria nenhuma. Imagine-se que dezenas de gays são baleados numa marcha orgulhosa. Falar em homofobia seria prestar um favor ao assassino, cujas razões – cito um defensor do “blackout” informativo – não importam e não merecem ser conhecidas. A imensa maioria dos homofóbicos é gente moderada e de paz, que guarda as convicções na esfera íntima e não maça ninguém. Dizer que a aversão à homossexualidade originou a chacina é – cito outra defensora do “blackout” – usá-la para legitimar “malfeitores” e “delinquentes”.
Por enquanto, porém, os apelos às restrições noticiosas limitam-se ao terrorismo, perdão, à delinquência. A cargo de muçulmanos, perdão, malfeitores. E começam a funcionar. Nos últimos oito dias, o público teve dificuldades em saber a identidade do malfeitor de Estocolmo. E não soube de todo que, desde então, malfeitores similares praticaram delinquências idênticas na Austrália, na Rússia e na Alemanha, além de uma série de países “exóticos” (total de mortos: 172). Assim é que é bonito: há que manter estas coisas em segredo e não dar aos terroristas o gozo de repararmos neles. Se os deixarmos à vontade com os seus alvos, os terroristas acabam por desistir. Isto se antes não acabarem os alvos, e desistirmos nós. Em qualquer dos casos, é assunto arrumado.
Nota de rodapé
Entre nós, as reservas informativas não se esgotam na questão do terrorismo. Também a Venezuela, por exemplo, sumiu misteriosamente da generalidade dos “media” caseiros. E o que se passa na Venezuela? Ao que apurei, há uma “campanha de intoxicação da opinião pública veiculada pelos órgãos de comunicação social dominados pela direita, nomeadamente no que diz respeito às chamadas crises alimentar e política”. Há “acções criminosas em torno do abastecimento de bens essenciais e da especulação com os preços e a moeda nacional”. Há, claro, “as manobras do imperialismo norte-americano com o objectivo de derrubar o governo liderado por Nicolás Maduro e fazer regressar as maiores reservas mundiais de petróleo ao redil dos EUA”. Mas, acima de tudo, há “unidade cívico-militar” e “raízes profundas da Revolução Bolivariana entre as massas populares”. Isto, pelo menos, é o que diz o “Avante!”, dos raros jornais a tocar no assunto.

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